EDUARDO LOUREN�O (original) (raw)
10-10-2003
EDUARDO LOUREN�O
(n. 1923)
22 de Maio de 2003
JOS� CARLOS DE VASCONCELOS. VENCE
Faz 80 anos amanh�, 23, uma rara figura de homem e escritor de ideias, sempre a pensar o Portugal que durante tanto tempo o condenou ao sil�ncio. Apesar de pr�mios, homenagens, estudos, a sua dimens�o humana continua desconhecida, bem como parte da sua obra.Aqui se revela um Louren�o duplamente �in�dito�
Estive sempre ao lado da minha vida distraidamente longa. Nunca estive atento. Vendo bem, vivi em dois registos. Como se a minha vida real n�o me dissesse respeito. Sempre a fingir que n�o estava l�, para n�o estar onde estava. No fundo, sou pouco s�rio�, reflecte, em voz alta, Eduardo Louren�o, fazendo-me lembrar certo passo de uma das nossas conversas anteriores, de muitas horas.
(�Tenho uma grande mem�ria do simb�lico. O meu mundo real � o mundo da poesia e da fic��o. H� um di�logo constante com o que leio ou li. Com os livros e as personagens. S�o a minha fam�lia secreta.�)
�O que n�o aparece no que escrevi � continua agora � � o outro lado da pessoa que sou, que gosta do mundo e da vida, em estado de eterno enamoramento e com uma infinita curiosidade por tudo.�
Desta vez estamos em Vence, na pequena vivenda entre �rvores e flores escondida atr�s de uma sebe alta de 50 ciprestes que ele pr�prio plantou:
� Foi a �nica coisa que verdadeiramente eu fiz em toda a minha vida. O que eu suei! Pensei que morria...
Louren�o e sua mulher compraram a casa em 1974, ap�s nove anos de Nice, ali a 20 quil�metros, em cuja Universidade ambos ensinaram. Desde ent�o vivem nela, agora sozinhos, com os Alpes Mar�timos atr�s, em fundo distante, separando a Fran�a da It�lia, e o mar em frente, l� ao longe.
� O Eduardo dizia: eu ainda fico aqui, debaixo do �ltimo cipreste que plantar, recorda Annie. A casa fica afastada do centro da velha cidadezinha de apenas uns 12 mil habitantes, na Avenue de Provence, n.� 1130, exactamente a dist�ncia em metros da primeira rotunda ap�s a ponte pela qual se chega tamb�m, ali perto, � bela Capela dos Dominicanos, toda pintada e decorada por Matisse. Avenida? De facto uma estrada quase estreita, sem passeios, com vivendas espa�adas de ambos os lados e �rvores frondosas, sobretudo ac�cias floridas. E, este anos, com muitos melros a cantar.
O homem que mais e melhor tem pensado Portugal faz esse caminho todos os dias, uma ou duas vezes, a p� ou ao volante do seu pequeno Opel Corsa, de que Annie � mais habitual condutora. Deita- -se tarde, levanta-se cedo, come�a, logo de manh�, por ir comprar jornais e revistas.L� tudo, ainda que sem a voracidade com que l� o que lhe chega de Portugal: VIS�O_, P�blico, JL � Jornal de Letras,Jornal do Fund�o_, mesmo alguns peri�dicos locais.
CULTURA
Fora do Pa�s desde 1953, nunca saiu dele e aceita todos os convites para fisicamente voltar. Penso nisto, � um dia, 8 de Maio, de intenso c�u azul, muito caracter�stico da Proven�a, Eduardo pede a Annie para ver de novo se o correio j� chegou. Annie lembra-se que � feriado (Dia do Arm�sticio), e ele mostra-se desalentado:
� H� 50 anos que esta � a minha hora suprema. Espero o correio como quem sempre espera qualquer coisa que mude a sua vida. Como quem espera o Messias!
� pelo correio que h� meio s�culo lhe chega o Portugal de que nunca saiu e afinal fica t�o longe daquele sil�ncio e daquele isolamento vizinhos da solid�o.
Os pais, sua presen�a/aus�ncia, e a inf�ncia sempre foram e hoje ainda s�o mais uma constante no sentimento e na reflex�o interior do Poeta-Fil�sofo que tamb�m �. A fam�lia, da pequena aldeia de S. Pedro de Rio Seco (Almeida, Guarda), onde Eduardo Louren�o de Faria nasceu, era pouco mais do que pobre. Filha de um �lavrador que teria sido tecel�o�, a m�e, Maria de Jesus, de uma �profunda religiosidade �, sincera e rural, marcou-o com a presen�a. O pai, Ab�lio, tamb�m o marcou, mas mais com a aus�ncia. Oriundo de Lagares da Beira, filho de um pequeno comerciante de prole numerosa, a falta de recursos obrigou-o a alistar-se como volunt�rio na �tropa�, em vez de ser m�dico como pretendia. Quando Eduardo, o mais velho dos sete filhos, andava s� no 1.� ano do liceu da Guarda, partiu para Mo�ambique, onde ficou meia d�zia de anos longe da fam�lia, para a poder sustentar.
�Nunca houve entre n�s essa rela��o �ntima, secreta, que h� entre um pai e um filho�, diz-me. E numa pungente p�gina do seu Di�rio in�dito, publicada no �ltimo JL � Jornal de Letras, come�a por escrever: �Em minha casa cada qual arrasta a sua ternura familiar numa solid�o perfeita.� Nas nossas tr�s longas conversas, ao longo do tempo, de que guardei registo, o tema aflora com alguma frequ�ncia. Em 1996, depois de ter sido o primeiro ensa�sta a ganhar o Pr�mio Cam�es, just�ssima consagra��o do criador que tamb�m �, quando fal�vamos dos seus primeiros escritos, de s�bito fez uma pausa no seu torrencial e luminoso discurso, uma sombra se insinuou no rosto e disse-me:
� S� Deus e Freud � que devem saber porque escolhi o nome liter�rio de Eduardo Louren�o. Talvez porque estava impregnado dessa ideia dos Louren�os. Hoje penso nisso com alguma melancolia. Ou com algum remorso.
Magia do cinema e prazer do �paleio�
Depois da escola prim�ria em S. Pedro e do 1.� ano do liceu na Guarda, vai para o Col�gio Militar � �como podia ter ido para o Semin�rio�. S�o seis anos, dos 11 aos 17, interno, no que considera �um buraco negro� de que n�o gosta de falar, embora se recorde que a sua primeira nota a Filosofia foi um 0 (a final foi 19) e que �arquitectava fic��es, romances hist�ricos�.
� Um tipo do meu g�nero engaiolado! N�o era e n�o sou de me adaptar a uma disciplina rigorosa. E esta s� contribuiu para a minha indisciplina, o meu gosto contestat�rio. Mas a lembran�a mais dolorosa � a de ficar no Col�gio durante as f�rias da P�scoa. Em vez dos habituais 400 alunos restavam uns 20, como que exclu�dos do estatuto da maioria. Sentia uma esp�cie de abandono, que me pode ter marcado. J� a maior alegria era ir ao cinema, na Amadora, com os meus tios.
Esta foi, para o jovem Eduardo, uma das �maiores descobertas da [sua] vida: a da magia do cinema�. Que continua a ser um dos seus grandes interesses.
Louren�o � uma espantosa e human�ssima m�quina de pensar criadoramente. Com um fulgor de intelig�ncia, imagina��o e intui��o, uma capacidade de relacionamento e metaforiza��o, uma natural ironia e auto-ironia, uma express�o envolvente, a que n�o falta nem o achado de linguagem nem a inesperada/inspirada sa�da fora dos c�nones � absolutamente fant�sticas. Por escrito ou �s vezes, ainda mais, de viva voz, � conversa com os amigos, em confer�ncias, li��es, interven��es que em geral n�o prepara muito, nem precisa, limitando-se a umas notas escritas na sua letra min�scula e cada vez mais impercept�vel. O que significa que boa parte da sua obra ficar� in�dita...
� Do que eu gosto � de paleio... Passei a primeira parte da minha vida nos caf�s a palear, fornecendo mat�ria para alguns camaradas e outros ouvintes escreverem o que eu dizia. Se tivesse continuado em Portugal acho que n�o tinha escrito nada. E se tivesse nascido milion�rio seria pior do que o Mandarim do E�a...
Cada pergunta ou observa��o que se lhe faz � pretexto para longas falas admir�veis, nas quais a sua excepcional cultura � sempre um cais de partida, nunca um ponto de chegada. Assim, ouvi-lo � deslumbrante; entrevist�-lo, imposs�vel. No sentido ou com a t�cnica tradicionais, j� se v�. O que sublinho porque est�vamos a falar do adolescente Eduardo, fardado de Menino da Luz, e de cinema � o que de s�bito o leva a evocar uma �Am�rica m�tica, uma fabulosa f�brica de propaganda, n�o ideol�gica mas do modo de vida norte- -americano�. A saltar da�, com pertin�ncia e fulgor, para outra coisa, a assinalar que �o Imp�rio americano come�ou por ser constru�do atrav�s do cinema� e avan�ar pelo Imp�rio at� chegar � invas�o e ocupa��o do Iraque.
Quando faz um breve sil�ncio, n�o aproveito para p�r qualquer quest�o, n�o quero nem ouso interromp�-lo, sei que vai continuar seu alto voo, n�o sei � para onde. Estou ali mas, para ele, o gravador � como se n�o estivesse, constante e instintivamente afasta o pequeno microfone, eu volto a aproxim�-lo e ele a afast�-lo, n�o sa�mos disto.
� O Cinema da Amadora foi a minha primeira catedral. N�o uma igreja, nem uma anti-igreja, mas uma catedral, onde vivi os mais exaltantes, os mais sublimes, momentos da minha adolesc�ncia. Para mim havia ent�o dois Portugais: um dentro do cinema, outro fora dele. Aquilo era o c�u, o moderno sobrenatural, e ao p� dele qualquer outra forma de religiosidade empalidecia.
Coimbra, Torga, �Heterodoxia�
Terminado o Col�gio Militar, com boas notas, o destino de Eduardo foi Coimbra. Chegou a frequentar os preparat�rios de Ci�ncias, que lhe dariam acesso � Escola de Guerra, a que estava destinado. Mas come�aram a cantar outras sereias, entre elas a primeira de uma s�rie de paix�es �de caix�o � cova, uma coisa tipo Dante�, com uma �menina lind�ssima� da sua terra que morava em Coimbra; a �ltima dessas paix�es foi a da jovem a quem dedicou Heterodoxia I � outra hist�ria por contar.
� Vendi as sebentas logo no fim do primeiro per�odo e passei o ano inteiro na Biblioteca a ler Nietzsche e outros fil�sofos. Tinha 17 anos e uma grande curiosidade por temas que visivelmente estavam fora do meu alcance e por isso me pareciam misteriosos. Descobri tamb�m a Revista de Portugal, dirigida pelo Nem�sio, que foi a minha inicia��o, o meu primeiro contacto com os escritores vivos: at� a� pensava que os escritores estavam todos mortos...
Fez ent�o novos exames de aptid�o, reprovando no de Direito e passando no de Letras. Foi, ent�o, para Hist�rico-Filos�ficas � �por ser o curso para que iam os que n�o tinham mais nenhum s�tio para onde ir, e porque aquilo de que sempre gostei mais foi de Hist�ria�.
Cat�lico praticante, membro do CADC, Eduardo come�a a seguir outros caminhos e aproxima-se dos neo-realistas, mas sempre cr�tico, independente, heterodoxo. A liga��o maior � com Carlos de Oliveira, seu colega de curso, dois anos mais velho, �com uma forma��o liter�ria que eu n�o tinha� e que mais tarde haveria de ver como �uma esp�cie de Torga mais requintado e sombrio�.
Em Janeiro de 1943 estreia-se com um conto no Di�rio Popular: �Foi o primeiro dinheiro que ganhei. Pagaram-me 50 escudos, que deram para uma grande jantarada com os amigos.� No ano seguinte inicia a colabora��o na V�rtice, com um poema, e s� depois � que come�a a publicar outros textos.
Licenciado, em 1946, com 18 valores, assistente, Eduardo � ass�duo frequentador das tert�lias liter�rias, quer as dos jovens da sua gera��o, entre os quais est� Eug�nio de Andrade, quer a dos mais velhos, entre eles Miguel Torga, com o qual tem uma forte liga��o. Torga aprecia-o tanto que, coisa rar�ssima, at� lhe oferece os livros com simp�ticas dedicat�rias: estou a v�-los aqui, bem arrumados na imensa balb�rdia do escrit�rio de Louren�o, a antiga garagem, enquanto a nova tamb�m j� est� cheia de livros e o carro fica l� fora.
Foi Torga, ali�s, quem levou Eduardo a publicar o seu primeiro livro, Heterodoxia I (1949), e tratou at� da sua edi��o: �N�o paguei um tost�o, mas tamb�m n�o recebi nada�, recorda o autor. Que dedica � obra de Torga o seu segundo livro, sa�do em 55, o ano seguinte ao do casamento com Annie Salomon, na sua (dela) Bretanha natal.
Torga fez a Louren�o, nas provas do livro que ele lhe mandou, algumas sugest�es tendentes a torn�-lo mais encomi�stico. O autor n�o ficou contente, mas mantiveram boas rela��es, de tal modo que quando veio a Portugal com Annie, pela primeira vez, foi ao Ger�s apresentar-lha. E Annie ouviu, com espanto, Torga dizer-lhe: �O Eduardo n�o devia ter casado, porque � um poeta!� As rela��es s� haveriam de se romper, para serem reatadas nos anos 80, �como se nada houvesse acontecido�, quando Louren�o escreveu uma nota muito cr�tica sobre o 9.� Di�rio.
Bom, mas em 48 e 49 tinham ocorrido dois factos que mudariam a sua vida: com meia d�zia de meses de intervalo, morreram-lhe a m�e e o pai: �Com 26 anos fiquei chefe de fam�lia.� Louren�o tem �uma grande preocupa��o em n�o magoar ningu�m� e admite que, se os pais n�o tivessem morrido, �n�o teria publicado nada: n�o queria entrar em choque com eles. Seria uma ferida que n�o poderia curar�. Tempos antes o pai, tendo sabido que ele estivera com a �malta neo-realista toda� na casa da Figueira de Jo�o Jos� Cochofel, chegara a ir a Coimbra falar- lhe, preocupado com as suas companhias �comunistas�.
Peregrina��es e �A Rosa dos Tempos�
Almo�amos num restaurantezinho simp�tico, na pra�a central de Vence. Louren�o tem v�rios comprimidos para tomar, de que de h�bito se esquece ou que baralha. Annie chama-lhe a aten��o, � ela que tenta sempre remediar a sua proverbial distrac��o (esquece-se das coisas, perde as chaves de casa, etc.), distrac��o t�o grande como a sua aus�ncia de soberba ou vaidade, � ela que tenta dar alguma organiza��o � agenda que n�o tem, aos compromissos que assume, � vida que, como costuma dizer, �vive como se fosse eterno�. Fundamental para ele, Eduardo n�o s� o reconhece e agradece, como sublinha a sua �solicitude�: �Annie � a minha liga��o ao real.�
� �s vezes a Annie zanga-se consigo, n�o?
� N�o: eu, �s vezes, � que me zango com ela. Ela, comigo, zanga-se sempre...
Vence � a �ltima etapa de um longo percurso comum e foi um local escolhido tamb�m pela altitude e pelo clima, bom para a asma de Annie, hoje bastante atenuada. Chegado ao fim de seis anos sem ter apresentado a tese de doutoramento, O Tempo e a Verdade (� ... e afinal tenho andado toda a vida a escrev�-la, est� dilu�da em toda a minha obra. Al�m disso, tenho um livro novo, que talvez se v� chamar A Rosa dos Tempos � O Fim do Mito da Hist�ria Universal, que de certa forma a completa.
�Mas isso � uma novidade absoluta... E s�o textos mesmo in�ditos, ou re�ne alguns dos j� publicados?
� S�o textos nunca publicados, escritos nos �ltimos cinco a dez anos. Porque in�ditos, em Portugal, podem-se considerar todos os textos publicados h� mais de oito dias. H� uma desaten��o cultural absolutamente extraordin�ria.)
Louren�o vai, em 1953, para a Universidade de Hamburgo, como leitor: �Se alguma vez a palavra ex�lio, ou auto-ex�lio, teve um significado para mim foi nesse primeiro ano na Alemanha e numa terra onde �s tr�s ou quatro da tarde deixava de haver sol.� Em 1954, passa para Heidelberg, depois para Montpellier � e em 1958/59 ei-los na Universidade da Ba�a, de que ambos gostaram muito:
� V�m da� a minha paix�o e as minhas rela��es psicanal�ticas com o Brasil. Estava fascinado, mas a situa��o em rela��o � Filosofia era decepcionante. Estava l� bem demais, mas com um estatuto indefinido: ou me vinha embora, ou poderia ficar l� para sempre.
Regressaram a Montpellier, e Louren�o, sem contrato, ficou um ano (�dos piores da minha vida�) sem emprego. Segue-se Grenoble e, em 1965, Nice, onde, como Annie (professora de Literatura de L�ngua Espanhola), deu aulas at� se jubilar, em 1988.
Pelo meio, claro, foi construindo a obra not�vel que se conhece e tendo alguma discreta interven��o c�vica:
� E eu nunca quis cortar com Portugal, nunca sequer coloquei essa hip�tese. Por isso, quando, no Brasil, escrevi para o_Portugal Democr�tico,_ fi-lo com pseud�nimo.
J� em 1945 Louren�o assinara as c�lebres �listas� a favor das elei��es livres. N�o gostando da �actividade pol�tica� em meados dos anos 40, estava na tropa em Mafra, entendeu que era altura de agir. Ouviu falar da exist�ncia de um Partido Socialista, liderado por Ramada Curto, popular advogado e dramaturgo, e resolveu �alistar-se�:
� N�o estive com meias medidas, mandei-lhe uma carta. Ramada respondeu-me, de uma forma muito engra�ada, pedindo-me para me ir encontrar com ele, na Brasileira. Fui e disse-me que o partido era s� ele. Se eu quisesse entrar, pass�vamos a ser dois...
Quase tr�s d�cadas depois, M�rio Soares convidou-o para a funda��o do PS. Louren�o n�o aceitou, embora manifestando-se solid�rio. Mas n�o concordava com a parte do programa relativo � independ�ncia das col�nias: com a independ�ncia sim, mas n�o com a forma muito esquem�tica como a quest�o estava apresentada, a realidade era muito mais complexa. Revela-me ent�o que, ainda no Brasil, escreveu um livro de quase 300 p�ginas manuscritas, sobre essa problem�tica. Como muitos outros originais seus, nunca foi
publicado: antes do 25 de Abril, n�o era poss�vel; depois, falou dele a Snu Abecassis, quando a Dom Quixote editou Os Militares e o Poder (1975), mas a futura mulher de S� Carneiro disse-lhe que n�o valia a pena d�-lo a lume, �porque o problema j� estava resolvido�...
O 25 de Abril e o fim do �sil�ncio�
Eduardo descreve, com pormenor e colorido, a sua primeira vinda a Portugal ap�s a Revolu��o e como a certa altura deu com ele a pensar: �Est�o em 1917 e n�o sabem.� Longe e perto, acompanhou com paix�o tudo que aqui se passava, interveio muito e pensa que, em certos momentos, o que escreveu teve �alguma influ�ncia �: �Acabou por ser uma Revolu��o suav�ssima, bel�ssima, nunca houve nada de semelhante na nossa Hist�ria.�
Foi convidado para a pasta da Cultura, mas n�o aceitou. E um amigo chegou a mandar-lhe um telegrama a prop�sito de uma sua hipot�tica nomea��o, que Annie lhe trouxe, �pendurado na ponta dos dedos e dizendo-me, ir�nica: 'Mon ch�re, te voil� ministre'�... Tamb�m foi sondado, pelo PRD, em meados da d�cada de 80, para cabe�a de lista para o Parlamento Europeu, mas recusou.
Foram anos muito intensos, em que, pela primeira vez, teve interven��o partid�ria, no PS e na UEDS. Mas isso j� � conhecido, como o � a not�vel obra que, de algum modo fragmentariamente, foi construindo, como ningu�m, pensando Portugal, as nossas rela��es com a Europa e os pa�ses lus�fonos, em especial o Brasil, como ningu�m escrevendo sobre � e iluminando � os nossos grandes autores. Algum reconhecimento p�blico consistente s� o come�ou a ter, por�m, muito tarde. E nessa altura houve amigos, sobretudo Verg�lio, que lhe falaram de �sobreexposi��o�:
� Se houve ent�o, e agora pode voltar a haver, uma certa insola��o, a verdade � que enquanto outros sempre estiveram na ribalta, eu passei aqui d�cadas a aspirar litros e litros, toneladas, de sil�ncio.
Mesmo ao n�vel das Universidades onde ensinou, os alunos, e a generalidade dos colegas, desconhecia Eduardo Louren�o: ele era apenas Monsieur Faria ou Louren�o de Faria, que dava meia d�zia de horas de aulas por semana e cuja obra ignoravam. Quando ganhou, em 1988, o Pr�mio Europeu de Ensaio, pelo conjunto da sua obra, um aluno que leu a not�cia num jornal veio perguntar a Monsieur Faria quem era aquele... Eduardo Louren�o! Ningu�m sabia.
Um livro in�dito de poemas
O escrit�rio de Eduardo � um reino em simult�neo maravilhoso e assustador, inquietante. � o esplendor do caos... Milhares de livros numa ordem que s� ele sabe, nas estantes, e depois outros tantos pelo ch�o, em montes, misturados com jornais e revistas em profus�o, recortes, folhetos, pap�is de toda a esp�cie. Em cima da ampla secret�ria, o panorama � o mesmo. Para ali ir�, decerto, uma das cartas que hoje, 9 de Maio, o correio lhe trouxe: duas p�ginas inteiras manuscritas, nas quais Dominique de Villepin, o ministro dos Neg�cios Estrangeiros de Fran�a a quem a guerra do Iraque deu projec��o mundial, lhe manifesta grande admira��o, designadamente pelos seus livros dedicados a Pessoa.
Por quanto tempo o destinat�rio saber� dessa carta? N�o prevejo que por muito... O que n�o tem import�ncia. Grave � o facto de j� ter perdido numerosos textos e se temer que perca muitos mais. Inclusive o seu famoso Di�rio in�dito, que escreve desde (ou pelo menos data
de) meados dos anos 40, de forma n�o regular, e de que, at� agora, s� vieram a lume muitos poucas p�ginas. Quando agora procura as caixas em que o tem guardado n�o as encontra: �Desapareceram, desapareceram, parece imposs�vel. Mas onde � que eu as pus?�
CULTURA
No dia seguinte, l� ressuscitaram, e o nosso Escritor de Ideias teve a extrema gentileza de mostrar e ler ao rep�rter, velho amigo, muitas p�ginas suas � absolutamente admir�veis. E, mais, de lhe ler tamb�m poemas. Que, revela��o absoluta, n�o foram alguma coisa de excepcional, passageiro, na sua vida. De tal modo que, em 1955, chegou a pensar em publicar um livro. Tenho aqui � minha frente o projecto da p�gina de rosto, apenas com o nome do autor, a data e o t�tulo: O Dia e a Noite.
Tamb�m dos Di�rio(s) tenho aqui � frente os projectos de t�tulos e apresenta��o de um escritor que, como o seu amado Pessoa, podia ter heter�nimos. E n�o ter� sido essa a sua inten��o inicial? De facto, na p�gina de rosto de um primeiro volume que nunca chegou a sair l�-se (ver foto): O Livro da Alma/ ou/ A Educa��o Portuguesa/ de/ Trist�o Bernardo � Di�rio Metaf�sico/ apresentado/ por Eduardo Louren�o/ 1952. Ou: Trist�o/ Pallha�o do nada. (�Trist�o do Trist�o e Isolda, de que gosto muito, e Bernardo n�o do Soares, ao tempo ainda quase desconhecido, mas do S�o Bernardo�, revela o autor). J� em 1953, havia uma mudan�a no t�tulo, que passou a ser: Trist�o ou/ o Livro da Alma � Di�rio existencial/ apresentado/ por Eduardo Louren�o. E em 1954 o t�tulo era Memorial Rom�ntico.
Mas, agora, Louren�o garante-me:
� Se, se, algum dia o _Di�rio_for publicado, ser� com o t�tulo A Casa Perdida. A casa perdida de Deus, da P�tria e da pr�pria fam�lia.
H� p�ginas escritas em folhas de cadernos, amarelecidas pelo tempo, h� numerosas agendas, quase min�sculas, onde tamb�m escreve ou toma notas. Tudo guardado numa simples caixa de papel�o, tipo caixa de sapatos. Que, pelos vistos, de vez em quando desaparece � e pode arder num inc�ndio ou ser destru�da por qualquer acidente.
� Oh Eduardo, devia guardar os originais e as agendas numa caixa forte, digo--lhe eu.
� E quer uma caixa ainda mais forte do que esta?, responde-me de imediato, muito a s�rio.
� Eduardo Louren�o de corpo inteiro, no seu mundo desconhecido, secreto. Ele e o Outro, Pr�ncipe(s) n�o da Baviera mas de uma Renascen�a que n�o se levasse a s�rio. Passeando-se, distra�do s� para o acess�rio, nas margens fluidas de uma certa genialidade. Tornando-nos melhores. E a Portugal tamb�m.
ENTREVISTA
� O que eu queria mesmo era voar�
Louren�o afirma-se �cada vez mais, um crist�o�.
E s� deseja �ser escritor�
Extractos, aqui em pergunta e resposta, da longa entrevista com o autor de O Labirinto da Saudade e outros livros fundamentais da cultura portuguesa
VIS�O: Como vai o azeite?
EDUARDO LOUREN�O: Que � que diz?
V: Ent�o tem ali umas oliveiras � aqui n�o � o seu Vale de Lobos...?
EL: Ah!, eu nem para isso tenho jeito... O Alexandre Herculano, al�m de historiador e outras coisas, era lavrador na alma, tinha um grande sentido do concreto. Eu sou neto de lavrador, mas com o meu av� encerraram-se centenas de anos de liga��o � terra. Eu pirei- _-me_para o c�u.... [_risos_]
V: Est� aqui por necessidade de se distanciar ou s� por for�a das circunst�ncias?
EL: Nunca tive um projecto determinado de fazer o tipo de vida que acabou por ser a minha. Vim para aqui por uma s�rie de conting�ncias que acabaram por se transformar numa necessidade � e converter num destino.
V: Vive sozinho com a Annie na periferia de uma pequena cidade a mais de dois mil quil�metros do seu pa�s. Solid�o?...
EL: Mais isolamento do que solid�o. A solid�o �-me co-natural. Mas acabamos por ser tamb�m do lugar onde estamos e vivemos. Estou sempre aqui e l�, sempre � espera de not�cias de Portugal � onde estou o mais presente poss�vel para um ausente.
V: �s vezes, se calhar, at� mais presente do que se estivesse l�...
EL: Provavelmente. Quem sai e est� tantos anos fora do Pa�s � tamb�m estrangeiro, n�o estrangeirado...
V: ...que � uma coisa que o irrita...
EL: ... que me enerva que me chamem. Conhe�o Portugal todo, mas, em geral, superficialmente. N�o conhe�o o Portugal andado, como era o caso do Torga, pelo menos em rela��o ao Norte, do Saramago e de outros que at� fizeram disso objecto de cria��o. Eu s� tenho um espa�o particular, reservado, que � o da minha aldeia. Da minha aldeia e desses dez anos que a� vivi e foram diferentes de tudo o resto que me aconteceu. Estava no mundo ou o mundo estava em mim. Depois, nunca mais soube, realmente, onde estou e nunca o saberei.
V: Mas ent�o Coimbra, Lisboa?
EL: A liga��o com a minha aldeia foi permanente e s� deixou de o ser nos anos 60, quando comecei a ter problemas em vir a Portugal sem me chatearem. Com o 25 de Abril, foi como se Portugal todo se transformasse numa extens�o da minha aldeia. Senti outra vez que tinha um s�tio meu, que n�o me exilava ou for�ava ao auto--ex�lio. A generalidade dos portugueses, com o 25 de Abril, ganhou a liberdade; eu ganhei tamb�m um Pa�s.
V: Voltando atr�s...
EL: Coimbra, que ent�o tinha ainda uma esp�cie de hegemonia cultural, era verdadeiramente o �nico mito cultural portugu�s, foi a terra mais importante, decisiva, para o meu percurso intelectual � e continua a ser uma presen�a muito forte na minha mem�ria. Lisboa era o mundo: fascinou-me.
V: Teve uma forte forma��o religiosa, em Coimbra ainda era cat�lico praticante?
EL: Nunca deixei verdadeiramente de o ser.
V: Cat�lico? Praticante deixou.
EL: Mesmo praticante, posso voltar a s�-lo de um momento para o outro. A minha vida, nesse aspecto, deixou de ser ritualizada, como deve ser por quem leva a s�rio uma certa pr�tica religiosa, para passar para um plano mais simb�lico. Mas dos s�mbolos podem fazer parte actos que nos devolvem a sentimentos ou gestos que sup�nhamos sem sentido e continuam mais vivos que a nossa f� morta.
V: Mas se lhe perguntar, agora, se � cat�lico ou agn�stico...
EL: Essa � uma pergunta que nem sei se pode ser formulada; e que da minha parte n�o tem resposta. Penso � que h� uma coisa inalter�vel: o meu enraizamento no cristianismo. A coisa mais importante, mais fundamental, que me aconteceu, foi ter nascido crist�o [_fala mais pausadamente, quase em surdina e com vis�vel emo��o_]. Ser crist�o � um destino. Com todas as consequ�ncias que isso tem e implica. Quando a pessoa ainda n�o tem consci�ncia de si j� banhou na �gua simb�lica do baptismo � e isso � indel�vel. Sou, cada vez mais, um crist�o.
V: Cada vez mais, como?
EL: Como inscri��o cultural, essencial, na vis�o crist� do mundo, na sua radical universalidade. No papel conferido ao Outro na defini��o da humanidade.
V: N�o � a sua forma de ser humanista?
EL: � a de um cristianismo problem�tico, de questionamento, que mais tarde foi, de algum modo, retomado em termos de existencialismo crist�o. O meu ser crist�o n�o tem apenas como referente a perten�a a um tipo de religiosidade hist�rica muito marcada pela nossa tradi��o ib�rica, conotada com um certo conservadorismo e at� fanatismo, mas tamb�m uma viv�ncia dele, mais pr�xima da mensagem evang�lica original. A que n�o vive tanto do passado como do futuro e o modela. [Falamos depois de leituras neste dom�nio,
EL refere A Imita��o de Cristo_, livro de refer�ncia de R�gio, confessa que Pascal est� mais presente nele que Montaigne e fil�sofos a seu respeito muito citados, a prop�sito da B�blia diz ser �o texto fundador da cultura a que pertencemos�, da� passa para outro plano e afirma-se �herdeiro de um combate cultural e espiritual que come�ou entre n�s com o advento do liberalismo �. Faz depois uma incurs�o pelos seus admirados Herculano Garrett, eu pe�o-lhe o favor de n�o �fazer um ensaio� a partir de cada pergunta que lhe coloco, mas nem Eduardo consegue suster a corrente impetuosa do infind�vel e criador rio caudaloso que � o pensamento de Louren�o. Fala de livros e escritores, sobretudo dos amigos mais pr�ximos como Verg�lio Ferreira, de pintura, de m�sica, de pol�tica, de tudo]_
V: Qual o principal segredo da diferen�a, que � n�tida, das suas an�lises, em especial de textos liter�rios?
EL: Fa�o de tudo uma esp�cie de leitura po�tica, de puzzle de fic��o. Unamuno pensava que Hegel era um grande fil�sofo porque era um grande poeta. E Heidegger entendia que os fil�sofos s�o, a seu modo, poetas.
V: Em rela��o a Fernando Pessoa, que iluminou, reinventou, como ningu�m...
EL: O Pessoa tornou-se-me num caso patol�gico de osmose, glosa, fixa��o, uma esp�cie de Deus inimigo �ntimo com quem tem de se combater e de que nunca se sai. No Pessoa est� tudo. Mas sempre tive uma grande repugn�ncia em me servir dele como mat�ria �lucrativa�, mesmo a n�vel universit�rio, talvez porque sempre fui, na Universidade, um outsider.
V: Em que sentido?
EL: Nunca investi nada na Universidade. Nunca fiz da carreira universit�ria um sentido de vida. A Universidade foi apenas, para mim, uma forma de ganhar a vida � ou de n�o morrer de fome. Cheguei a estar matriculado na Sorbonne para apresentar uma tese de doutoramento, que poderia ser sobre o Pessoa, mas nem sequer admiti essa hip�tese.
V: J� me disse que era s� um �comentador ou glosador de temas filos�ficos �. Sem esse excesso de mod�stia, � ou n�o � um �fil�sofo da cultura�, como lhe chama Maria Manuel Baptista?
EL: Sou algu�m que faz da cultura objecto de reflex�o, que se preocupa com saber o que ela � � talvez um falso conceito, porque demasiado largo. Sem me comparar a ele, sou talvez alguma coisa semelhante ao que Ortega e Gasset foi em Espanha, uma esp�cie de �fil�sofo escritor �, al�m de �espectador�. Alguns tamb�m me consideram um �pensador�. Mas agora com o Gabriel � uma chatice! Para ele, sobretudo...
V: Se lhe perguntassem como o classificar, num asterisco a acrescentar a um texto eu, publicado na Alemanha ou China, que responderia?
EL: A �nica coisa que verdadeiramente eu quero ser � escritor � o resto n�o me interessa nada. Poeta, ainda seria melhor. Como n�o pode ser, escritor... [_risos_]
V: Mas, que � escritor, e bom, � �bvio.
EL: N�o � �bvio para toda a gente. Ainda agora organizaram uma Rota de Escritores da minha regi�o e eu n�o estou l�. De facto, n�o sou poeta, por isso deixei de escrever versos: a puls�o po�tica passou para os textos ensa�sticos. E n�o sou ficcionista, embora a fic��o n�o esteja ausente de muitos desses textos.
V: Vai fazer 80 anos: embora n�o goste de balan�os, n�o posso deixar de lhe perguntar qual � o que faz do seu �tempo de tempos�?
EL: [_Pausa longa, suspiro fundo_] O que a gente faz, ou o que eu fiz, � uma esp�cie de fuga para a frente. Para fugir de qu� e para chegar onde? Para esquecer, a s�rio, que somos mortais. � uma fuga real, n�o uma morte romanticamente estilizada, a alguma coisa que est� atr�s de n�s e nos espera. O que a gente faz � mobilar esse intervalo entre um princ�pio que n�o � da nossa responsabilidade e um fim que est� sempre presente e � tamb�m uma fic��o.
V: E quanto � �mob�lia�...
EL: Resumindo: passei a vida a sonhar. E a forma desse sonho foi ler. � margem do sonho e das leituras infindas, registei o eco dessa viv�ncia, dessa distrac��o sublimada.
V: S� �registou�?
EL: Como algu�m que se destinava a ser professor de Filosofia, procurei saber o que � a realidade das coisas, o que � a verdade, a vida, este mundo, todas essas interroga��es a que chamamos a puls�o filos�fica. Simplesmente, para mim a verdade nunca foi um �objecto�, ou � o objecto da fic��o suprema, sempre presente e sempre fora do nosso alcance.
V: Quando acha que esteve mais pr�ximo de fazer o que queria fazer, de ressonhar, ou voltara sonhar, por conta pr�pria...
EL: Por conta pr�pria � tudo. Mas [_pensa_] um sonho filtrado pelo sonho dos outros, a cujo conjunto chamamos a cultura. A obra em que eu estou mais presente, embora atrav�s de outro, � no Fernando Pessoa Revisitado, escrito num impulso pulsional, em 23 dias. Nesse livro est� tudo o que eu penso e sou, falando da forma mais distanciada e �ntima de mim pr�prio. � o meu romance. Quem o leu bem foi o Carlos de Oliveira, que me disse: aquele, �s tu.
V: Pensa muito na morte, na sua morte?
EL: Oitenta anos n�o passam em v�o. Quando temos uma sensa��o quase f�sica desse fantasma, desse terror suspenso, � na adolesc�ncia. Com a morte dos outros, que amamos (a nossa morte n�o tem sujeito), isso confirma-se, o impens�vel est� ali, � o desastre completo, que com o tempo serve para acalmar, ado�ar, essa obsess�o, esse p�nico diante da morte, passa a ser fonte de aceita��o e sabedoria. A mais alta forma de caridade [_fala com emo��o_] � aceitar a nossa morte porque os outros que n�s amamos tamb�m morreram.
V: Mas tem medo da morte ou n�o?
EL: Quando estive perto dela, o que j� aconteceu duas vezes, entrei num registo de grande serenidade, como se isso n�o me dissesse respeito. A realidade apaga as coisas.
V: N�o pensa pedir que o vistam com um h�bito de franciscano, como o Jaime Cortes�o?
EL: N�o, n�o. At� aos dez anos era muito espont�neo, extrovertido. Depois, fui-me tornando de uma timidez doentia. E todas essas coisas me impressionam muito. Mesmo entregas de pr�mios, homenagens, cenas assim, criam-me um enorme stress. Depois de uma delas, das primeiras, estive seis meses sem escrever uma linha. Foi como se tivesse assistido ao meu pr�prio enterro.
V: Notoriamente n�o se deixa institucionalizar, uma vez disse-me at� que era muito �agarotado �. � um homem em que a inf�ncia n�o morreu?
EL: Sempre fui muito sens�vel ao espect�culo da petrifica��o humana, � pose da seriedade, aos que transportam a sua pr�pria est�tua. Que tamb�m atinge escritores e at� poetas. Vivi a inf�ncia com tal intensidade, tal for�a, tal alegria, que, mesmo sem voluntarismo, de facto recuso deix�-la morrer.
V: Tamb�m n�o se �programa� nem se deixa programar...
EL: Como diz a Annie, eu escolho sempre o caminho mais f�cil. Sou t�o pregui�oso... Se o n�o fosse, aos 27 anos, o m�ximo 30, teria sido prof. de Coimbra, catedr�tico, ficaria l� naquele dolce farniente, anos e anos talvez a repetir-me. Com sorte, teria sido um bom professor, como outros o foram e s�o. Assim, tive esta vida de n�mada, de cigano � for�a, que n�o foi uma op��o mas uma necessidade. Que resultou do meu diletantismo absoluto: o diletantismo como forma de vida [_risos_]. At� tenho esses v�rios livros para publicar e n�o publico!
V: Mas h� a� uma contradi��o, porque o que j� escreveu mostra que n�o � pregui�oso, s� desorganizado � e valoriza o trabalho dos outros desvalorizando o seu: � a grande excep��o entre tanta �estrat�gia de gl�ria�.
EL: Sou � um amador de mitos. Quase toda a gente � her�i para mim: escritores, actores, cantores, futebolistas. Salvo eu [_risos_]. Vivo na admira��o desse mundo ideal, como se tivesse dez anos. Entrei nesse mundo maravilhoso, como no cinema, e n�o voltei a sair. Tudo para mim � cinema, espect�culo: at� a Hist�ria. E eu sou um �espectador�, no sentido que o Ortega e Gasset lhe deu.
V: Isso lembra-me o Pessoa/Ricardo Reis: �S�bio � o que se contenta com o espect�culo do mundo�...
EL: �. Mas eu, sendo t�o espectador, meto-me: antes do 25 de Abril pela situa��o que o Pa�s vivia, com a ditadura; depois dele para contribuir para o que entendia ser urgente fazer. N�o podia ficar � margem.
V: Afinal nunca foi, portanto, um espectador. Se tivesse ficado s� catedr�tico � que o seria.
EL: Como disse h� bocado, sou muito contradit�rio. Tenho as contradi��es de todos os Portugais poss�veis. E sempre quis articular as contradi��es da nossa Hist�ria e da nossa Cultura, percebendo como funcionam, nessa realidade labir�ntica que recusa o preto e branco. Eu estou dentro dessas contradi��es e tento...
V: ... super�-las?
EL: N�o, pens�-las, pens�-las. Isso � o ensaio � Montaigne, sem a pretens�o de nele me inscrever. A hist�ria humana � um espect�culo mas tamb�m, se n�o uma trag�dia, um drama, como a leitura juvenil do Hegel, um pensador tr�gico, me ajudou a compreender. Um drama no sentido mais romanesco do termo, que como tal vivo. Por isso gosto tanto de Hist�ria.
V:Gosta de Hist�ria, dedicou-se � Filosofia, desejava ser poeta, escritor de fic��o, autor de teatro � tendo escrito, na cabe�a, pelo menos uma pe�a �, a m�sica proporciona-lhe hoje uma emo��o �mpar. O que n�o queria ser � o que �?
EL: Isso � agir por defeito [_risos_]. N�o me quero caluniar, mas sou muito consciente de que me falta a criatividade e originalidade de grandes figuras do passado e do presente. Tenho o sentimento dessa riqueza imensa e n�o me consigo situar, mesmo numa escala m�nima, nessa fam�lia de gente que tamb�m quis atingir qualquer coisa. Eu s� tenho exist�ncia... f�sica, embora quisesse ter uma esp�cie de exist�ncia ang�lica. O que eu queria mesmo era voar, voar!
80 Anos
Por ENTREVISTA POR ADELINO GOMES E CARLOS C�MARA LEME Sexta-feira, 23 de Maio de 2003
Eduardo (Louren�o), o rei da nossa Baviera
H� muito que Eduardo Louren�o, em torno da literatura e da poesia, nos habituou a pensar Portugal. A aventura come�ou em 1949 com "Heterodoxia". O heterodoxo queria abrir uma fenda em duas "ortodoxias circulantes": o salazarismo e o estalinismo. Marcou o seu terreno e, para muitos, � uma voz �nica na paisagem da contemporaneidade portuguesa.
Aos 80 anos, que faz hoje, a reflex�o mant�m-se. Eduardo Louren�o n�o perdeu nem acutil�ncia nem lucidez. E � desconcertante: quer quando fala de Salazar e do fascismo, do 25 de Abril, dos militares, da descoloniza��o, da nossa hist�ria e da identidade, de Portugal (obviamente). Eduardo Louren�o � - e glosando o t�tulo de uma das suas obras mais emblem�ticas - o rei da nossa Baviera.
"Uma revolu��o com flores n�o d�!"
P�BLICO - Estamos a um ano de comemorar os 30 anos da queda da ditadura. O fen�meno do fascismo e, em particular, da figura de Salazar, n�o continua a pedir uma explica��o?
EDUARDO LOUREN�O - Claro! A classe intelectual, e os portugueses em geral, foi sempre muito despreocupada sobre aquilo que se fez. Fazem e acabou-se! Temos uma grande no��o do presente. E o que passou, passou. Compare-se com o fascismo italiano que acabou na trag�dia que se sabe: h� bibliotecas inteiras sobre Mussolini. Aqui nunca se passsa assim e, no entanto, foram 40 anos de um regime.
Porque uma coisa era a superestrutura de ordem pol�tica e ideol�gica; outra � a vida que continuou a funcionar, sen�o n�o t�nhamos exist�ncia nenhuma. Quem estava na cadeia, que estava fora do sistema, tinha que lutar contra o sistema. Mas era um Portugal minorit�rio e concentrado no Partido Comunista Portugu�s. S� depois de 1945, com as elei��es presidenciais, � que o pa�s acordou para uma oposi��o que se manifestava durante um m�s. Ap�s o sobressalto das elei��es voltava tudo ao mesmo. At� ao caso do Delgado, a� come�a uma nova fase.
Mas como � que explica que Salazar tenha permanecido no poder mesmo depois de 1945, mesmo com o caso Delgado...
... o Salazar estava certo com este pa�s! A democracia � que era excep��o! N�o era a regra. Desde a tomada do poder pelo Mussolini at� ao fim da II Guerra Mundial, s� a Inglaterra e parte da Fran�a � que eram pa�ses de democracia plena. E tinha um �libi supremo: a Uni�o Sovi�tica. E Salazar jogou habilmente no novo contexto da Guerra Fria.
Foi um pol�tico h�bil?
Muito h�bil. S� n�o o foi na gest�o da parte colonial. N�s est�vamos l� para ver (risos). Ele chegou para o pa�s e sobrava! Se n�o tivesse ca�do da cadeira a gente n�o sabe onde � que a gente estava (gargalhada).
Onde estava no 25 de Abril?
Tinha aulas nesse dia e cheguei � universidade e disseram-me: "Olhe, professor, parece que houve uma revolu��o l� no seu pa�s."
E acreditou?
Disse com os meus bot�es: "Foi o Ka�lza" [de Arriaga]. �s onze horas vieram-me dizer: "N�o. Foram militares, mas gente democr�tica."
O 25 de Abril, foi uma revolu��o?
(Sil�ncio) Pelos seus efeitos, na ordem pol�tica e ideol�gica, foi uma revolu��o. Mas uma revolu��o com flores n�o d�! O que teve de maravilhoso foi isso mesmo: foi uma coisa �nica. Oxal� que todas as revolu��es fossem assim... Houve momentos revolucion�rios mas que j� eram arcaicos. N�s pod�amos ter ido para uma Cuba na Europa. Mas eu olhava para o mapa e dizia: "S� se os EUA quiserem." E parece que havia uma parte da Administra��o americana que queria dar o exemplo de que a revolu��o n�o funcionava - nem aqui nem em parte nenhuma, matando o bicho de uma vez.
"N�s fizemos um esfor�o em �frica absolutamente delirante"
Sobre o "labirinto da saudade", que � Portugal, n�o se enganou na avalia��o que fazia dos militares? N�o andou um pouco perdido sem perceber o que � que os militares queriam? Prefacia "Alvorada em Abril", de Otelo Saraiva de Carvalho...
... essa hist�ria � engra�ada. Foi Otelo, que eu n�o conhecia como toda a gente, que me pediu, por telefone, o pref�cio. Eu n�o tinha lido o livro.
Para mim o que � que ele significava? Pensava assim: "Era como se estivesse estado em Caxias e ele me tivesse tirado de l�." Foi assim que eu recebi o 25 de Abril e ainda o sinto assim! Fiz uma coisa de tipo gen�rico e s� lhe perguntei uma coisa: se ele tratava mal o Ramalho Eanes. Otelo disse-me que n�o, que era um relato da revolu��o. Quando recebi o livro fiquei passado. Passei a noite a l�-lo. � extraordin�rio. As p�ginas finais s�o uma coisa espantosa. � uma coisa �pica. Infelizmente, depois, ele n�o esteve � altura dos acontecimentos que vieram a seguir.
E a seguir aproximou-se do Grupo dos Nove. Depois aparece a figura de Ramalho Eanes, de �culos escuros � Pinochet, no 25 de Novembro. Mais tarde, aplaude o aparecimento do PRD. Politicamente, no seu percurso n�o � o tiro no p�?
Vamos por partes. Quando comecei a escrever no "Expresso" percebi que os militares condicionavam tudo e que era preciso "civiliz�-los" o mais poss�vel. Depois, o meu livro "Os Militares e o Poder", que sai em 1975, � muito anterior. Comecei a escrev�-lo depois da hist�ria do Delgado e destinava-se a uma interven��o ut�pica, e um pouco delirante, porque sabia que se ele viesse a lume ent�o nunca c� mais punha os p�s.
"Os Militares e o Poder" pretendia tra�ar a desestrutura��o dos tr�s grandes obst�culos que faziam parte da nossa vida: a Igreja, o Ex�rcito e a economia. Para a economia n�o estava habilitado; com a Igreja sentia-me mais � vontade e os militares que eu conhecia bem - tinha andado no Col�gio Militar e o meu pai tamb�m era militar. Pensava que as realidades mais opacas precisavam de ser pensadas.
Infelizmente se estiv�ssemos em democracia, o livrinho poderia ter tido outro eco. O regime de um lado era completamente opaco nesse cap�tulo e a oposi��o do outro era simplista - entregamos as col�nias, acabou. Eu n�o queria nem uma coisa nem outra.
Subscreve a ideia de Ant�nio Jos� Saraiva - na altura muito contestada porque decorreu num debate com alguns dos militares de Abril, no Centro Nacional de Cultura - e que parece hoje ser consensual, segundo a qual n�s sa�mos de uma maneira vergonhosa das col�nias, com o rabo entre as pernas?
Ele telefonou-me quando isso aconteceu. Eu disse-lhe que dizia a mesma coisa s� que de uma forma mais suave. Na Guin�, a coisa estava perdida. Em Mo�ambique e Angola n�o. Mas aten��o: n�s fizemos um esfor�o em �frica, em termos hist�ricos, absolutamente delirante, t�o ou s� compar�vel � dos Estados Unidos, no Vietname. Do ponto de vista militar aquilo n�o estava perdido...
Ant�nio Jos� Saraiva dizia que Portugal era respons�vel por muito do que se estava a passar em Angola e Mo�ambique a seguir � independ�ncia. Timor, a essa luz, n�o foi uma forma de ajustar contas com a nossa consci�ncia?
Claro e eu fui um deles. Foi a �ltima pedrinha de n�s, preservar Timor, e ficar com a consci�ncia tranquila com o resto do que foi a descoloniza��o. Mas temos que assumir, na totalidade, a nossa hist�ria.
"Agora estamos todos no mesmo barco"
Muita coisa se alterou nos �ltimos anos. N�o s� com o 25 de Abril mas tamb�m com a ades�o � CEE. Hoje estamos confrontados com um novo desafio - a nossa eventual dilui��o na Europa. Preocupa-o?
N�o, n�o! Porque a Europa j� est� dilu�da. Antes n�o est�vamos � altura de um desafio concreto, agora estamos todos num mesmo barco. "H�las!" Um barco naufragado chamado Europa e mais do que nunca depois desta guerra do Iraque. Porque, desta vez, a dificuldade da constru��o da Europa n�o vem de dentro, que � de h� s�culos, mas vem de uma outra for�a exterior que divide a Europa no seu interior.
Este jogo que est� fazendo os EUA opondo a Europa de Leste, as democracias populares que se tornam americanas, era imprevis�vel. Porqu�? Porque s� agora nos demos conta que a Europa est� ocupada desde 1945. E bem ocupada! N�o � s� a puls�o do imperialismo de um tipo novo da Am�rica. Foram as contradi��es da hist�ria europeia que convidaram os americanos para nos salvar duas vezes, num espa�o de 25 anos, e eles quando chegaram � �ltima, j� estavam c�.
N�s n�o temos a percep��o porque Portugal n�o foi ocupado, n�o precisa de ser ocupado. V� a It�lia: eu assisti � chegada do embaixador americano - � como um tipo que chega ao Iraque. � igual. N�s pass�mos por essa situa��o: no s�culo XVIII, os embaixadores de Inglaterra e de Fran�a mandavam neste pa�s.
Em suma: para as for�as que temos, para o pa�s que �, Portugal tem tido uma habilidade para a conserva��o do essencial, que � o m�ximo. A nossa Hist�ria n�o � tr�gica, � muito protegida. Mesmo quando a Espanha esteve aqui, Portugal nunca perdeu a sua identidade real. Os espanh�is at� pediam autoriza��o para ir para a parte portuguesa! Portugal era a na��o mais coerente do ponto de vista da Europa e tem uma esp�cie de identidade forjada a partir da sua pr�pria fraqueza. Isso � que � verdadeiramente extraordin�rio - tivemos esta capacidade de fazer da fraqueza for�a.
Essa for�a ou fraqueza n�o estava impl�cita no t�tulo e no conte�do - que alguns distraidamente chegaram a ler � letra - de "O Fascismo Nunca Existiu", sa�do em 1976?
O t�tulo est� certo! Mas quando escrevi era, na verdade, ir�nico (risos).
"O que me preocupa � que aqui a Justi�a n�o funciona"
� volta dessa gal�xia que � Portugal um dia escreveu: "Um portugu�s que � s� portugu�s n�o � portugu�s." Acha mesmo que h� uma essencialidade portuguesa que nos distingue do espanhol, do ingl�s ou do franc�s?
� muito dif�cil de explicar... Essa frase � do fil�sofo alem�o Fichte, que � considerado o pai do nacionalismo alem�o. E � muito interessante que seja um fil�sofo como Fichte que o diga: "Um alem�o que � s� alem�o n�o � alem�o." Cuidado: isto n�o vai ter ao Hitler.
Na verdade, acho que o portugu�s � outra coisa. Claro que o discurso sobre a identidade � sempre muito difuso e est� muito impregnado em "O Labirinto da Saudade" pelas teses de Ortega y Gasset: n�s somos Hist�ria, historicidade. Mas esse � que � o mist�rio: uma coisa � constatar que n�o h� uma portugalidade em si, inscrita contra as pretens�es do que era a ideologia conservadora do Estado Novo, da lusitanidade. Numa primeira fase eu sou muito hostil, e mesmo contra. Portugal � a sua hist�ria, Portugal foi coisas diversas e est� sendo coisas diversas.
Por�m, h� uma coisa interessante: � a continuidade e, sobretudo, uma esp�cie de "coisa im�vel". � algo dif�cil de se apreender.
N�o � nenhuma transcend�ncia, � uma pr�tica: simplesmente h� sempre uma dial�ctica entre mudan�a e perman�ncia. Sempre. Sem parar. E, talvez no caso de Portugal, isso � capaz de ser mais acentuado, porque fic�mos muito cedo no interior da Pen�nsula; as nossas ideias mentais e simb�licas s�o id�nticas � da Espanha. Oliveira Martins percebeu muito bem isso: at� ao s�culo XIV n�o � poss�vel fazer uma hist�ria separada. Havia pequenos portugais e s� um � que vingou - foi o nosso. E mais tarde, n�s e a Espanha fic�mos como uma aldeia em rela��o ao processo geral da Europa.
S� que h� uma paradoxo: Portugal sendo t�o aldeia, com uma cultura t�o r�stica como � a nossa, que teve tanta dificuldade em entrar na modernidade, t�nhamos sempre um p� c�...
... no fundo � sua express�o "s� fomos maiores fora de n�s." � isso?
�. S� que agora, e esse � um dos nossos problemas, n�o temos n�s. Agora estamos, realmente, confrontados com os outros. Porque com a nossa Hist�ria � uma Hist�ria de fuga para a frente e � bem sucedida para essa esp�cie de identidade em que nos implicamos. A coisa foi - � - fant�stica.
Agora fala-se muito em que estamos na periferia da periferia. Mas no s�culo XV est�vamos na vanguarda. E depois pass�mos a estar no centro do Mundo. E mais: nunca tivemos, de uma maneira tr�gica, um inimigo com que nos tiv�ssemos de confrontar ou dialogar. N�s t�nhamos, a partir da defini��o do mundo camoniano, o Isl�o; a coisa terminou em Alc�cer Quibir, sem terminar porque vamos encontr�-lo depois na �ndia. Mas aqui fic�mos protegidos da �nica coisa que nos assombra: o relacionamento do que est� ao nosso lado.
O que � que fizemos? Volt�mos as costas, pelo menos na apar�ncia, e pass�mos a empenharmo-nos na ordem pol�tica na alian�a com a Inglaterra e na ordem econ�mica com a Fran�a. Mas nunca tivemos o confronto.
Como v� a actual situa��o do pa�s: os casos de pedofilia, corrup��o dos autarcas, o ministro da Defesa, com o caso Moderna, a ideia de que a sociedade portuguesa, de repente, parece n�o se conhecer...
...s�o tudo sintomas de que algo n�o est� a funcionar, numa democracia j� consolidada e estabilizada como a nossa. Sente-se uma certa inexperi�ncia deste Governo em mat�ria de gest�o das coisas talvez porque tenha ca�do, literalmente, do c�u.
Mas � preciso contextualizar as coisas: estes esc�ndalos p�trios s�o uma gota de �gua comparado do que se passa em It�lia. Reparem: ao n�vel mais alto � o pr�prio primeiro-ministro que p�e em causa a pr�pria justi�a do seu pa�s. Ele pr�prio condiciona a justi�a. � um caso... Mas a It�lia � sempre um caso, foi sempre ali�s, e n�o vejo maneira de deixar de o ser.
Agora, o que me preocupa � que aqui a justi�a n�o funciona: os casos s�o denunciados e depois d� tudo em �guas de bacalhau. E criou-se um h�bito p�ssimo: as pessoas s�o julgadas na televis�o mesmo que tenham sido ilibadas. Desde o Presidente da Rep�blica at� ao Procurador Geral da Rep�blica todos t�m uma palavra a dizer. N�o � poss�vel que a televis�o passe a ser um tribunal p�blico, sem contradi��o, sem direito a resposta. � algo de inimagin�vel.
P�BLICO, 23-5-2003
Imagens Que Sublinham as Entrelinhas do Texto Por �LVARO VIEIRA
Sexta-feira, 23 de Maio de 2003
Tem algo de paradoxal a fotobiografia de Eduardo Louren�o que � apresentada hoje, �s 18h30, na Biblioteca Joanina da Universidade de Coimbra: � uma fotobiografia que reserva o papel principal ao texto.
As cerca de 300 imagens reunidas na obra de Manuela Cruzeiro e Maria Manuel Baptista foram seleccionadas em fun��o dos escritos de Eduardo Louren�o. O que n�o implica que as fotografias tenham um estatuto meramente acess�rio.
"A ideia foi reproduzir fotografias que alterassem o contexto e permitissem outra leitura dos textos" de Louren�o, explica Maria Manuel Baptista, do Departamento de L�nguas e Cultura da Universidade de Aveiro. Muitas fotografias sublinham a ironia, sem a qual n�o � poss�vel perceber os textos de Eduardo Louren�o. Ou o sentido l�rico, de muitos textos de apar�ncia puramente conceptual. "N�o � uma fotobiografia 'voyeurista', no sentido de nos oferecer imagens sobre o homem por detr�s da obra", acrescenta Manuela Cruzeiro, investigadora do Centro de Documenta��o 25 de Abril da Universidade de Coimbra.
� por isso que Maria Manuel Baptista n�o hesita em classificar o livro, editado pela Campo das Letras com o patroc�nio de Coimbra 2003 Capital Nacional da Cultura e do Instituto de Estudos Ib�ricos da Faculdade de Letras de Coimbra, como "uma fotobiografia intelectual".
Subdividida em cap�tulos como "Tempo da Guarda", "Tempo de Coimbra", "Tempo de Vence", a fotobiografia acompanha a ordem cronol�gica da err�ncia geogr�fica que levou o ensa�sta a Paris, Heidelberg, Montpellier, S�o Salvador da Ba�a, Grenoble e Nice, at� se radicar em Vence, h� quase 20 anos.
Mas a concep��o do livro n�o traduz uma obsess�o literalmente cronol�gica. Aqui, os "Tempos de Eduardo Louren�o" s�o, sobretudo, os contextos mentais. A l�gica desta edi��o "n�o � o tempo da escrita, � o tempo escrito", diz Manuela Cruzeiro.
Este foi o princ�pio que presidiu tamb�m � rela��o cronol�gica de todos os textos assinados por Eduardo Louren�o. Maria Manuel Baptista e Manuela Cruzeiro - ambas de forma��o filos�fica e autoras de teses de doutoramento e mestrado, respectivamente, sobre a obra do autor de "Heterodoxia" - garantem que "Tempos de Eduardo Louren�o: uma Fotobiografia" ser� a obra de refer�ncia para outros estudiosos lourencianos. Dizem ter consci�ncia de que a data��o de alguns escritos n�o coincide com a de outras cronologias publicadas, mas asseguram que s�o estas que laboram no equ�voco: seja porque Eduardo Louren�o publicou ensaios d�cadas depois de os ter escrito, dado que estes se mantinham actuais; seja por ele ter "uma �ptima mem�ria sem�ntica, mas uma p�ssima mem�ria para datas" que o ter� levado a enganar-se na data��o dos seus pr�prios textos.
"Este � que ser� o meu verdadeiro di�rio", ter� comentado Eduardo Louren�o sobre a fotobiografia, numa refer�ncia ir�nica ao di�rio que editores e jornalistas o pressionam a toda a hora para publicar.
As autoras acusam Eduardo Louren�o de lhes ter dado muito trabalho: descobriram-lhe mais de 900 textos, desde cr�nicas mundanas sobre a vida de Paris, a moda, cr�ticas de cinema e at� reflex�es sobre o turismo, publicados nas revistas e em boletins os mais inesperados. Nem o autor se lembrava de muitos deles, garantem as bi�grafas.
A grande ajuda com que contarem, ao longo de tr�s anos, foi a de Adriano Faria, irm�o de Louren�o e "o seu mais zeloso arquivista". Eduardo Louren�o ter� acompanhado a elabora��o do livro "mais � margem, sem grande participa��o directa". Com um misto de mod�stia e pudor.
"Tempos de Eduardo Louren�o: uma Fotobiografia"
Maria Manuel Baptista e Manuela Cruzeiro
Campos das Letras
264 p�gs., 42 euros e 42 c�ntimos.
| | Eduardo Louren�o Quatro Obras para Ler Por C.C.L. P�BLICO, Sexta-feira, 23 de Maio de 2003 Heterodoxia, 1949, Coimbra Editora (Volumes I e II na Ass�rio & Alvim, 1987) A "opus magnum". Mais do que incluir a sua tese de licenciatura ("O Sentido da Dial�ctica no Idealismo Absoluto"), "Heterodoxia" enuncia todo um programa que, at� hoje, tem servido como a l�mpada de Aladino de Eduardo Louren�o: "No plano do conhecer ou no plano do agir, na filosofia ou na pol�tica, o homem � uma realidade dividida. O respeito pela sua divis�o � 'Heterodoxia'." O Labirinto da Saudade, 1978, Publica��es Dom Quixote � o seu livro mais conhecido e, certamente, o mais glosado. Louren�o n�o est� tanto preocupado com Portugal mas em "psicanalis�-lo" a partir de uma "imagologia": "N�o escrevi estes ensaios para recuperar um pa�s que nunca perdi, mas para o 'pensar' com a mesma paix�o e sangue-frio intelectual com que o pensava quanto tive a felicidade melanc�lica de viver nele como prisioneiro de alma." Fernando, Rei da Nossa Baviera, 1986, Imprensa Nacional-Casa da Moeda H� muito que a voragem labir�ntica dos heter�nimos perseguia o autor de "Pessoa Revisitado" (1973). Nesta face-a-face com o desassossego pessoano, Eduardo Louren�o escreve: "Custa-me imaginar que algu�m possa um dia falar melhor de Fernando Pessoa que ele mesmo." Mas o milagre acontece. Louren�o revela-nos um outro Pessoa, possivelmente mais acess�vel. O Esplendor do Caos, Gradiva, 1998 Numa "missa cantada do nosso fim do s�culo", Eduardo Louren�o volta aos mosqueteiros que nunca deixou de re-inventar e de que �, afinal de contas, herdeiro fiel: a Gera��o de 70. "O que a caracterizou e a definiu verdadeiramente foi a capacidade de mitificar a realidade qualquer que fosse, impondo-lhe um estilo, atribuindo-lhe um papel no vasto drama espiritual em que se convertera para eles a cultura e de que eles pr�prios eram ao mesmo tempo os actores, os inventores, e os consumidores consumidos." | | | ----------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------- | |
Eduardo Louren�o
Segunda-feira, 26 de Maio de 2003
Vaca sagrada da cultura portuguesa? N�o me sinto, mas pelos vistos tomam-me!
Texto Adelino Gomes e Carlos C�mara Leme
Quem � o Eduardo Louren�o de Faria?
(Longo sil�ncio.) Se me conhecesse minimamente, como � sua obriga��o, n�o me fazia essa pergunta porque sabe que ela n�o tem resposta. E, sobretudo, resposta minha. Em geral, n�s somos o discurso dos outros. N�s, por n�s pr�prios, n�o temos discurso. N�o devemos ter. Mas mesmo que quis�ssemos ter tamb�m n�o t�nhamos. Agora, cada um, no seu relacionamento com o outro tem uma imagem. Culturalmente, no dom�nio da imagem p�blica, sou um ensa�sta. E j� estou crucificado nessa maravilhosa cruz.
Ensa�sta ou humanista?
Humanista ainda � uma cruz mais dif�cil de transportar do que a de ensa�sta. Na nossa tradi��o ocidental, humanista � aquilo a que mais tarde se chamou o intelectual, da primeira modernidade que � a do Renascimento.
Quando se olhar ao espelho no dia em que fizer 80 anos n�o se pergunta: quem � este Eduardo Louren�o de Faria?
A gente v� sempre qualquer coisa de atrasada realmente a n�s pr�prios. Do que eu tenho medo � de que no espelho n�o veja nada. N�o tenha imagem. Uma das minhas caracter�sticas � a de querer estar ao lado, de perceber que estou acompanhado por mim pr�prio. Fui um pouco um anjo da guarda de mim mesmo. Para me vigiar, para n�o cair na tenta��o de pensar que sou algu�m que tem alguma import�ncia.
Aquilo que v� de si � aquilo que os outros mostram que � - a sua imagem sozinha na capa do "JL - Jornal de Letras, Artes e Ideias", por exemplo?
A minha primeira reac��o � de gratid�o a todos os que colaboraram nesse n�mero. E, naturalmente, que me reconhe�o em alguns tra�os de praticamente todas as pessoas que escrevem. Mas sou s� aquilo que escrevi e que me � inacess�vel a mim pr�prio.
E nessas imagens encontrou outro Eduardo Louren�o de Faria?
Para n�o ser t�o evasivo: estou espantado que alguma coisa daquilo que eu pensava que pudesse fazer tivesse tido um princ�pio de realiza��o. Quando era muito mais jovem, lembro-me de ter escrito nesse di�rio, que n�o � um di�rio, uma coisa: "Sou como a �gua, sou indiz�vel, eu n�o tenho cor." Tinha um grande sentimento de inexist�ncia, de relatividade, pouco apreens�vel para mim mesmo e, tamb�m, na imagem realmente dos outros. Finalmente, com o tempo a pessoa acaba por ter uma imagem e cola-se a n�s, como a nossa verdade ou como a nossa m�scara, ou as duas coisas ao mesmo tempo.
Mas sinto-me menos frustrado do que me senti no passado, frustra��o emp�rica, n�o por falta de reconhecimento mas simplesmente por excesso de solid�o, de estar l� fora, de estar noutro espa�o. At� porque sou um comunicativo. At� aos 30 anos, enquanto estive em Portugal, passava o tempo nos caf�s a n�o escrever os livros que devia escrever. E, para mim, ter ido l� para fora foi uma sorte e ter que, obrigatoriamente, estar confinado a gerir a minha vida, sem ningu�m � minha volta.
Quando passa a ser o professor Eduardo Louren�o o que � que lhe diz o espelho?
Nunca tive para mim estatuto de professor Eduardo Louren�o. Fui um professor muito at�pico - as pessoas s� h� pouco tempo � que me tratam assim. Essa � uma das coisas da cultura portuguesa, a complexidade chinesa nos tratamentos. Deixo de escrever cartas porque n�o sei como � que as hei-de tratar! �s vezes dizem-me "Professor doutor." Eu digo: "Professor sem ser doutor e doutor sem ser professor." Mas nunca fui as duas coisas ao mesmo tempo. Eu n�o vivo nessa categoria de professor. A s�rio. Por mais reticente que seja em rela��o a si pr�prio, a gente sempre se investe numa certa figura. Nunca apostei numa forma de carreira, de nenhuma esp�cie. Nesse cap�tulo tenho uma responsabilidade absoluta. O que � lament�vel, sobretudo para quem vive comigo e para os benef�cios que podia ter indo retirando dessa inscri��o mais forte, institucional. N�o, eu vivi como irrespons�vel.
� curioso que � no pa�s onde n�o � professor que se consagra como professor. E, provavelmente, no pa�s onde exerce o professorado � mais desconhecido e n�o � reconhecido como professor. Mas apenas como senhor Eduardo Louren�o.
Tamb�m porque na cultura francesa s� em c�rculos universit�rios esse tipo de coisas tem import�ncia...
... e em Fran�a a sua consagra��o � muito mais recente.
Nesse cap�tulo tamb�m n�o me culpabilizo, sen�o retrospectivamente. Podia ter muito mais cedo numa presen�a no interior da cultura francesa. E sempre tive grandes retic�ncias a isso. Mas, tamb�m, como costumo dizer "n�o se levam laranjas para Set�bal".
A Fran�a era um pa�s profissional da "inteligentsia" da cultura. S� muito mais tardiamente gra�as � minha mulher � que entrei no circuito. Por acaso, pediram-me um ensaio sobre Montaigne. Disse como os meus bot�es: h� bibliotecas inteiras sobre Montaigne, n�o vou escrever uma linha. E estive assim dois meses. Acabei por escrever e foi publicado. Ent�o a gente percebe uma coisa: �s vezes o olhar exterior � interessante, porque cada cultura, com as suas tradi��es, acaba sempre no c�rculo do mesmo. De maneira que quando vem um paisano de fora esse olhar pode ser interessante para os pr�prios franceses que n�o fizeram outra coisa que estar a olhar para o seu pr�prio Montaigne. N�o � que eu diga nada de especial sobre Montaigne.
O primeiro livro que teve algum eco em Fran�a foi "L'Europe Introuvable. Jalons pour une Mythologie Europ�enne", que saiu em 1991 [M�taill�, 1991]. Hoje n�o h� dia que n�o se publique livros sobre a Europa, naquela altura n�o. A verdade � esta: nunca a tive a pretens�o de ter qualquer tipo de exist�ncia minimamente interessante ou v�lida. A minha aposta era Portugal.
Sai em 1954 - ano em que casa com Annie Salomon - mas nunca saiu de Portugal. � ou n�o � verdade?
A pergunta formulada assim equivale � descri��o que fa�o dos portugueses e de Portugal: � um pa�s que nunca saiu dele. Sai sem sair. � a coisa mais t�pica que eu conhe�o nesse g�nero na nossa maneira de ser. � como naquela famosa passagem da "Peregrina��o", de Fern�o Mendes Pinto, vai encontrar na costa da �ndia uma terra exactamente igual �quela que ele conhecia aqui. A China ali ao lado e os sujeitos estavam l� como se estivessem no Minho. � a mesma coisa com os que est�o Vence que s�o de Espinho. E � a mesma coisa deste cavalheiro tendo ele a pretens�o de se mover fora do circuito e do "ninho p�trio", como dizia Cam�es.
Porque � que nunca saiu?
Porque quando parti daqui - e tendo deixado j� uma pequena reflex�o sobre a na��o como cultura portuguesa -, j� tinha um problema com Portugal. Que n�o tinha nada de original e singular: era pura e simplesmente herdeiro de toda a tradi��o da Gera��o de 70, de Ant�nio S�rgio, ou do grupo da "presen�a". E depois por motivos profissionais comecei por dar aulas de cultura portuguesa, nos leitorados. Isso ainda me enraizou mais na tem�tica portuguesa com a nossa mem�ria portuguesa. L� fora ainda fiquei mais empregado de Portugal do que estivesse c� dentro.
� muito interessante porque chegou a dizer que l� fora encontrava mais facilmente forma daquilo que queria ser...
... at� porque em Coimbra n�o acabei a tese dentro do prazo determinado, se calhar se o tivesse feito talvez nunca tivesse sa�do daqui... E a minha vida teria sido certamente outra... por dentro n�o sei. Isto para mim tem um peso cada vez mais importante: o nosso destino � feito de um ros�rio de conting�ncias que, por sua vez, acabam por tra�ar o nosso destino. Essa de sair l� para fora, estar dois anos em Heidelberga, Alemanha, ter-me fixado e casado em Fran�a, constituiu o meu destino como pessoa.
Quanto � cultura portuguesa quis interrogar n�o de uma maneira especulativa, mas concreta, e numa pequena parte, a nossa mem�ria. Sobretudo o que eu quis fazer sem querer fazer de uma maneira determinada, mas que pouco a pouco se foi precisando, foi uma esp�cie de compreender como � que funciona o imagin�rio portugu�s. O que � que n�s somos. N�s somos aquilo que sonhamos, os mitos que constru�mos. Qual � a mitologia portuguesa? Em fun��o de que horizonte � que a cultura portuguesa tem funcionado? O que � que ela tem de particular? Isso s� se compreende examinando os vest�gios disso que � a poesia, a fic��o.
Essa compreens�o, ou destino, constr�i-o melhor fora de Portugal, isso � que � que curioso no seu percurso, n�o acha?
Provavelmente se tivesse ficado c� n�o teria tanta dist�ncia e tanta objectividade. Penso que foi, tamb�m, a minha maneira de n�o perder Portugal, de estar c� n�o estando. Nesse tempo o Portugal perdido tinha duas significa��es: uma expatria��o ou uma fuga mais ou menos volunt�ria e outra a de um Portugal que, por outras raz�es, era muito dif�cil n�s considerarmos quer em termos de cidadania e liberdade. Eu vivi este pa�s como uma esp�cie de pris�o como muitos portugueses viveram - n�o todos. Isso � uma mitologia nossa mas as pessoas estavam aqui muito tranquilas, muito contentes. Portugal tamb�m foi feliz naquela �poca! N�o � por acaso que Portugal tem esta fixa��o no "P�tio das Cantigas". Aquilo � a sociedade salazarista em estado puro. Quando aquilo passa de novo na televis�o, estamos em grande! Este Portugal n�o foi assim t�o infeliz - era infeliz para quem n�o estava com o sistema.
Mas esse seu programa de trabalho - qual � a mitologia portuguesa?, em fun��o de que horizonte � que a cultura portuguesa tem funcionado? - o que � queria mostrar?
O que eu queria fazer era a partir do Portugal da modernidade, do liberalismo at� hoje, revisitar os discursos e a interpreta��o do nosso passado. Que, de uma maneira geral, tinha duas vertentes: uma que prolonga os valores, as refer�ncias desse Portugal com uma cren�a forte, onde n�o h� heterodoxia - nunca houve. E quando h� alguma tentativa � erradicada com a expuls�o dos judeus (que n�o � uma heterodoxia) que era outra cren�a. N�o h� nenhum Montaigne que acaba nos Voltaires. E o outro tipo de religiosidade, representada pelo povo judaico, foi embora.
Pass�mos de um mesmo mundo que esteve em F�tima a 13 de Maio sem transi��o para um outro que nos vem de fora. Oliveira Martins viu isso muito bem e, por isso, � mais reivindicado mais pela direita do que pela esquerda. Ele aceita que � correcta e ideologicamente certo esse francesismo transposto, que vai dominar o s�culo XIX. S�o estas reflex�es que fiz em Providence, que n�o sei se chegarei a publicar, sobre Eros e Cristo, que � um percurso desde Almeida Garrett at� Jorge de Sena.
Nelas interessa-me menos as suas rela��es de continuidade - como a imagem da carruagem dos comboios - mas como funciona o sistema, onde o Eros funciona como liberta��o e Cristo que funciona como mecanismo regularizador desse mesmo Eros.
Define-se como cat�lico mas ao mesmo tempo n�o acredita em Deus. Disse que era "um m�stico sem f�" e que gostava de "estar num convento e ter como superior �lvaro de Campos"...
... nessa fase.
E agora o superior seria outro heter�nimo?
S� Pessoa.
Aos 80 anos como � que est� a sua rela��o com a morte?
Mais familiar, angustia-me menos a minha a morte, n�o a morte em geral.
E essa sua rela��o com a morte, � com a eternidade em que n�o acredita ou com a eternidade em que, apesar de tudo, julga que ainda pode haver?
"N�s fomos naturalmente eternos." � uma frase de Espinosa.
Isso � uma fuga � pergunta: e a morte do Eduardo Louren�o de Faria?
Eu gostava que aquilo que vem no Credo fosse verdadeiro: a Ressurrei��o, seria realmente a vit�ria total.
Mas para isso precisava que Deus existisse. E a� tem profundas d�vidas?
N�o � uma quest�o de d�vidas. O problema � saber se n�s existimos para Deus. O problema n�o � sobre a exist�ncia de Deus mas o contr�rio. A rela��o com Deus impens�vel e sempre nos est� pensando. Deus � o limite do pens�vel. A esse t�tulo Deus � absolutamente incontorn�vel. N�s n�o temos nenhum conceito que seja um englobante da experi�ncia humana em geral a n�o ser que ela seja s� simples reitera��o do existente.
H� tr�s anos sentiu-se mal no Convento da Arr�bida e foi operado de urg�ncia no Hospital de Santa Maria? A morte rondou por perto. O que � que sentiu?
Nada de particular. � engra�ado. Nesses momentos, de grande gravidade, parece que a pessoa desmaia. Instala-se uma calma fant�stica, de aceita��o. N�o h� nada a fazer. A ang�stia � para as pessoas que est�o de fora. A ang�stia � antes do penalty n�o � durante.
E Cristo n�o � algo com que se confronta?
Na educa��o que recebi na minha aldeia, Deus n�o � uma esp�cie de identidade abstracta. Cristo � o nosso acesso concreto a Deus.
Nunca se p�s a si pr�prio as palavras de Cristo na cruz: "Pai, Pai, porque me abandonaste?" N�o � um mist�rio para si, como foi at� ao fim da vida para Borges?
Sim, foi uma coisa que me marcou, mas j� na faculdade. E soube que tinha sido algo que tinha tocado Lutero. Porqu�? Porque essa � que � verdadeira morte de Deus - n�o � a de Nietszche nem da a Modernidade. A morte de Deus est� nessa passagem e � a glosa de Lutero e de "A Paix�o Segundo S. Mateus", de Bach. O impens�vel por defini��o.
Pedem-lhe textos sobre tudo e sobre nada: Descobrimentos, E�a, Pessoa, Cam�es, Iraque, Am�rica, Europa, Portugal - a lista � infind�vel e, �s vezes, os temas de t�o rid�culos fica-se com a sensa��o que h� da sua parte quase uma obriga��o para responder aos desafios. N�o se sente "a" vaca sagrada" da intelectualidade portuguesa?
Eu n�o me sinto mas pelos vistos tomam-me! Isso realmente � dif�cil para mim de assumir. Isso vem do facto da minha trag�dia subjectiva: eu n�o saber dizer n�o.
Esse lado de "vaca sagrada" tem um outro lado irritante. Numa carta que para Jorge de Sena, escreve: "Tenho o dom raro de me tornar a suspeito a gregos e troianos que me perdoam mal os meus sil�ncios ou as minhas retic�ncias ou as minhas adora��es." Ou seja: hoje pode escrever tudo o que lhe d� na gana e ningu�m lha atira uma pedra! E quando lhe atiram � de rasp�o, com paninhos quentes...
�s vezes atiram. Mas isso significa que esse tipo de coisas quer dizer que j� estou fora do circuito.
N�o parece: olhe aqui s� o "JL" d�-lhe capa e 24 p�ginas. Espere pelas outras publica��es: pelo P�BLICO, "Di�rio de Not�cias", "Expresso"...
... s� fa�o 80 anos uma vez! Tenho uma rela��o com o tempo ontologicamente distra�da. O tempo passa, acabou. Eu estou cansado de ter tanto tempo! Para mim talvez interessante seja que haja gera��es mais novas que encontrem em mim alguma coisa de estimulante naquilo que escrevo. Isso � que � realmente a consola��o das consola��es.
Qual � o seu estatuto: a do intelectual? O "ma�tre-�-penser" portugu�s? O Ant�nio S�rgio dos nossos dias?
Tenho horror em etiquetar as pessoas. Sou um espectador interessado da vida...
... e interveniente! J� n�o � capaz de deixar passar as coisas sem dar opini�o.
Obrigam-me a ter opini�o!
O que � tem para fazer at� ao fim? Qual � a sua agenda?
Precisava de ter outra vida. Tenho pregui�ado tanto... Durante anos fiz uma "Hist�ria das Ideias", em Espanha. Est� tudo em franc�s. Mas n�o tenho paci�ncia de pegar naquilo. Queria ter a possibilidade de publicar as li��es que fiz em Providence, mas nada sem pressa. A minha mulher � que me castiga em rela��o ao tempo: "Esta coisa tem que ser feita." Eu n�o. Adiei eternamente o que tenho para fazer para n�o entrar na realidade. S� � for�a. A esse n�vel tenho sou o sabotador de mim pr�prio.
As coisas que fa�o s�o imperativas: se n�o fossem os pedidos que me fazem de fora e me sinto obrigado a responder, para n�o me envergonhar, porque prometi - eu n�o fazia nada. Eu nasci para n�o fazer nada! E � engra�ado: nunca me aborreci. Se pudesse passava a vida a ouvir m�sica.
Que m�sica? Que compositores?
Bach, Mahler, Richard Strauss, Weber s�o muito. Mas a m�sica � o m�ximo! O Orson Welles, no fim da vida, dizia que s� via maus filmes. A justifica��o � fabulosa: "Porque nunca me desiludem." A grande m�sica � o contr�rio e que pode aplicar-se � humanidade inteira: � aquilo que d� o sentimento do que � Deus.
Comove-se com a m�sica?
Muito. A m�sica � como um mar de Deus.
Publicar�, ou deixar� publicar, organizado, o seu di�rio?
N�o, ningu�m mete a m�o naquilo at� porque est� numa desorganiza��o enorme. Perco e encontro os caderninhos a uma velocidade... O Verg�lio Ferreira, a meu respeito, dizia que eu n�o arriscava. E � verdade. H� sempre um tipo de risco que eu n�o fui capaz de tomar como, por exemplo, a "Conta-Corrente", que � uma coisa �nica na literatura portuguesa �quele n�vel.
A partir desse di�rio, que tem p�ginas de fic��o pura, porque � que nunca escreveu um romance?
Quem � que n�o gostava de escrever? O romance tornou-se um mito cultural por excel�ncia de uma cultura � qual pertencemos.
Tentou ao menos?
N�o, risquei algumas ideias. Mas n�o tenho o sentido do concreto, dos objectos, das coisas, das plantas...
... mas h� passagens do seu di�rio que s�o um aut�ntico romance. Lembra-se daquela mulher que sai do mar...
... isso era preciso que as musas se renovassem com uma frequ�ncia para dar 200 p�ginas (enorme gargalhada). H� um tempo para tudo. Veja-se o caso dos poetas: parece que h� uma idade, entre os 17 e os 25 anos, para escrever a poesia. Se a pessoa n�o fez naquela altura n�o o faz aos 50. O romance talvez seja coisa uma coisa mais tardia. Na minha juventude, em 1943, quando o Carlos Oliveira publica "Casa da Duna" aquilo era um espanto. N�o se estava � espera que sa�sse dali um autor. Para mim, de resto, um autor era um tipo que j� tinha morrido. E agora, quando o Jos� Carlos de Vascocelos foi a Vence, encontrei mais uns poemas. Ele disse-me: "Ent�o porque n�o os publica?" N�o, se n�o publiquei quando tinha idade para isso, agora essa hip�tese est� completamente afastada de todo. E no caso da poesia portuguesa h� uma coisa extraordin�ria: h� muitos e bons. Antigamente, era ao contr�rio: havia muitos e a maioria eram maus!
O seu Paris-Texas afinal de contas aonde � que �: Rio-Seco, Vence ou o mundo?
(Sil�ncio) Paris-Texas � um mito. � onde estou, onde acabei de estar. Durante muito tempo pensei que a Fran�a, Vence, sempre a vivia como uma coisa provis�ria - no dia seguinte, no ano seguinte sairia. Pensei que no 25 de Abril poderia vir para aqui. N�o vim. Um dia, com 70, 75 anos a atravessar o sul da Fran�a dei a pensar comigo: "� espantoso, todos estes anos fora. Afinal, eu conhe�o melhor isto do que a minha p�tria, a minha terra." Somos onde estamos, o que respiramos. A gente acaba por se tornar outro, quer queira quer n�o. Sou filho desse mundo que a princ�pio n�o me estava destinado. E mesmo esse di�rio se um dia for publicado ter� um t�tulo - "A Casa Perdida".
| | A entrevista estava quase a chegar ao fim. Eduardo Louren�o nasceu com o in�cio do s�culo XX e j� o viu morrer. A P�BLICA prop�s-lhe um desafio: que figuras tinham marcado o s�culo XX. O autor de "Labirinto da Saudade", mais uma vez, n�o foi capaz de dizer que n�o... | | ------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------ |
Qual foi a maior figura portuguesa do s�culo XX?
(longo sil�ncio). Salazar, � incontorn�vel at� pelo tempo que ocupou. Mais do que um consulado foi um reinado. O pa�s entrou nalguma modernidade, sobretudo nos primeiros anos. Depois n�o, como aconteceu aqui ao lado.
E internacional?
Roosevelt.
O grande artista nacional?
Almada Negreiros
Internacional.
Picasso.
O grande pensador portugu�s
Apesar de tudo, Ant�nio S�rgio.
Internacional
Heidegger.
O grande escritor nacional.
Fernando Pessoa.
Internacional
Proust.
O grande livro nacional
"O Livro do Desassossego".
Internacional
"� Procura do Tempo Perdido".
O grande filme portugu�s
"A Ca�a", de Manoel de Oliveira.
GUILHERME D�OLIVEIRA MARTINS
Eduardo ou a maravilhosa imperfei��o
Quando havia raz�es para optimismo, ele surpreendeu-nos ao falar de uma Europa desencantada
VIS�O 29 de Maio de 2003
Eduardo Louren�o est� de parab�ns. A sua presen�a constante na reflex�o sobre os acontecimentos, a literatura e a vida, sobre Portugal e a Europa tem constitu�do uma oportunidade para ultrapassarmos um at�vico conformismo, uma tend�ncia para nos ficarmos pela superf�cie das coisas e uma sistem�tica ilus�o sobre os nossos males irremedi�veis e sobre a fatalidade da hist�ria. Ainda que muitos se mantenham distra�dos, o certo � que o ensa�sta continua a interrogar-nos, com avan�o sobre os acontecimentos e sobre o modo como poderemos responder aos misteriosos e exigentes est�mulos perante os quais estamos confrontados. Em lugar de uma vis�o do Pa�s imagin�rio, encruzilhada de sonhos e de m�-l�ngua, Louren�o procura ser o campon�s do Dan�bio, com os p�s assentes na terra � a dizer que tudo depende do que somos e do que queremos ser.
Trata-se de alertar contra a loucura de D. Quixote, uma das causas da decad�ncia dos povos peninsulares, e do seu pequeno �mulo D. Sebasti�o. H� dez anos, quando muitos julgariam que havia raz�es para optimismo, com a Europa a dar a sensa��o de uma caminhada irrevers�vel e impar�vel, Eduardo Louren�o surpreendeu-nos ao falar de uma Europa desencantada.
A Europa era, de algum modo, v�tima do seu pr�prio sucesso. Acabara a guerra fria, o imp�rio sovi�tico desmoronara-se e havia novas expectativas e novas perplexidades a ditarem a sua lei. A fragilidade europeia estava � vista, provindo quer da dificuldade interna de superar contradi��es antigas quer de uma campanha externa persistente no sentido de n�o deixar o velho continente ser aquilo que desejaria ser.
Hoje percebemos por que motivo E. Louren�o nos mostrou esse inc�modo cart�o amarelo. Afinal, n�o poder�amos esquecer que haveria um momento em que os ego�smos regressariam contra os ideais e contra os que consideram n�o haver vacinas contra a barb�rie, salvo estarmos humanamente de sobreaviso. Por excesso de mem�ria, a Europa � uma realidade indefinida e indefin�vel, dif�cil de se encontrar. �S� se podem sentir desencantados aqueles que sabendo a Europa a que pertencem fr�gil na cena do mundo, por incapacidade de se constituir com um m�nimo de coer�ncia pol�tica, constatam que quarenta anos de sonho europeu n�o fizeram da Europa um mito para a consci�ncia do cidad�o comum da Comunidade Europeia�, escrevia Eduardo Louren�o em 1993.
Agora, se uns pensam que estamos condenados colectivamente a uma exist�ncia med�ocre, h� raz�es para desejarmos uma autonomia estrat�gica centrada na defesa dos valores e interesses comuns e na compreens�o de que ser� mau para o mundo uma Europa dividida ou entretida com as vaidades nacionais, tendo do outro lado do Atl�ntico os Estados Unidos embalados na ilus�o pueril de que poder�o contrariar um movimento inexor�vel e imperial de decad�ncia cultivando a ciz�nia e o m�todo da sobranceria, contra a velha ideia de Kennedy da �parceria entre iguais�.
Com o fim do antigo mundo bipolar, torn�mo-nos n�madas de uma hist�ria dif�cil de decifrar, em que os instrumentos se confundem permanentemente com os fins. Vem � mem�ria a Cac�nia de Musil ou o sonambulismo de Broch. Viveremos um novo �apocalipse alegre�? A globaliza��o, os meios de comunica��o de massa e as sociedades em rede tornam essa sombra inquietante, porque se projecta globalmente. Os aprendizes de feiticeiro ati�am os fundamentalismos e o terror, sob pretexto de os combater� As na��es fecham-se, em lugar de buscar novos modos de partilhar vontades e destinos� Como diria o nosso ensa�sta (Portugal como Destino, 1999): �Povo mission�rio de um planeta que se missiona sozinho, confinado ao modesto canto de onde sa�mos para ver e saber que h� um s� mundo, Portugal est� agora em situa��o de se aceitar tal como foi e �, apenas um povo entre os povos. Que deu a volta ao mundo para tomar a medida da sua maravilhosa imperfei��o.� Longa vida, querido Eduardo!
P�ginas In�ditas do Di�rio
_S. Pedro � Julho 1945_� Em minha casa, cada qual arrasta a sua ternura familiar numa solid�o perfeita. E come�o a dar-me conta que ningu�m vir� em nosso socorro. Um pudor total consome-nos os gestos antes de nascerem. Por isso, demonstramos um estilo ir�nico, uma maneira de fazer de conta que a ternura n�o existe, que vai at� � agressividade. Por maior que seja a minha aplica��o, meu pai nunca me deu a entender que est� satisfeito comigo. Emprega circunl�quios divertidos de uma brevidade cortante para significar no m�ximo que n�o est� descontente. E pelo meu lado um gesto t�o natural como de beijar o meu pai ou a minha m�e, n�o vai nunca sem uma tentativa premeditada de o passar em claro.
N�o sei como isto come�ou. Creio que os meus pais n�o puderam nunca vencer a reserva camponesa do mundo da sua inf�ncia. Ou ent�o que n�o chegaram a ter tempo, t�o dura a vida se lhes tornou pelo n�mero de filhos, para a cria��o desse estilo de intimidade familiar, como � por exemplo o caso dos Axxx, aqui mesmo na nossa aldeia. Mas a verdade � que passei o tempo a estender bra�os in�teis para o sil�ncio deles, sil�ncio certamente consumido pelo mesmo amor por mim mas incapaz de sonhar o desastre em que minha alma se converteu. Temo que a melancolia da incomunicabilidade se tornou o sinal distintivo da minha vida e que a solid�o familiar que me habita como esse anel de fogo se torne inextingu�vel.
�s vezes imagino que tudo foi jogado de antem�o na nossa inf�ncia. Que a partir duma certa hora, e essa � a descoberta da nossa radical solid�o, o resto � j� repeti��o. O que acontece � haver vidas que n�o chegam a estar s�s. Mas agora que conhe�o a mistura exaltante de fins e amargura que a solid�o nos concede, eu creio bem que n�o lamento o deserto familiar onde ela nasceu. A solid�o � uma prefer�ncia.
Talvez n�s n�o tenhamos finalmente sen�o aquela pele que secretamente desej�vamos ter. Ou que seja apenas um lugar comum mal examinado pensar que merec�amos um destino diferente daquele que encarnou em n�s. Tudo parecia disposto em minha casa para n�o tornar poss�vel este esc�ndalo que eu sei ser. E contudo, examinando-me bem parece que tudo concorreu igualmente para que eu seja esse mesmo esc�ndalo.
Desde h� anos a minha solid�o familiar n�o � apenas o reflexo do sil�ncio dos meus pais. � a sombra que a minha vida equ�voca projecta na vida dos que me s�o queridos. Sou eu que os defendo de mim. Porque eu suporto bem o ar rarefeito da culpa e do afastamento da f� em que presentemente vivo. Mas n�o suporto � e resta-me saber se por vergonha minha se por amor deles � a ideia dum reflexo nas suas vidas.
Aos dezasseis anos era uma afirma��o pretensiosa a de ter perdido a F�. Chego a achar isso t�o rid�culo que n�o tive ainda a coragem de o confessar a ningu�m. Mas � um facto. A corrente centen�ria de uma voca��o familiar partiu-se misteriosamente nesta mis�ria que leva o meu nome. Na �ltima P�scoa levei a cabo toda uma com�dia para falhar pela primeira vez um acto que cumprido como desejaria minha m�e, seria o sacril�gio mais raro. Foi o �ltimo acto duma exist�ncia hip�crita, envenenado por um amor monstruoso incapaz de ferir no rosto.
Meu pai est� longe e como todos os homens acarreta uma solid�o pessoal que lhe vela a dos outros. Mas minha m�e que me observa e me conhece como ningu�m mais, suspeita sem poder acreditar a minha frieza religiosa. Infelizmente considera-a sem nenhuma esp�cie de simpatia. O seu amor por mim � t�o cego que n�o pode crer a s�rio que o seu filho n�o creia em Deus. O que � espantoso � que ao mesmo tempo que endurece uma tal f� em mim torna-se funda ainda a consci�ncia da minha amargura e por amor dela n�o s� desejo que uma gra�a volte de novo como chego a crer que n�o me tenha abandonado de todo. Neste corpo a corpo com a misteriosa f� de minha m�e em mim parece residir hoje o essencial do doloroso debate da minha alma onde o rosto familiar de Jesus perdeu os tra�os de Deus. Ou o Deus impens�vel perdeu os tra�os do Jesus acess�vel.
JL � Jornal de Letras, Artes e Ideias � Ano XXIII, n.� 851, 14 a 27 de Maio de 2003
S/d, presumivelmente em 1950, dado que a m�e morreu em 1948.
N�o enterramos os mortos. Sejamos mais humildes, s�o os mortos que se enterram em n�s. Uma certa noite, o sentimento nauseante de desamparo em que chegar�amos a procurar um certo conforto porque ele nos fazia �nico e era um argumento implac�vel contra esse pedido de contos que algu�m parece apostar em exigir, abandona-nos como uma sombra. E na manh� seguinte regressamos � velha pele do Ad�o sem mortos, � superficialidade incolor das horas quotidianas.
H� dois anos que a minha m�e morreu. H� um ano que o meu pai morreu. E na obscura trivialidade das impress�es epid�rmicas instalou-se de repente, sem eu dar conta, alguma coisa que est� para a sensibilidade como o vazio divino para os m�sticos. Aceitei hoje os meus mortos. O anjo enjoou-se de lutar comigo e abandonou-me.
JL � Jornal de Letras, Artes e Ideias � Ano XXIII, n.� 851, 14 a 27 de Maio de 2003
Por COIMBRA 13.09.53
Tudo quanto toquei me formou e deformou. Como um b�zio desejei guardar o mar dentro de mim. De todas as experi�ncias, a que me marcou mais fundo foi a da literatura. Nunca fui leitor de um s� livro. Isto n�o � um elogio. � uma verifica��o e uma melancolia. Seria imposs�vel para mim mesmo estabelecer qualquer hierarquia entre as influ�ncias sofridas. Foram inumer�veis, constantes e contradit�rias. Durante muitos anos pensei que isso me incapacitasse para chegar a ver claro, e por mim mesmo, o fundo das quest�es que importam na vida. Tive medo que se cumprisse o vatic�nio da crist� fervorosa e simples que era minha m�e: "leste tanto que treleste". Nem ela sabia at� que ponto a sua lucidez materna acertava no alvo. Creio que, apesar de tudo, no fundo do seu cora��o, n�o o acreditava. Eu debatia-me numa torrente onde nenhum amor me podia socorrer. Apesar disso nunca perdi a esperan�a de encontrar uma sa�da para a confus�o e o tumulto desse mundo escrito que pouco a pouco trocara pelo mundo real.
Seria cego se pensasse que encontrei por fim essa sa�da. Todavia j� n�o me sinto perdido como me sentia. De uma forma misteriosa para mim mesmo o caos de todos estes anos lidos foi-se organizando e agora o tumulto das coisas, das ideias, dos acontecimentos, das opini�es e dos valores, em vez de me arrastar ap�s si, permanece em frente do meu esp�rito. Posso toc�-lo, compar�-lo, coloc�-lo aqui e ali, pondo � dist�ncia. Em suma, pare�o um pouco mais o dono dele e posso apascent�-lo como o incompar�vel Caeiro ao rebanho dos seus pensamentos.
O que se passou ao longo destes anos da minha educa��o foi talvez mais simples do que eu imaginara. Falei de influ�ncias e nada mais exacto. A verdade � um pouco diferente. Fui durante muitos anos, na inf�ncia e na adolesc�ncia, uma argila mold�vel mas nunca me assemelhei � cera. O fogo endureceu-me, n�o me dissolveu. O meu inimigo mortal, cedo o suspeitei, foi o amor. Ele me destruiu antes que a vida, com o seu tormento misericordioso, me tocasse. Sem os livros onde se ama e se � amado por procura��o, o meu destino teria sido o da est�tua de sal, com o deserto de amor � minha volta. Com os livros foi o de um labirinto atapetado de olhares familiares que, como nos sonhos, piedosamente me assassinam.
Grenoble, 1961
Domingo, 16 de Julho. A r�dio debita uma das mais escandalosas palavras do evangelho: a do intendente, do gerente desonesto. Nietzsche devia cair de joelhos diante desta provoca��o. Lutero que ele n�o amava (ou invejava, em Nietzsche � a mesma coisa) compreendeu o paradoxo desta par�bola. N�o � na ep�stola aos Romanos que o mist�rio da Gra�a � mais luminoso e denso. � neste conto popular onde se louva o capataz desonesto por ter sabido a tempo fazer amigos com o dinheiro do seu patr�o e senhor. � outra vers�o da par�bola dos talentos, do oper�rio da und�cima hora, do filho pr�digo, s� mais "escandalosa" na forma. O Mestre, e s� ele, � o juiz ou anti-juiz da nossa finita justi�a que ele inverte ou destr�i para que a verdadeira flores�a, mesmo em n�s, capatazes desonestos dos dons que nos foram confiados. Ao servi�o dos Outros para quem eles se destinam os nossos dons mesmo desonestamente administrados criam a verdade que neles existe. Com dinheiro que n�o � nosso - e nenhum o � - d�-lo aos outros � o �nico uso dele. Este desvio nos ser� perdoado, mesmo se feito na afli��o, com a corda na garganta, depois de ter passado a vida a gastar connosco o que n�o � nosso. Ali�s, a d�vida de credores, a mis�ria dos outros que n�s tardiamente tentamos remediar para nos conciliar os seus favores, que outra coisa � que original m� administra��o nossa? A vinha do Senhor � uma s�. Pela escada dos outros e de todos entramos no �nico c�u que n�s merecemos. A tardia justi�a do gerente desonesto � uma parcela do Bem comum restitu�do, mas � "bem" e por isso na par�bola se diz que agradou ao Senhor. � curioso como a mitologia popular soube dar corpo a esta verdade escandalosa, atrav�s dos Fra Diavolo e dos Rafles, bandidos generosos e distribuidores de uma riqueza mal administrada. Como na Par�bola, os leitores, sen�o Deus mesmo, lhe perdoam.
Vence. Ver�o de 73.
Pouco a pouco tornaram-se mais jovens do que eu. Custa-me �s vezes record�-los como pais. Esta s�bita juventude deles vai mudando por dentro a cor de uma tristeza que supunha e � sem cura.
Pressinto o dia em que a corrente se inverter� e que ser�o eles que se entristeceram por mim. � como se viaj�ssemos em ascensores paralelos, em sentido inverso e nos cruz�ssemos com uma do�ura silenciosa, como nos sonhos. Por um pouco as nossas m�os podiam tocar-se de novo. Os nossos rostos parecem impressos nos vidros foscos da cabine. N�s sabemos que nos olhamos de dois tempos diferentes que se dizem adeus num sil�ncio que j� vinha a caminho antes de eu nascer. Pr�ximos, intoc�veis, n�o jovens, mas mais jovens do que eu, disparado numa carreira parada que os deixa atr�s de mim, sempre com quarenta e poucos anos, praticamente sem morte.
P�BLICA, 26 de Maio de 2003
_Vence � 16 Mar�o 92_- Quase nunca vivemos realmente grandes momentos de verdadeiro cinema, instante ef�meros de pura m�goa. Por uma raz�o o n�o est�o nos filmes. Lembro-me de tr�s minutos sublimes de Ingrid Bergman diante da c�mara no instante em que se submete ao seu exame de actriz, inocente e bela como um sonho. Como se olho de Deus expusesse em plena luz o anjo de onde a copiou e que a hero�na de Casablanca nunca mais ser�.
Todos os seus filmes por esse tr�s minutos.
JL � Jornal de Letras, Artes e Ideias � Ano XXIII, n.� 851, 14 a 27 de Maio de 2003
_Vence � 16-5-92_- Come�amos a existir quando se repara na nossa aus�ncia. Em geral, tarde. Em Portugal, nunca.
JL � Jornal de Letras, Artes e Ideias � Ano XXIII, n.� 851, 14 a 27 de Maio de 2003
_Vence � 28-9-92_- Nos grandes momentos da nossa vida � nos graves, sobretudo, est�-se s�. � costume, romanticamente, depluar essa solid�o. Mas ela � uma b�n��o. Sem ela n�o saber�amos nunca quem �ramos. A nossa solid�o � o nosso bilhete de identidade tirado nos arquivos de Deus. O pior � imaginar que nenhum Deus teve a caridade de nos passar t�o sublime bilhete.
JL � Jornal de Letras, Artes e Ideias � Ano XXIII, n.� 851, 14 a 27 de Maio de 2003
Vence, Dezembro 1995
� natural e tornou-se mesmo um "clich�" considerar o cinema como uma f�brica de sonhos e seria excesso de originalidade negar uma t�o universal opini�o. Mas a natureza on�rica do cinema ou da sua fun��o � de algum modo oposta ao onirismo se de onirismo se pode falar, conatural � literatura. No homem como espectador, no homem como cinema o sonho �-lhe exterior, est� diante dele como um duplo do real, oferece-lhe sem custo uma vida literalmente sobrenatural que s� as antigas fantasmagorias das vis�es transcendentes exprimiam. Se em algum lado Deus - o Deus a que se vinculava a representa��o de um sobrenatural de que a vis�o de Dante � o paradigma sublime - realmente morreu, foi no cinema, disneylandia acess�vel ao infantilismo imanente ao imagin�rio moderno. N�o morreu na literatura nem naquela que ostensivamente proclama a sua morte ou glosa como se Deus fosse uma c�pia imperfeita do Molly de Becket e sua intermin�vel agonia. Na apar�ncia nada pode ser comparado ao efeito de "verdade", � consubstancia��o na imagem e da vida ou antes, na cena que nos inventava uma nova esp�cie de humanidade. Aquela que com o cinema e pelo cinema sarava, sem o saber ou sentir, as agress�es pouco on�ricas da realidade. Talvez porque o cinema n�o seja j� esse �pio sublimante da vida mas nostalgia dele, cinema que recicla a sua pr�pria mem�ria como se fosse literatura, a humanidade jovem consome, sem media��o, a droga dura atrav�s da qual n�o repudia apenas a sociedade que a cerca, mas se recusa a entrar na vida como anti-sonho.
Vence 22.02.000
Devemos falar de n�s como se estiv�ssemos mortos. Para ter a sorte de algum dia parecermos vivos. Ao menos por compara��o com essa morte que nunca contemplaremos. Se a contempl�ssemos saber�amos ent�o o que � "estar morto". Mas mesmo ent�o n�o saber�amos o que � ser morto.
Macau, sem data
Em toda a parte onde estivemos queremos sair ficando. � lusitanamente can�nico. Mais ainda daqueles s�tios onde nem fomos ultimados a fazer as malas. Nunca ou raras vezes fomos de torna-viagem. A viagem fez-se porto e nele funde�mos. Em Macau de maneira diferente de todos os outros peda�os do que para n�s chegou a ser um todo mesmo em forma de arquip�lago. Agora s� o ser� na mem�ria. Diversa segundo os tempos e as esta��es.
Entramos na idade da Internet. Pr�xima etapa: falar directamente com Deus. O que n�s fazemos desde que falamos.
Lido hoje: o bisneto de Estaline, o humanista perfeito, quer fazer um filme sobre seu pai que o imortal ex-pai dos povos n�o quis resgatar das m�os dos nazis trocando-o por Von Paulus. N�o se troca um soldado por um general ter� dito o Marechal Estaline. Como um vulgar General Moscardo.
Gosto de todos os lugares onde me senti s�: Hamburgo, Bruxelas, Baia. Para me compensar de n�o ter morrido na Ant�rtida como Scott, o meu primeiro her�i abandonado de Deus, dos homens, enterrado vivo num deserto de gelo do tamanho do mundo. Mas a solid�o s� redime quem a buscou.
22-7-00
H� algo mais doloroso do que aceitar que os jovens nos embalsamem. John Mc Enroe - um velho (de quarenta anos...) e um g�nio do t�nis - infligiu essa dor a dois jovens jogadores da Copa Davis seus treinadores. N�o � raro em outros desportos nas no t�nis deve ser �nico. E na literatura, sem exemplo.
P�BLICA, 26 de Maio de 2003
Bilhete de Identifica��o
1923
Eduardo Louren�o de Faria nasce a 23 de Maio, em S. Pedro de Rio Seco, concelho de Almeida, distrito da Guarda.
1944
Licenciatura em Ci�ncias Hist�rico-Filos�ficas ao mesmo tempo que inicia colabora��o, na revista "V�rtice", com um poema: "Aceita��o".
1949
Publica "Heterodoxia I", com apenas 26 anos.
1954
Casa com Annie Salomon, em Dinnard, na Bretanha.
1960
Leitor de portugu�s, a convite do Governo franc�s, na Universidade de Grenoble.
1966
Adopta o seu filho Gil.
1973
Sai "Fernando Pessoa Revisitado. Leitura Estruturante do Drama em Gente" (Inova).
1975
Recusa - a convite de V�tor Alves - ser ministro da Cultura ao mesmo tempo que fixa resid�ncia em Vence.
1978
Sai a primeira edi��o do seu livro mais conhecido: "O Labirinto da Saudade - Psican�lise M�tica do Destino Portugu�s" (Dom Quixote)
1984
N�mero especial da revista "Prelo", Imprensa Nacional-Casa da Moeda (IN-CM) onde s�o publicados fragmentos do seu di�rio in�dito. "Vence, 23 Maio 73. 50 anos. No sil�ncio mais completo. (...) 50 anos: espelho que volto com lentid�o para mim e onde n�o vejo ningu�m. S� eu me sei o Ulisses de t�o desastrosa aventura."
1985
Integra a Comiss�o Nacional da candidatura presidencial de Maria de Lourdes Pintasilgo. Na segunda volta, apoia M�rio Soares contra Freitas do Amaral.
1986
Vem a lume na IN-CM, "Fernando, Rei da Nossa Baviera".
1988
� distinguido com Pr�mio Europeu de Ensaio Charles Veillon, pelo conjunto da sua obra.
1989
Professor jubilado na Universidade de Nice. A convite do ent�o primeiro-ministro Cavaco Silva, torna-se Conselheiro Cultural da Embaixada de Roma.
1992
Recebe a Ordem do Infante D. Henrique (Grande Oficial).
1996
� distinguido com o Pr�mio Cam�es.
1998
Com "O Esplendor do Caos" a Gradiva come�a a reeditar toda sua obra.
2002
A Fran�a condecora-o com a Legi�o de Honra, no grau de Cavaleiro.
2003
A 23 de Maio celebra 80 anos com uma homenagem em Coimbra, onde � apresentado "Tempos de Eduardo Louren�o - Fotobiografia" (Campo das Letras).