Lu�s Carlos Lopes: Brasil: S�ndrome de culpa (original) (raw)

Brasil

S�ndrome de culpa

Lu�s Carlos Lopes
La Insignia. Brasil, julho de 2007.

H� muita gente de ambos os sexos que se acha culpada por muita coisa. Pensa que est� nas suas m�os a solu��o de problemas sociais complexos ou, mesmo acredita, que alguns dos males brasileiros s�o de responsabilidade de todos. A s�ndrome de culpa � uma doen�a que tem origens antigas, remontando a uma sociedade mais comunit�ria - pr�-capitalista - que desapareceu na curva do tempo. Vincula-se a v�rias religi�es e a preconceitos urdidos na tradi��o cultural conservadora. Este mal estar � encontr�vel na conversa��o cotidiana, nas grandes e nas pequenas m�dias. V�-se tal sentimento � direita e � esquerda. Obviamente, existe quem tem culpa de fato e os que a imaginam ou s�o convencidos por alguma fonte de poder de que fatos deplor�veis s�o de sua responsabilidade.

Neste modo de ver simplificador, 'todos' seriam culpados pela criminalidade, mis�ria etc. Estes fatos sociais horrorosos ocorreriam porque as 'pessoas' nada fariam para impedir que eles se eternizassem. Os brasileiros seriam culpados por n�o saber votar, por escolher mal seus representantes no legislativo e no executivo. A corrup��o existiria porque 'todos' a aceitariam ou a praticariam. H� quem, � direita, que chega a dizer que a sociedade brasileira � corrupta, isto �, o que a maioria faria seria exatamente o mesmo. Conseguem, deste modo, suas r�pidas auto-absolvi��es e o usufruto sem m�cula dos frutos de suas a��es. � confortante pensar assim. Paradoxalmente, se todos s�o culpados, ningu�m de fato � pass�vel de ser responsabilizado. Culpar a todos � uma forma de tentar a absolvi��o na terra, porque nada se sabe do que acontecer� ap�s a morte. O mais prov�vel � que a morte seja a seq��ncia l�gica da vida, por mais que a exist�ncia de indiv�duos isolados termine como o apagar de uma vela.

N�o se pode conter a irrita��o frente a tal dilui��o dos sujeitos respons�veis pela exist�ncia humana. N�o � verdade que todos sejam culpados, por exemplo, do desemprego ou da exist�ncia terr�vel do trabalho escravo ou do feito em p�ssimas condi��es t�cnicas e humanas. Os respons�veis por estes esc�ndalos tr�gicos s�o os que t�m poder de dar ou de tirar empregos. As pessoas comuns das classes pobres e das classes m�dias n�o t�m este poder, portanto, n�o s�o respons�veis por estes fatos. Tamb�m, n�o t�m nada a ver com a exist�ncia da criminalidade ligada � mis�ria e nem com a dos pol�ticos e funcion�rios (corrup��o de Estado). Ao que se sabe, a maioria dos brasileiros, que t�m empregos ou pequenas rendas, vive do que ganha honestamente e n�o toma qualquer decis�o sobre estas quest�es, como tamb�m nada ganha al�m do que � poss�vel dentro dos seus limites econ�micos e sociais. Podem at� ser, em muitos casos, conservadores e omissos. Mas n�o � isso, o que provoca os problemas citados.

Os patr�es da cidade e do campo, os lobistas ligados �s grandes empresas e seus executivos s�o castas especiais da sociedade brasileira. N�o se confundem ou se misturam aos assalariados do setor p�blico e com os assalariados e pequenos rentistas do setor privado. Menos ainda, com a multid�o de subempregados e desempregados do pa�s. Os corruptores, sempre esquecidos, agem e pensam de modo particular. Para eles, o Brasil � um neg�cio e tudo tem seu pre�o. Trabalham com as cota��es de cada consci�ncia em poder de mando. Governam de modo indireto, comprando decis�es, votos e favores. Suportam economicamente, outrossim, os problemas pessoais de seus aliados que est�o no papel da corrup��o passiva. Est�o, h� muito tempo, presentes no Estado brasileiro, existindo como uma sombra do poder governamental. S�o o verdadeiro c�ncer da pol�tica brasileira. Quase invis�veis e, quase sempre, impunes, levando sempre a melhor parte.

Curiosamente, esta gente � quase totalmente impune. Corruptos, no Brasil, s�o os que est�o no Estado. Os que est�o fora, mesmo que apare�am nas investiga��es, s�o poupados de maiores constrangimentos. Em alguns casos, chegam a ser presos e soltos rapidamente, t�o r�pido quanto o tempo de serem esquecidos, por efeito de suas rela��es e poder de sedu��o simb�lica e, sobretudo, material. Se eles s�o muito poderosos, a pris�o n�o ser� jamais o seu lugar. H� sempre um jeito de compor a situa��o e evitar o vexame. A justi�a n�o tem qualquer pejo de se adaptar a cada circunst�ncia e proceder de acordo com as normas acertadas no consenso com as elites do pa�s. A flexibilidade da lei e do poder p�blico s�o impressionantes, quando se trata de gente com dinheiro, fama, cor branca e poder. J� caiu no esquecimento a id�ia da CPI (comiss�o parlamentar de inqu�rito) dos corruptores, uma das raz�es para tal foi que, possivelmente, teria sido necess�rio construir novas pris�es e abrir novas varas judiciais.

A culpa no sentido religioso n�o existe no mundo concreto. O que � real � a responsabilidade de classes e castas nos problemas do pa�s. N�o � menor a responsabilidade do Estado, aqui entendido como uma organiza��o usada para ordenar a sociedade, de acordo como os interesses mais fortes e em posi��o de domina��o. Neste sentido, eles s�o 'culpados' por n�o proporem solu��es efetivas das mazelas brasileiras. N�o desejam dividir renda. N�o querem construir uma sociedade democr�tica efetiva, baseada no di�logo e na busca de solu��o para os problemas mais graves do pa�s. O que querem � se beneficiar do caos. A criminalidade e a mis�ria extrema s�o vantajosas, do ponto de vista empresarial e, por vezes, do governamental. Permitem o aumento dos gastos com a seguran�a p�blica e privada. Movimentam a economia, rendendo lucros impressionantes, por meio da compra e venda de produtos e de servi�os ligados � quest�o da seguran�a. Fazem com que o Estado surja como paladino da lei e da ordem almejada pelos conservadores e pelas pessoas comuns.

Quando a 'culpa' � socializada, a 'absolvi��o' tamb�m o �. Produz-se a catarse, isto �, a paralisa��o do pensamento. Tudo fica como est�. Segundo Guido Mantega, a d�vida externa est� praticamente paga, com o ac�mulo recente e incr�vel das reservas cambiais. De acordo com mesmo ministro, a d�vida interna est� sob controle e em baixa, devido a nova pol�tica de juros. Mesmo assim, continua-se com a renda concentrada em poucas m�os e sem a divis�o esperada atrav�s dos mecanismos tradicionais j� existentes e de outros a serem inventados. Se a economia vai t�o bem, porque as pens�es de baixo valor da previd�ncia privada (INSS) e p�blica n�o s�o reajustadas para cima? Por que n�o se incentiva o cr�dito popular a juros negativos? Por que n�o se faz uma reforma agr�ria definitiva, corrigindo-se um problema de cem anos de exist�ncia e fixando-se o homem no campo, evitando-se o incha�o urbano? Por que n�o se faz uma pol�tica de controle da natalidade, esquecendo o conservadorismo papal, e lembrando que o modelo de governo brasileiro � de uma rep�blica laica? Por que o Estado n�o distribui mais empregos, principalmente para os jovens mais pobres? Por que n�o se obrigam as empresas p�blicas e privadas a fazerem o mesmo? Por que n�o se aumenta substantivamente o sal�rio m�nimo, que � o principal indexador dos sal�rios brasileiros? Por qu�?