Fragoso, João; Guedes, Roberto; Krause, Thiago, 2014, A América Portuguesa e os sistemas atlânticos na Época Moderna: Monarquia pluricontinental e Antigo Regime. Rio de Janeiro, Fundação Getúlio Vargas. 184 pp. (original) (raw)

1Aderindo à proposta da «Coleção FGV de Bolso» de publicar ensaios de síntese e reunindo resultados de investigação dispersos em diversos textos, João Fragoso, Roberto Guedes e Thiago Krause, professores em universidades do Rio de Janeiro e membros do grupo de estudos Antigo Regime nos Trópicos (ART), lançaram o livro «A América portuguesa e os sistemas atlânticos na Época Moderna: monarquia pluricontinental e Antigo Regime». Ao contrário de outras edições da mesma coleção, os autores o consideram como um «work in progress», ou, nas palavras de Fragoso, um conjunto de «hipóteses a serem mais ou menos comprovadas».

2Partindo da proposta de analisar «a América lusa entre os séculos XVI e XVIII», o livro se divide em três capítulos, sendo a maior parte escrita por Fragoso, enquanto Krause e Guedes escreveram tópicos para o segundo e terceiro capítulo, respectivamente.

3Fragoso inicia o primeiro capítulo com uma crítica à utilização de modelos macro-explicativos de interpretação filo-marxista, apresentados nas obras de Caio Prado Júnior e Celso Furtado, que, ao serem incorporados na produção contemporânea sobre a América Portuguesa, acabam por reduzir a complexidade de sua formação social à lógica capitalista de uma colônia monocultora, latifundiária e escravista dependente do mercado e do capital externo, bem como de políticas mercantilistas orquestradas pela «metrópole». Tal perspectiva, central para os membros do grupo Antigo Regime nos Trópicos, é questionada a partir de dois outros debates de amplitude internacional: de um lado, a repercussão do «Brenner debate» sobre a formação do capitalismo (que pôs em xeque a teoria do «sistema mundo», de Immanuel Wallerstein, ao afirmar que o surgimento do capitalismo na primeira modernidade não teria sido fruto da expansão européia, mas de mudanças particulares às condições de trabalho e propriedade de terra na Inglaterra) e, de outro, o conjunto de revisões historiográficas que, desde os anos 1980, tem questionado o modelo teórico do Estado Absolutista e afirmado sua natureza compósita ou polissinodal.

4Com isso, a construção social da América lusa não teria sido promovida por interesses capitalistas, veiculados por políticas mercantilistas do centro metropolitano, mas pelas «lógicas sociais» que movimentavam agentes e instituições nas duas margens do Atlântico. Nesse sentido, Fragoso tenta transformar a perspectiva central que deu origem ao clássico «O Antigo Regime nos trópicos»1 em um conceito: o de «Antigo Regime católico nos trópicos». Esse conceito enfatiza a necessidade de enxergar a construção das relações sociais na América lusa a partir da interação de múltiplos atores cujos comportamentos são orientados por lógicas e categorias sociais específicas às sociedades de «Antigo Regime católico», marcadas pela «obediência amorosa» difundida através da «disciplina social católica», bem como pelo papel estruturante das relações de patronagem e clientela.

5No transcurso do livro, essas lógicas são identificadas na apresentação de resultados de investigação bastante originais que se expressam, por exemplo, na verificação de que o investimento dos excedentes de produção social era aplicado na reprodução de valores e práticas típicas a uma sociedade estamental e escravista. No caso do Rio de Janeiro, por exemplo, parcela significativa de bens (até 70% do que era transmissível em testamentos, em finais do século XVII) era destinada à manutenção de obras pias – como irmandades, igrejas ou mesmo missas. Com isso, a riqueza produzida com a exploração do trabalho escravo, ao invés de retornar em sua totalidade para o reino, diluía-se em esmolas e investimentos voltados à preservação das «hierarquias sociais costumeiras» em solo americano. Esses excedentes «destinados ao além túmulo» retornavam às sociedades locais por meio da atividade creditícia das mesmas instituições que eram beneficiadas pela vontade dos mortos, o que leva os autores a entender que, a partir do caso do Rio de Janeiro, ao menos no século XVII, a Misericórdia e as Irmandades assumiam papel preponderante na concessão local de crédito que, nesse sentido, não dependia de capital metropolitano ou europeu.

6A ideia de tentar perceber o peso da moralidade católica na orientação das «lógicas sociais» de grande parte dos habitantes da América Portuguesa é sumamente interessante. Mas, consideramos que talvez fosse necessário valorizar, ou, ao menos, mencionar os possíveis conflitos entre essa moralidade e os interesses divergentes dos atores sociais, como se evidencia, por exemplo, na questão da escravidão indígena que opôs os missionários e os produtores locais, no Maranhão ou em São Paulo, com razoável frequência.

7Além disso, se a «disciplina católica» e a «economia da mercê» são categorias fundamentais para perceber as práticas de inclusão dos súditos em uma formação política mais ampla, deixam escapar, ou pouco enfatizam, a complexidade da produção social das «políticas da diferença» no espaço atlântico da monarquia2. E aqui não mencionamos apenas os milhares de ameríndios que foram segredados de suas famílias e inseridos nos aldeamentos para catequização, mas outros grupos sociais que não tinham o Antigo Regime católico na base de suas orientações valorativas, como as populações quilombolas, por exemplo, que também são reflexos exemplares da dinâmica atlântica de escravidão e mestiçagens.

8No mesmo direcionamento, os autores contestam a ideia de que haveria uma oposição rígida entre «Estados» (metrópoles) e «impérios» (colônias) construída pela dominação unilateralmente drenada daqueles para estes, mas sublinham a existência de monarquias com possessões espalhadas por um ou mais de um continente e interconectadas pela negociação. Na segunda parte do capítulo, Fragoso discorre acerca do conceito de Monarquia Pluricontinental, que considera estar em construção. A expressão foi cunhada por Nuno Monteiro3 e o conceito define-se a partir da impossibilidade de enquadrar a monarquia portuguesa no conceito de «Monarquias Compósitas» de John Elliott, pois, se nestas, conviviam múltiplos reinos, cada um com sua nobreza e normas locais, na «Monarquia Pluricontinental» lusa havia somente um reino e suas conquistas cuja organização era feita, de acordo com Fragoso, «pela administração periférica da Coroa e, em especial, pelos municípios» ou por pactos «entre a Coroa e as elites locais situadas nos municípios das conquistas» (p. 34). Aos municípios caberia a gestão da república, garantida por sua autonomia e capacidade de autogoverno, e ao monarca, cabeça da República, a defesa e a administração passiva dos corpos políticos. Essa capacidade organizativa das câmaras estaria traduzida na gestão do bem comum, na regulação de uma diversidade de normas locais, na interferência direta sobre o mercado e, até na gestão do próprio império (mantendo efetivos militares e fortalezas, armando expedições ou mesmo opinando sobre diversas matérias concernentes a territórios que extravasavam a circunscrição municipal).

9Diversas investigações têm demonstrado que o poder municipal, exercido por elites locais através das câmaras, foi decisivo para a manutenção e organização de grande parte das conquistas portuguesas, bem como para a dinamização do espaço atlântico, mas querer reduzir a complexidade da moldura administrativa do mundo português à «Coroa», de um lado, e «municípios» com oficiais periféricos, do outro, acaba por limitar a abrangência espacial do referido conceito. Nem é preciso deslocar o foco de análise ao Estado da Índia para perceber que, em parcela significativa dos territórios, a única ou a principal forma de organização era a militar (seja em arraiais, fortins, fortalezas ou mesmo bandeiras e companhias volantes). Basta olhar para o Rio Grande ou o Ceará, onde a dispersão territorial dos sesmeiros pelos interiores era contrabalanceada pela presença de uma única câmara em cada uma dessas capitanias, até avançado século XVIII, o que dificultava a presença dos oficiais eleitos nas sessões e, assim, tornava pouco operacional a organização dos espaços por intermédio dessas instituições4. O conceito beneficiar-se-ia bastante caso alargasse o leque de poderes corporativos que poderiam ter variados impactos na gestão dos espaços locais e na própria estruturação social do mando.

10Passemos, todavia, ao restante da obra. O segundo capítulo começa por apresentar a dinâmica do «Sistema Atlântico luso» como uma «atividade movimentada pela arquitetura institucional da monarquia pluricontinental lusa», isto é, pela interação de múltiplos agentes sociais que, por meio da participação na estrutura administrativa, principalmente nas câmaras, construíam e interferiam diretamente nas relações econômicas e comerciais. Assim, os valores, as categorias e o acúmulo pessoal de experiências dos indivíduos que atravessam o Atlântico surgem como fatores explicativos palpáveis para analisar a dinâmica desse sistema, ao invés do peso da maquinação distante e mercantilista, feita a partir dos interesses do centro, que é apresentada em outros modelos interpretativos. A singularidade desse sistema emerge de uma brilhante comparação com o caso britânico e espanhol no Atlântico, feita pela mão de Thiago Krause – perspectiva, aliás, pouco privilegiada na produção anterior dos autores e que, de certa forma, dá escopo transnacional ao ensaio. No caso luso, as práticas de catequização dos cativos e os altos índices de alforria, fomentados pela disciplina social católica e pelo avolumado tráfico transatlântico de pessoas, favoreceram acentuadas dinâmicas de mestiçagem, o que difere, por exemplo, do caso da América Inglesa onde, pela oferta de cativos poder ser instável e não haver a preocupação de cristianizá-los, produziu-se uma sociedade mais segredada em termos raciais.

11Essa perspectiva é aprofundada no terceiro capítulo, onde os autores analisam os impactos da consolidação do Sistema Atlântico luso sobre a sociedade no século XVIII. A análise minuciosa de fontes cartorárias leva Fragoso a evidenciar, em dados sistemáticos, a progressiva secularização da sociedade que acompanhou o fortalecimento das comunidades mercantis que ligavam os circuitos atlânticos aos circuitos regionais intra-americanos de comércio, nomeadamente através da ascensão destes homens enquanto principais fornecedores de crédito, em lugar das instituições religiosas no Rio de Janeiro. Em complemento, e através de perquirida análise da produção de vocabulários sociais para designar «cor-condição social» e da crescente inserção social dos «pardos», Roberto Guedes verifica como o aumento progressivo no número de africanos desembarcados no Rio de Janeiro contribuiu para o adensamento das dinâmicas de mestiçagem, algo que oferece uma visão alternativa à que, anteriormente, situava os grupos sociais «mestiços» nas margens do mundo açucareiro.

12Contudo, a obra tem uma conclusão de pouca profundida, escrita em 23 linhas. Os autores se limitam a dizer que em meio às transformações vivenciadas durante o século XVIII, «a cidade do Rio de Janeiro passou a ser a principal praça da América lusa e ponto de encontro de diversas rotas comerciais vindas de Cuiabá, no interior do Brasil, centro da América do sul, de Angola e mesmo de Goa, no Índico», sem, entretanto, evidenciar a aquisição dessa suposta pujança em comparação a outros portos atlânticos como Salvador, Recife ou São Luís.

13E aqui parece o local adequado para situar o maior paradoxo de «_A América Portuguesa e os sistemas atlânticos na Época Moderna_». Os autores se propõem a analisar a «América lusa» sem estabelecer um profícuo debate com os resultados de investigação obtidos em outros centros de produção historiográfica fora do Sudeste do Brasil, especialmente com os do Norte e no Nordeste. E não menciono aqui dissertações ou teses de doutoramento, que seria o mínimo esperado, mas trabalhos consolidados e já transformados em livros como, por exemplo, os de Raphael Chambouleyron, Juciene Apolinário, George Cabral de Souza e Avanete Souza5. Essa falta de diálogo, se ampara na afirmação do reconhecimento da «ignorância sobre os mesmos séculos» XVI, XVII e XVIII, os leva a desconsiderar que enclaves como Recife, Salvador e São Luís se caracterizavam como outras «encruzilhadas» do Atlântico, pois, além de manter conexões com as outras partes do mundo português também o poderiam manter com a América Hispânica. Portanto, o livro ganharia muito mais em profundidade e perderia muito menos em proposições arriscadas se assumisse o Rio de Janeiro como estudo de caso – declarando, no título, a intenção de centrar a análise neste espaço.

14Não se pode dizer que o conteúdo do livro é absolutamente inédito, apesar de ser bastante inovador, já que resulta de quatorze anos de publicações, debates e reflexões que se produziram a partir da recepção de «_O Antigo Regime nos trópicos_» na comunidade acadêmica. Apesar disso, sua proposta é interessante, pois conecta resultados dispersos em trabalhos anteriores numa visão de conjunto. Os autores oferecem uma amostra da viragem interpretativa pela qual tem passado a historiografia brasileira, no sentido do questionamento de um modelo teórico economicista macro-explicativo de cariz filo-marxista em favor de modelos – no plural – mais abertos e de inspiração antropológica, que privilegiam o peso da agência e da experiência individual na dinâmica social. Outro ponto positivo da obra é estar à procura de identificar categorias próprias aos séculos XVI e XVII, sem projetar os resultados de pesquisa sobre os séculos XVIII e XIX para períodos mais recuados, aceitando, assim, o desafio de enxergar o passado como um país estrangeiro.