Matem�tica e matem�ticos em Portugal (original) (raw)

MATEM�TICA E MATEM�TICOS EM PORTUGAL
Jo�o Filipe Queir�
Dicion�rio de Hist�ria de Portugal - Suplemento
(Ant�nio Barreto and Maria Filomena M�nica, editors)
vol. 8, p. 434-436, Livraria Figueirinhas, 1999.

No mesmo Dicion�rio:
Francisco Gomes Teixeira
Aureliano de Mira Fernandes
Jos� Vicente Gon�alves
Jos� Sebasti�o e Silva


Quem quer que se interesse pelo passado matem�tico de Portugal notar� sem dificuldades um facto: o n�mero de matem�ticos no nosso pa�s sempre foi muito reduzido. Duas constata��es se imp�em: a mencionada escassez de pessoas n�o � exclusiva da Matem�tica, e a relativa pobreza cient�fica � caracter�stica portuguesa partilhada ao longo dos s�culos com muitos outros pa�ses europeus, sobretudo do sul e do leste. N�o � aqui o lugar para an�lises de fundo destas realidades, muito vastas e complexas. Mas, no que se refere � Matem�tica em Portugal, seja h� 400 anos seja na actualidade, h� uma observa��o simples a fazer, que pode sintetizar-se em palavras quase tautol�gicas: n�o h� matem�ticos se no pa�s n�o houver tarefas para eles. Daqui surge com naturalidade uma pergunta. Num pa�s perif�rico e relativamente pobre como Portugal, que tarefas h� para os matem�ticos? Qualquer ensaio de resposta tem que ser temperado com um olhar sobre o passado. Em primeiro lugar, as tentativas que se fizeram em Portugal para financiar de forma continuada o estudo da Matem�tica por si tiveram exist�ncia ef�mera. Os motivos estiveram em geral associados ao voluntarismo das iniciativas e � aparente n�o sustentabilidade a prazo, no nosso pa�s, de actividades de estudo sem utilidade social imediatamente vis�vel. Em segundo lugar, poderia pensar-se em desenvolvimento cient�fico por via de solicita��es "tecnol�gicas" ou da actividade econ�mica. Mas s� num per�odo bem delimitado se observa algo de parecido: os s�culos XV, XVI e XVII, momento singular da nossa Hist�ria, com as navega��es triunfantes abrindo os olhos a novas realidades e colocando uma sucess�o ininterrupta de novas perguntas. (Na Matem�tica, o esfor�o das navega��es provocou desenvolvimento de temas como a geometria plana e esf�rica, em associa��o com as �reas conexas da cartografia e da astronomia.) E, de resto, Portugal teve, at� ao s�culo XX, uma economia predominantemente agr�cola. Percebe-se assim melhor uma verifica��o de facto, que � a de que em Portugal sempre os matem�ticos, quase sem excep��o, foram professores, e professores universit�rios ou de escolas superiores, a come�ar pelo maior dentre eles, Pedro Nunes (1502-1578). Assim sendo, o n�mero de matem�ticos no nosso pa�s sempre tendeu a acompanhar o desenvolvimento do sistema de ensino, e em particular do ensino superior. Isto lan�a tamb�m luz sobre o presente: o crescimento da comunidade matem�tica portuguesa no s�culo XX � que se acentua fortemente nos fins dos anos 60 e continua nas d�cadas posteriores � reflecte de perto, at� hoje, o aumento do n�mero de universidades e escolas superiores, associado por sua vez � subida da escolariza��o e ao desenvolvimento econ�mico.

Para al�m da evolu��o do n�mero dos investigadores e estudiosos da Matem�tica a n�vel superior em Portugal, uma segunda quest�o de fundo merece aten��o. Que �reas desta ci�ncia foram e s�o cultivadas no nosso pa�s, como e porqu�? Esta pergunta vai ao centro de uma controv�rsia antiga na ci�ncia portuguesa, e particularmente n�tida no que respeita � Matem�tica, dom�nio mais que outros atravessado pela suposta oposi��o "ci�ncia pura" - "ci�ncia aplicada". No passado, desde o s�culo XVI, � poss�vel discernir uma tend�ncia nacional para o estudo de mat�rias vistas, em cada momento, como correspondendo a necessidades concretas imediatas do pa�s. (O pr�prio Pedro Nunes, primeiro exemplo portugu�s de cientista "puro", para quem as exig�ncias de precis�o e rigor eram uma constante, tem grande parte da sua obra dedicada a temas de cartografia, navega��o e cosmografia.) E ainda hoje o problema da exist�ncia ou n�o de "rumos" preferenciais para a actividade cient�fica em Portugal n�o � pac�fico, esgrimindo-se do lado das "aplica��es" os argumentos da relev�ncia e do temor da subordina��o a prioridades alheias, e do lado da ci�ncia "pura" ou "fundamental" a import�ncia da manuten��o de um clima cient�fico actualizado e n�o vinculado a realidades limitadas ou contingentes.

Os matem�ticos portugueses neste s�culo concentram-se nas universidades de Lisboa, Porto e Coimbra e nas Escolas reunidas na Universidade T�cnica de Lisboa (I. S. T�cnico, I. S. de Ci�ncias Econ�micas e Financeiras, I. S. de Agronomia). A figura dominante vem do s�culo anterior: � Gomes Teixeira (1851-1933). Analista de estilo cl�ssico, manteve in�meros contactos internacionais e deixou uma importante obra de investigador. Tamb�m como analista cl�ssico se pode classificar Vicente Gon�alves (1896-1985), figura de intelectual austero que durante seis d�cadas marcou o panorama matem�tico portugu�s. Mais pr�ximo da F�sica e dos seus aspectos matem�ticos � Mira Fernandes (1884-1958), com trabalhos sobre Geometria Diferencial e C�lculo Tensorial. Dos matem�ticos portugueses nascidos neste s�culo, o primeiro nome � Sebasti�o e Silva (1914-1972), analista da escola moderna e autor de trabalhos com repercuss�o internacional em v�rias �reas. Outro nome que atingiu relevo foi Ant�nio Almeida Costa (1903-1978), professor no Porto e, a partir de 1952, em Lisboa, que, interessado inicialmente por temas de F�sica Te�rica, passou, por via da Teoria das Representa��es de Grupos, para a �lgebra abstracta, campo em que deixou trabalho abundante. Para al�m da obra pessoal, de Almeida Costa se pode dizer que deixou escola, facto de assinalar num meio matem�tico t�o rarefeito. A inexist�ncia de "escolas" � outro problema cl�ssico da ci�ncia portuguesa, relacionado com o pequeno n�mero, at� h� poucos anos, de especialistas nas diversas �reas. Em rela��o aos grandes vultos atr�s mencionados, podem referir-se disc�pulos em que tiveram influ�ncia. Vicente Gon�alves aconselhou, por exemplo, o prematuramente desaparecido Jo�o Farinha (1910-1957) nos seus estudos sobre frac��es cont�nuas. Ruy Lu�s Gomes (1905-1984) iniciou-se na F�sica Matem�tica no rasto de Mira Fernandes, depois de estudar com Vicente Gon�alves. Os trabalhos de Santos Guerreiro (1923-1987) sobre Teoria das Distribui��es surgiram na sequ�ncia das investiga��es de Sebasti�o e Silva.

Personalidade marcante em Portugal, embora por curto per�odo, foi Ant�nio Aniceto Monteiro (1907-1980). Regressado em 1936 de Paris, onde se doutorou com Fr�chet, desempenhou papel central na dinamiza��o do ambiente matem�tico portugu�s, encorajando jovens investigadores, como Sebasti�o e Silva e Hugo Ribeiro (1910-1988). Colaborou na cria��o da revista de investiga��o Portugaliae Mathematica (1937) � publica��o de caracter�sticas �nicas em Portugal e que continua a existir � e da revista de divulga��o Gazeta de Matem�tica (1940), e no estabelecimento de Centros de Estudos Matem�ticos em Lisboa (1940) e no Porto (1941), com o apoio do Instituto para a Alta Cultura. Sem posi��o no ensino oficial portugu�s, Monteiro aceitou em 1945 um convite para leccionar no Brasil, passando � Argentina em 1949. Em ambos os pa�ses teve ac��o cient�fica de relevo, construindo obra pessoal no campo da �lgebra e da L�gica. S� em 1977 voltou a Portugal.

Entre outros matem�ticos que emigraram nos anos de 40 e 50, regressando s� depois de 1974, contaram-se o l�gico Hugo Ribeiro, que, n�o vendo reconhecido oficialmente o doutoramento obtido em 1946 em Zurique, se mudou para os Estados Unidos da Am�rica, e o f�sico-matem�tico Ruy Lu�s Gomes, que se doutorou em Coimbra e foi depois professor no Porto, em cujo Centro de Estudos Matem�ticos colaborou, vindo a ser afastado da doc�ncia por motivos pol�ticos em 1947 e saindo para a Argentina em 1958.

� parte as grandes �reas cl�ssicas da Geometria, da �lgebra e da An�lise (que aqui se tomam em sentido amplo, de forma a englobar praticamente a totalidade da Matem�tica "pura"), na segunda metade do s�culo come�am a aparecer estudos de temas de Estat�stica, An�lise Num�rica e Optimiza��o, tanto com uma inten��o pr�tica dirigida a quest�es concretas como com sentido te�rico e sistem�tico.

Com o crescimento exponencial do sistema universit�rio portugu�s que se inicia nos fins dos anos 60, princ�pios dos anos 70, come�a a tomar forma o panorama matem�tico que hoje existe. Aumenta o n�mero de doutorados (muitos deles com o grau obtido fora do pa�s), nascem e consolidam-se grupos de especialistas com interesses afins, diversificam-se as �reas, sobe o n�mero de publica��es originais de investiga��o. A situa��o � diferente da da primeira metade do s�culo, em que Portugal tinha algumas poucas grandes figuras trabalhando quase isoladamente. Os desafios para o futuro consistem em defender a qualidade do trabalho cient�fico, desenvolver as liga��es internas e externas e resistir � instabilidade cr�nica do sistema universit�rio e dos regimes de financiamento da investiga��o.

Bibliografia

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�Matem�ticos portugueses�. Ap�ndice � Hist�ria concisa das Matem�ticas de D. J. Struik (2� ed.), Lisboa, 1992, Gradiva.

FERREIRA, J. C.
�Sobre algumas figuras dominantes na An�lise Matem�tica, em Portugal (de Gomes Teixeira a Sebasti�o e Silva)�. In Hist�ria e desenvolvimento da Ci�ncia em Portugal no s�c. XX. Lisboa, 1992, Academia das Ci�ncias.

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�Hist�ria e desenvolvimento da Matem�tica Aplicada, em Portugal, no s�culo XX�. In Hist�ria e desenvolvimento da Ci�ncia em Portugal no s�c. XX. Lisboa, 1992, Academia das Ci�ncias.

OLIVEIRA, J. T. de
O essencial sobre a Hist�ria das Matem�ticas em Portugal. Lisboa, 1989, Imprensa Nacional - Casa da Moeda.

RAMALHO, M.
�Aspectos da �lgebra em Portugal no s�culo XX�. In Hist�ria e desenvolvimento da Ci�ncia em Portugal no s�c. XX. Lisboa, 1992, Academia das Ci�ncias.