rita garnel | Faculdade de Ciências Sociais e Humanas - Universidade Nova de Lisboa (original) (raw)

Papers by rita garnel

Research paper thumbnail of A consolidação do poder médico: a medicina social nas teses da escola médico-cirúrgica de Lisboa (1900-1910)A consolidação do poder médico: a medicina social nas teses da escola médico-cirúrgica de Lisboa (1900-1910)

Miguel Bombarda e as singularidades de uma época: 1851-1910, 2006

Research paper thumbnail of Disease and Public Health  (Portugal) in encyclopedia 1914-1918-online.net

In recent years, the number of studies on the Portuguese First Republican experience has tripled.... more In recent years, the number of studies on the Portuguese First Republican experience has tripled. The centennial commemoration of the Republican regime in 2010 was a powerful incentive. The aim of this article is to provide a synthetic but comprehensive view of the difficulties Portuguese public health authorities faced during the First Republic's regime (1910-1926), focusing on the difficulties exacerbated by the war (food shortages, social and political unrest). The article examines the structure of the public health authority as well as its response to specific health crises (typhus, flu, smallpox epidemics) and long-term endemic diseases, particularly tuberculosis.

Research paper thumbnail of Prevenir, cuidar e tratar. O Ministério (Do Reino e Interior) e a saúde dos povos (1834-1957)

História do Ministério da Administração Interna (dir. P. Tavares de Almeida e P. Silveira e Sousa), 2014

Prevenir, cuidar e tratar: o Ministe rio e a sau de dos povos (1834-1957) INTRODUÇÃ O Este texto ... more Prevenir, cuidar e tratar: o Ministe rio e a sau de dos povos (1834-1957) INTRODUÇÃ O Este texto pretende dar conta do modo como o Estado, através da sua administração central -Ministério do Reino e Ministério do Interiorpreveniu e tratou as questões que afectavam a saúde dos portugueses. Dito por outras palavras: este texto não tem como objectivo esboçar a história da sanidade e assistência públicas em Portugal, no período em apreço, dimensão que, contudo, estará sempre presente. É que o conhecimento e o controlo das epidemias, os desenvolvimentos da medicina e da cirurgia, as exigências crescentes de salubridade urbana (água, esgotos, limpeza pública, abastecimentos), a emergência da bacteriologia e da epidemiologia, a extensão da assistência latu sensu (na qual se enquadra e destaca a hospitalar) e o policiamento dos comportamentos são aspectos que terão, inevitavelmente, de ser equacionados, ainda que o exame da legislação, o reconhecimento da existência de uma vontade política em estender a malha administrativa sanitária e assistencial a todo o território, a notação da emergência de funcionários especializados, o registo das iniciativas que visavam a apreensão da realidade médica e sanitária portuguesa e as tentativas de superintendência de médicos, cirurgiões e boticários (e demais profissões que se entregavam especializadamente às artes de curar) constituam o objecto principal desta narrativa.

Research paper thumbnail of Os Médicos, a saúde publica e o Estado improvidente (1890-1926)

Estudos do Século XX, n.º 13, 2013

Este artigo pretende ilustrar o difícil percurso do alargamento da intervenção do Estado no que à... more Este artigo pretende ilustrar o difícil percurso do alargamento da intervenção do Estado no que à saúde pública dizia respeito. E, como se procurará demonstrar, ainda que a opinião pública aceitasse o discurso médico sobre a necessidade de maior intervenção pública, as elites governamentais foram mais resistentes: contando com a cooperação das -e estimulando e controlando as -iniciativas locais, mutualistas e privadas, invocavam-se as debilidades económicas e financeiras do país e sublinhava-se a ideia de que a saúde era primariamente uma responsabilidade individual. A partir dos finais do século XIX, os médicos também não se mostraram unânimes: criticavam a administração sanitária pela sua tibieza e desejavam o alargamento dos quadros de modo a neles poderem ingressar, mas temiam a subordinação administrativa, desejavam a liberdade de exercício da profissão e receavam a perda de prestígio (e de clientela privada) se a saúde se tornasse uma responsabilidade social.

Research paper thumbnail of Da Escola Régia de Cirurgia à Faculdade de Medicina de Lisboa

A Universidade de Lisboa, séculos XIX-XX, vol.II (coord. Sérgio Campos Matos e Jorge Ramos do Ó, 2013

A COLINA DE SANTANA 71 ESPAÇOS E MÉTODOS DE APRENDIZAGEM 82 DOS CIRURGIÕES, PROFESSORES E INVESTI... more A COLINA DE SANTANA 71 ESPAÇOS E MÉTODOS DE APRENDIZAGEM 82 DOS CIRURGIÕES, PROFESSORES E INVESTIGADORES: A TRANSFORMAÇÃO DO ENSINO 98 ESCOLA OU UNIVERSIDADE 98 AS REFORMAS 107 À MANEIRA DE CONCLUSÃO 122 VOCAÇÃO OU PROFISSÃO 122 11 CANGUILHEM, Georges, Le normal et le pathologique, Paris, 1972. 12 BERNARD, Claude, Introdução à medicina experimental, Lisboa, 1978. 13 HOLMES, Frederic C., "La Physiologie et la médecine expérimentale", Histoire de la pensée médicale en Occident, vol. 3, Paris, 1999, p. 77. 12 medicina a biblioteca; mas [eram-lhe] indispensáveis os hospitais, com grande movimento de doentes, os laboratórios e os museus" 17 , do mesmo modo que faziam depender o desenvolvimento do ensino clínico da fragmentação dos estudos. Dito de outro modo, a formação adequada de um bom médico começava a exigir uma especialização disciplinar crescente, pelo que, além da preparação generalista que a Escola providenciava, os alunos também teriam de ser adequadamente preparados em áreas tão diversas como "as doenças mentais, a sifilografia, a dermatologia, as doenças de crianças, as doenças nervosas" 18 . Reconhecer a necessidade destas modificações curriculares e metodológicas não constituía, contudo, aceitação passiva das novidades experimentais em detrimento da observação do doente que seria "sempre a grande luz que dirige o médico na apreciação e valor prognóstico dos sintomas, na segurança das indicações e no emprego de uma terapêutica eficaz" 19 . Como se percebe, o ensino médico em Lisboa, desde os inícios do século XIX, assentava fundamentalmente na clínica (médica e cirúrgica); contudo, só em 1863 se consagrou a orientação anatomopatológica dos estudos, e, nos finais da década seguinte, essa dimensão começaria a parecer insuficiente. (FIG. 1 -May Figueira e Ricardo Jorge) A higiene pública "Os olores urbanos são a preocupação capital das individualidades sanitárias; as pobres pituitárias nunca se viram sob tão tremenda metralha de partículas odoríferas. Todos os seus processos de investigação higiénica reduzem-se essencialmente a cheirar; o olfacto, tão baixo na escala estésica, sobreleva como factor sanitário a tudo o mais." 20 Ricardo Jorge, 1885

Research paper thumbnail of Bernardo Lucas: a defesa dos arguidos e a perícia médico-legal

A Criminologia: um arquipélago interdisciplinar (Dir. Cândido da Agra), 2012

1. Introdução Em 1896, a Revista Jurídica, dirigida pelo advogado portuense Bernardo Lucas, retom... more 1. Introdução Em 1896, a Revista Jurídica, dirigida pelo advogado portuense Bernardo Lucas, retomava a sua publicação após suspensão temporária 1 . Um dos primeiros números da nova série abria com as palavras que o seu director planeara proferir junto do túmulo do seu mestre, Alexandre Braga (pai), não fora "autoritariamente resolvido coarctar a liberdade de manifestações em honra daquele que, no Porto, foi talvez o mais vivo defensor das liberdades"; e acerca do famoso causídico dizia: "Alexandre Braga não foi um defensor: foi o DEFENSOR,o defensor por excelência (...) um táctico de primeira ordem e um psicólogo (...) no tribunal sonhava a liberdade dos réus, na imprensa e no comício a liberdade de pensamento e a liberdade da pátria!" 2 . Palavras sentidas de um discípulo que se notabilizou, também ele, como advogado de defesa e que, como o Mestre, foi um republicano convicto. Nascido a 22 de Maio de 1864 em Vila Nova de Gaia, Bernardo de Almeida Lucas formou-se em Direito na Universidade de Coimbra em 1888. Fez parte daquelas gerações que frequentaram a Universidade nas décadas de 1860, 70 e 80 e aí não só descobriram a Humanidade, revelação trazida nos livros franceses e nas traduções francesas da filosofia e do direito alemães, que iam chegando pelos caminhos-de-ferro, como crescentemente depositaram uma fé ardente na realização da Utopia pela Ciência. Queria isto dizer que também o Direito teria de incorporar os novos dados das ciências biológicas e experimentais, campo em que se assistia a uma extraordinária expansão. A resistência a esta naturalização do indivíduo, da sociedade e dos saberes foi, como se sabe, grande; a título de exemplo, recorde-se o modo como Filomeno da Câmara, lente de Medicina da Faculdade, implicitamente, deu conta dos debates * Investigadora do CesNova. Pós-doutoranda com bolsa da F.C.T. 2 apaixonados que tumultuavam a Academia, ao dizer a propósito de Antero de Quental, que este "não pertenceu ao número destes observadores pacientes da natureza; não partiu dos factos para as teorias; entregou-se desde o começo dos seus estudos às lucubrações mais abstractas e à leitura dos livros mais transcendentes da escola metafísica" 1 . Na Faculdade de Direito, esta luta pela cientificização do saber jurídico encontrara, precocemente, o apoio no magistério de Manuel Emídio Garciae em particular na cadeira de Direito Administrativoe, na década de 1880, permeava o ensino de Direito Penal, sobretudo nas lições de Henriques da Silva (de quem Bernardo Lucas foi aluno). O eco destas novidades, recebidas por muitos com estranheza, alguma indignação e não pouca ironia, ultrapassava as aulas e começava a transbordar para o espaço público, quer pela mão de advogados de defesa bem conhecidos, quer pela mão de jornalistas. De que se tratava afinal? Queriam os apóstolos da nova escola penal italiana, que o direito, laboriosamente construído na primeira metade do século XIX, abandonasse o pressuposto de que todo o delito era a consequência de uma vontade livremente corrompida para entenderem que a natureza (individual, social, étnica, etc.) era um factor determinante no agir delituoso. Se se aceitasse este determinismo natural, que parecia comprovado pelos trabalhos de Morel, Darwin e Lombroso e também pelo sociologismo jurídico francês, o Direito deveria seguir "o método experimental", estudando a patologia criminal nos seus sintomas criminosos, e "fazer desaparecer aquele contraste entre a teoria dos delitos e penas [metafísica] e os factos quotidianos" 2 .

Research paper thumbnail of Médicos e Saúde Pública no Parlamento Republicano

Res Publica. Cidadania e Representação Política, Coord. Fernando Catroga e Pedro Tavares de Almeida, 2010

Estando actualmente a nossa classe profusamente representada no Parlamento, é lícito esperar que,... more Estando actualmente a nossa classe profusamente representada no Parlamento, é lícito esperar que, ao contrário do que outrora sucedia, os parlamentares médicos se não alheiem dos interesses vitais da sua profissão, que são os da sociedade que representam". Cândido da Cruz, 1912. Estas palavras do professor da Faculdade de Medicina do Porto traduzem as expectativas de muitos médicos nos inícios da República. Com o novo regime político e com a expressiva representação parlamentar muitos clínicos acreditaram estar a viver o início da regeneração médica de Portugal. Desde a década de 1890, cresciam os discursos pessimistas sobre a degenerescência da raça e a miséria fisiológica dos portugueses, faziam-se apreciações negativas sobre a salubridade pública e apontavamse as carências sanitárias de todo o género, diagnósticos que sempre sublinhavam a necessidade de uma maior intervenção do Estado na matéria. Daí que a fórmula protocolar escolhida pelo regime republicano «Saúde e Fraternidade» sintetizasse bem as aspirações: com a República todos poderiam aspirar à concretização da sociedade saudável e solidária. Já tem sido notado o peso crescente das profissões liberais na Câmara dos Deputados e o aumento significativo do número de médicos na sede da representação parlamentar 1 . Este crescimento pode e deve ser interpretado como sinal da força de um grupo profissional que, nos inícios do século XX, detinha um prestígio social que porventura só encontrava paralelo na importância dada ao homem de letras. Os médicos, contudo, falavam em nome da ciência, manto credibilizador que os autorizava a diagnosticar não só as doenças do corpo individual como os males da sociedade (ALMEIDA, 1995: 346-347; ALMEIDA; FERNANDES; SANTOS 2006). Daí a extensão dos assuntos que directa ou indirectamente se relacionavam com a saúde das populações, objecto político, sobre o qual os médicos entendiam dever pronunciar-se e sobre o qual esperavam ser ouvidos.

Research paper thumbnail of Morte e memória da pneumónica de 1918

A Pandemia esquecida. Olhares comparados sobre a pneumónica 1918-1919, org. J. M. Sobral et al., 2009

Ao longo do século XIX, a preocupação do Estado para com a saúde das populaçõesa maior riqueza de... more Ao longo do século XIX, a preocupação do Estado para com a saúde das populaçõesa maior riqueza de um paísfoi visível nas medidas tomadas para afastar e conter as epidemias estranhas. O crescimento e intensificação do comércio internacional, o crescimento demográfico, a industrialização e rápido crescimento das urbes agravavam as consequências de epidemias importadas como as de cólera, febreamarela e peste bubónica. Estas tornaram-se o centro das atenções sanitárias, sem dúvida pela dimensão súbita, dramática e esporádica e, por isso, aterrorizadora das suas eclosões.

Research paper thumbnail of Portugal e as Conferências Sanitárias Internacionais

Em torno das epidemias oitocentistas de cholera-morbus) INTRODUÇÃO 1. Em 1832 a Europa foi assola... more Em torno das epidemias oitocentistas de cholera-morbus) INTRODUÇÃO 1. Em 1832 a Europa foi assolada pela primeira pandemia de cólera. A doença não era desconhecida sobretudo dos países colonizadores do Oriente, onde grassava endemicamente. A intensificação das trocas comerciais acabou por potenciar a sua irradiação para fora do foco indiano original; na década de 1820, ela afligiu a Rússia e dez anos depois os países mais ocidentais. Ao longo do século XIX, e em intervalos decenais quase regulares, seis epidemias apavoraram as populações europeias, perante a impotência da medicina e dos Estados 1 . As epidemias não eram novidade para os países europeus, desde há muito e periodicamente confrontados com várias pestilências: peste bubónica, varíola, lepra, febre-amarela. Mas a cólera era nova, atacava com ferocidade e propagava-se velozmente, desafiando as medidas preventivas costumeiras. As terapêuticas e profilaxias pareciam inúteis. Cordões sanitários, quarentenas, queima de ervas aromáticas pelas ruas, sangrias, abafos, banhos de vapor e tiras de flanela enroladas em torno do abdómen não surtiam efeito. O saber médico parecia impotente perante tal calamidade. Em 2005, Peter Baldwin 2 num estudo comparativo levantava as seguintes questões: dado que o conhecimento médico era sensivelmente o mesmo em toda a Europa porque adoptaram os diferentes Estados nacionais medidas antiepidémicas tão 1 KOLATA, Gina -Flu. The story of the great influenza pandemic of 1918 and the search for the vírus that caused it. New York: Touchstone, 2005. pp.41-47. divergentes? Porque é que, perante a ameaça de cólera, uns defenderam medidas que restringiam os movimentos de pessoas e bens e outros insistiram na higienização das cidades? O impacto económico destas divergências nacionais tornou-se notório a partir de meados da centúria. Por um lado, os transportes terrestres e marítimos encontravam em cada fronteira um emaranhado de exigências diferenciadas, que embaraçavam o trânsito comercial; por outro, a má saúde dos grupos laboriosos e uma elevada mortalidade tinham custos consideráveis 3 . Daí que, a partir de 1851, as potências europeias se tenham reunido regularmente em Conferências Sanitárias Internacionais que visavam não só a discussão científica da nosologia, como também apostavam na uniformização das medidas que, sem pôr em risco as populações, minimizassem as demoras e os incómodos que sujeitavam o comércio internacional. Os debates que tiveram lugar nas diferentes Conferênciase nas quais Portugal foi presença assíduadão conta de um conhecimento científico em constante mutação, e ilustram posições nacionais divergentes e mutáveis ao longo do tempo. As grandes potências europeias -Inglaterra, França e mais tarde a Alemanhaposicionaram-se em campos por vezes antagónicos pressionando os países mais pequenos e periféricos a prescindirem da severidade das medidas quarentenárias. O objectivo deste artigo não é seguir detalhadamente as epidemias de cólera, nem fazer o levantamento exaustivo do estado do conhecimento médico e dos diferentes tratamentos prescritos ao longo de Oitocentos em Portugal. As questões que aqui se levantam são devedoras das enunciadas por Baldwin; trata-se de tentar perceber: 1) qual foi a posição adoptada por Portugal, nas Conferências Sanitárias Internacionais, perante as epidemias de cólera; 2) e como se justificaraminterna e diplomaticamenteas políticas adoptadas; 3) que modelo e que exemplos se seguiram no combate à epidemia? 2. Estas questões pressupõem a existência de uma organização de saúde pública. Em Portugal e no dealbar do século XIX, tal estrutura administrativa era incipiente. Não quer isto dizer que em Portugal não houvesse já algumas estruturas de socorro e amparo na doença. Não se ignora a existência de iniciativas, privadas, ou o trabalho das Misericórdias e das instituições religiosas. O que, todavia, sustentamos é 2 BALDWIN, Peter. Contagion and the State in Europe,1830-1930. Cambridge; Cambridge University Press, 2005.

Research paper thumbnail of O Emprego Feminino na transição do século XIX para o século XX

Research paper thumbnail of O Caso Rosa Calmon: género, discurso médico e opinião pública

Falar de Mulheres. História e Historiografia., 2008

Research paper thumbnail of A Vítima e o Direito Penal Oitocentista

INTRODUÇÃO Ao longo de todo o século XIX (e boa parte do século XX), a vítima ─ ou o ofendido com... more INTRODUÇÃO Ao longo de todo o século XIX (e boa parte do século XX), a vítima ─ ou o ofendido como a literatura jurídica Oitocentista preferia chamar-lhe ─ sendo essencial à existência do direito penal desempenhou, contudo, um papel secundário. A estrutura processual da penalidade moderna reduziu-a "a uma mera testemunha da lesão dos interesses do soberano" 1 . No lugar de protagonistas da encenação jurídico-penal surgiram, de um lado, o Estado, e do outro, o crime, o criminoso e a pena que este deveria sofrer. Reconhecendo-se embora que o mal sofrido pela vítima deveria ser reparado, para que a paz pública alterada pelo delito fosse completamente reposta, a reparação do dano feito ao ofendido foi deixada de fora do ordenamento jurídicopenal e remetida para o ramo civilista do Direito. Ora, este lugar apagado e contraditório da vítima no interior do direito penal precisa ser sublinhado e também explicado. O aparecimento e gradual monopólio do direito penal pelo soberano ─ afirmação do direito penal público ─ foi sector chave da construção do Estado moderno. Assumindo-se este como o único garante da paz e segurança públicas, logo como o único detentor do monopólio da violência legítima, este papel foi construído em boa parte à custa da vítima; isto é, para alcançar este fim social de paz e segurança, o Estado usurpou o lugar outrora ocupado pela vítima e passou a entender todo e qualquer crime como lesivo da ordem social que deveria ser por ele, e somente por ele, punido; o delito deixou de ser exclusivamente assunto entre duas partes, resolvido ou não por intermédio dos tribunais e, a pena, de reparação do dano, passou NOTAS

Research paper thumbnail of A consolidação do poder médico: a medicina social nas teses da escola médico-cirúrgica de Lisboa (1900-1910)A consolidação do poder médico: a medicina social nas teses da escola médico-cirúrgica de Lisboa (1900-1910)

Miguel Bombarda e as singularidades de uma época: 1851-1910, 2006

Research paper thumbnail of Disease and Public Health  (Portugal) in encyclopedia 1914-1918-online.net

In recent years, the number of studies on the Portuguese First Republican experience has tripled.... more In recent years, the number of studies on the Portuguese First Republican experience has tripled. The centennial commemoration of the Republican regime in 2010 was a powerful incentive. The aim of this article is to provide a synthetic but comprehensive view of the difficulties Portuguese public health authorities faced during the First Republic's regime (1910-1926), focusing on the difficulties exacerbated by the war (food shortages, social and political unrest). The article examines the structure of the public health authority as well as its response to specific health crises (typhus, flu, smallpox epidemics) and long-term endemic diseases, particularly tuberculosis.

Research paper thumbnail of Prevenir, cuidar e tratar. O Ministério (Do Reino e Interior) e a saúde dos povos (1834-1957)

História do Ministério da Administração Interna (dir. P. Tavares de Almeida e P. Silveira e Sousa), 2014

Prevenir, cuidar e tratar: o Ministe rio e a sau de dos povos (1834-1957) INTRODUÇÃ O Este texto ... more Prevenir, cuidar e tratar: o Ministe rio e a sau de dos povos (1834-1957) INTRODUÇÃ O Este texto pretende dar conta do modo como o Estado, através da sua administração central -Ministério do Reino e Ministério do Interiorpreveniu e tratou as questões que afectavam a saúde dos portugueses. Dito por outras palavras: este texto não tem como objectivo esboçar a história da sanidade e assistência públicas em Portugal, no período em apreço, dimensão que, contudo, estará sempre presente. É que o conhecimento e o controlo das epidemias, os desenvolvimentos da medicina e da cirurgia, as exigências crescentes de salubridade urbana (água, esgotos, limpeza pública, abastecimentos), a emergência da bacteriologia e da epidemiologia, a extensão da assistência latu sensu (na qual se enquadra e destaca a hospitalar) e o policiamento dos comportamentos são aspectos que terão, inevitavelmente, de ser equacionados, ainda que o exame da legislação, o reconhecimento da existência de uma vontade política em estender a malha administrativa sanitária e assistencial a todo o território, a notação da emergência de funcionários especializados, o registo das iniciativas que visavam a apreensão da realidade médica e sanitária portuguesa e as tentativas de superintendência de médicos, cirurgiões e boticários (e demais profissões que se entregavam especializadamente às artes de curar) constituam o objecto principal desta narrativa.

Research paper thumbnail of Os Médicos, a saúde publica e o Estado improvidente (1890-1926)

Estudos do Século XX, n.º 13, 2013

Este artigo pretende ilustrar o difícil percurso do alargamento da intervenção do Estado no que à... more Este artigo pretende ilustrar o difícil percurso do alargamento da intervenção do Estado no que à saúde pública dizia respeito. E, como se procurará demonstrar, ainda que a opinião pública aceitasse o discurso médico sobre a necessidade de maior intervenção pública, as elites governamentais foram mais resistentes: contando com a cooperação das -e estimulando e controlando as -iniciativas locais, mutualistas e privadas, invocavam-se as debilidades económicas e financeiras do país e sublinhava-se a ideia de que a saúde era primariamente uma responsabilidade individual. A partir dos finais do século XIX, os médicos também não se mostraram unânimes: criticavam a administração sanitária pela sua tibieza e desejavam o alargamento dos quadros de modo a neles poderem ingressar, mas temiam a subordinação administrativa, desejavam a liberdade de exercício da profissão e receavam a perda de prestígio (e de clientela privada) se a saúde se tornasse uma responsabilidade social.

Research paper thumbnail of Da Escola Régia de Cirurgia à Faculdade de Medicina de Lisboa

A Universidade de Lisboa, séculos XIX-XX, vol.II (coord. Sérgio Campos Matos e Jorge Ramos do Ó, 2013

A COLINA DE SANTANA 71 ESPAÇOS E MÉTODOS DE APRENDIZAGEM 82 DOS CIRURGIÕES, PROFESSORES E INVESTI... more A COLINA DE SANTANA 71 ESPAÇOS E MÉTODOS DE APRENDIZAGEM 82 DOS CIRURGIÕES, PROFESSORES E INVESTIGADORES: A TRANSFORMAÇÃO DO ENSINO 98 ESCOLA OU UNIVERSIDADE 98 AS REFORMAS 107 À MANEIRA DE CONCLUSÃO 122 VOCAÇÃO OU PROFISSÃO 122 11 CANGUILHEM, Georges, Le normal et le pathologique, Paris, 1972. 12 BERNARD, Claude, Introdução à medicina experimental, Lisboa, 1978. 13 HOLMES, Frederic C., "La Physiologie et la médecine expérimentale", Histoire de la pensée médicale en Occident, vol. 3, Paris, 1999, p. 77. 12 medicina a biblioteca; mas [eram-lhe] indispensáveis os hospitais, com grande movimento de doentes, os laboratórios e os museus" 17 , do mesmo modo que faziam depender o desenvolvimento do ensino clínico da fragmentação dos estudos. Dito de outro modo, a formação adequada de um bom médico começava a exigir uma especialização disciplinar crescente, pelo que, além da preparação generalista que a Escola providenciava, os alunos também teriam de ser adequadamente preparados em áreas tão diversas como "as doenças mentais, a sifilografia, a dermatologia, as doenças de crianças, as doenças nervosas" 18 . Reconhecer a necessidade destas modificações curriculares e metodológicas não constituía, contudo, aceitação passiva das novidades experimentais em detrimento da observação do doente que seria "sempre a grande luz que dirige o médico na apreciação e valor prognóstico dos sintomas, na segurança das indicações e no emprego de uma terapêutica eficaz" 19 . Como se percebe, o ensino médico em Lisboa, desde os inícios do século XIX, assentava fundamentalmente na clínica (médica e cirúrgica); contudo, só em 1863 se consagrou a orientação anatomopatológica dos estudos, e, nos finais da década seguinte, essa dimensão começaria a parecer insuficiente. (FIG. 1 -May Figueira e Ricardo Jorge) A higiene pública "Os olores urbanos são a preocupação capital das individualidades sanitárias; as pobres pituitárias nunca se viram sob tão tremenda metralha de partículas odoríferas. Todos os seus processos de investigação higiénica reduzem-se essencialmente a cheirar; o olfacto, tão baixo na escala estésica, sobreleva como factor sanitário a tudo o mais." 20 Ricardo Jorge, 1885

Research paper thumbnail of Bernardo Lucas: a defesa dos arguidos e a perícia médico-legal

A Criminologia: um arquipélago interdisciplinar (Dir. Cândido da Agra), 2012

1. Introdução Em 1896, a Revista Jurídica, dirigida pelo advogado portuense Bernardo Lucas, retom... more 1. Introdução Em 1896, a Revista Jurídica, dirigida pelo advogado portuense Bernardo Lucas, retomava a sua publicação após suspensão temporária 1 . Um dos primeiros números da nova série abria com as palavras que o seu director planeara proferir junto do túmulo do seu mestre, Alexandre Braga (pai), não fora "autoritariamente resolvido coarctar a liberdade de manifestações em honra daquele que, no Porto, foi talvez o mais vivo defensor das liberdades"; e acerca do famoso causídico dizia: "Alexandre Braga não foi um defensor: foi o DEFENSOR,o defensor por excelência (...) um táctico de primeira ordem e um psicólogo (...) no tribunal sonhava a liberdade dos réus, na imprensa e no comício a liberdade de pensamento e a liberdade da pátria!" 2 . Palavras sentidas de um discípulo que se notabilizou, também ele, como advogado de defesa e que, como o Mestre, foi um republicano convicto. Nascido a 22 de Maio de 1864 em Vila Nova de Gaia, Bernardo de Almeida Lucas formou-se em Direito na Universidade de Coimbra em 1888. Fez parte daquelas gerações que frequentaram a Universidade nas décadas de 1860, 70 e 80 e aí não só descobriram a Humanidade, revelação trazida nos livros franceses e nas traduções francesas da filosofia e do direito alemães, que iam chegando pelos caminhos-de-ferro, como crescentemente depositaram uma fé ardente na realização da Utopia pela Ciência. Queria isto dizer que também o Direito teria de incorporar os novos dados das ciências biológicas e experimentais, campo em que se assistia a uma extraordinária expansão. A resistência a esta naturalização do indivíduo, da sociedade e dos saberes foi, como se sabe, grande; a título de exemplo, recorde-se o modo como Filomeno da Câmara, lente de Medicina da Faculdade, implicitamente, deu conta dos debates * Investigadora do CesNova. Pós-doutoranda com bolsa da F.C.T. 2 apaixonados que tumultuavam a Academia, ao dizer a propósito de Antero de Quental, que este "não pertenceu ao número destes observadores pacientes da natureza; não partiu dos factos para as teorias; entregou-se desde o começo dos seus estudos às lucubrações mais abstractas e à leitura dos livros mais transcendentes da escola metafísica" 1 . Na Faculdade de Direito, esta luta pela cientificização do saber jurídico encontrara, precocemente, o apoio no magistério de Manuel Emídio Garciae em particular na cadeira de Direito Administrativoe, na década de 1880, permeava o ensino de Direito Penal, sobretudo nas lições de Henriques da Silva (de quem Bernardo Lucas foi aluno). O eco destas novidades, recebidas por muitos com estranheza, alguma indignação e não pouca ironia, ultrapassava as aulas e começava a transbordar para o espaço público, quer pela mão de advogados de defesa bem conhecidos, quer pela mão de jornalistas. De que se tratava afinal? Queriam os apóstolos da nova escola penal italiana, que o direito, laboriosamente construído na primeira metade do século XIX, abandonasse o pressuposto de que todo o delito era a consequência de uma vontade livremente corrompida para entenderem que a natureza (individual, social, étnica, etc.) era um factor determinante no agir delituoso. Se se aceitasse este determinismo natural, que parecia comprovado pelos trabalhos de Morel, Darwin e Lombroso e também pelo sociologismo jurídico francês, o Direito deveria seguir "o método experimental", estudando a patologia criminal nos seus sintomas criminosos, e "fazer desaparecer aquele contraste entre a teoria dos delitos e penas [metafísica] e os factos quotidianos" 2 .

Research paper thumbnail of Médicos e Saúde Pública no Parlamento Republicano

Res Publica. Cidadania e Representação Política, Coord. Fernando Catroga e Pedro Tavares de Almeida, 2010

Estando actualmente a nossa classe profusamente representada no Parlamento, é lícito esperar que,... more Estando actualmente a nossa classe profusamente representada no Parlamento, é lícito esperar que, ao contrário do que outrora sucedia, os parlamentares médicos se não alheiem dos interesses vitais da sua profissão, que são os da sociedade que representam". Cândido da Cruz, 1912. Estas palavras do professor da Faculdade de Medicina do Porto traduzem as expectativas de muitos médicos nos inícios da República. Com o novo regime político e com a expressiva representação parlamentar muitos clínicos acreditaram estar a viver o início da regeneração médica de Portugal. Desde a década de 1890, cresciam os discursos pessimistas sobre a degenerescência da raça e a miséria fisiológica dos portugueses, faziam-se apreciações negativas sobre a salubridade pública e apontavamse as carências sanitárias de todo o género, diagnósticos que sempre sublinhavam a necessidade de uma maior intervenção do Estado na matéria. Daí que a fórmula protocolar escolhida pelo regime republicano «Saúde e Fraternidade» sintetizasse bem as aspirações: com a República todos poderiam aspirar à concretização da sociedade saudável e solidária. Já tem sido notado o peso crescente das profissões liberais na Câmara dos Deputados e o aumento significativo do número de médicos na sede da representação parlamentar 1 . Este crescimento pode e deve ser interpretado como sinal da força de um grupo profissional que, nos inícios do século XX, detinha um prestígio social que porventura só encontrava paralelo na importância dada ao homem de letras. Os médicos, contudo, falavam em nome da ciência, manto credibilizador que os autorizava a diagnosticar não só as doenças do corpo individual como os males da sociedade (ALMEIDA, 1995: 346-347; ALMEIDA; FERNANDES; SANTOS 2006). Daí a extensão dos assuntos que directa ou indirectamente se relacionavam com a saúde das populações, objecto político, sobre o qual os médicos entendiam dever pronunciar-se e sobre o qual esperavam ser ouvidos.

Research paper thumbnail of Morte e memória da pneumónica de 1918

A Pandemia esquecida. Olhares comparados sobre a pneumónica 1918-1919, org. J. M. Sobral et al., 2009

Ao longo do século XIX, a preocupação do Estado para com a saúde das populaçõesa maior riqueza de... more Ao longo do século XIX, a preocupação do Estado para com a saúde das populaçõesa maior riqueza de um paísfoi visível nas medidas tomadas para afastar e conter as epidemias estranhas. O crescimento e intensificação do comércio internacional, o crescimento demográfico, a industrialização e rápido crescimento das urbes agravavam as consequências de epidemias importadas como as de cólera, febreamarela e peste bubónica. Estas tornaram-se o centro das atenções sanitárias, sem dúvida pela dimensão súbita, dramática e esporádica e, por isso, aterrorizadora das suas eclosões.

Research paper thumbnail of Portugal e as Conferências Sanitárias Internacionais

Em torno das epidemias oitocentistas de cholera-morbus) INTRODUÇÃO 1. Em 1832 a Europa foi assola... more Em torno das epidemias oitocentistas de cholera-morbus) INTRODUÇÃO 1. Em 1832 a Europa foi assolada pela primeira pandemia de cólera. A doença não era desconhecida sobretudo dos países colonizadores do Oriente, onde grassava endemicamente. A intensificação das trocas comerciais acabou por potenciar a sua irradiação para fora do foco indiano original; na década de 1820, ela afligiu a Rússia e dez anos depois os países mais ocidentais. Ao longo do século XIX, e em intervalos decenais quase regulares, seis epidemias apavoraram as populações europeias, perante a impotência da medicina e dos Estados 1 . As epidemias não eram novidade para os países europeus, desde há muito e periodicamente confrontados com várias pestilências: peste bubónica, varíola, lepra, febre-amarela. Mas a cólera era nova, atacava com ferocidade e propagava-se velozmente, desafiando as medidas preventivas costumeiras. As terapêuticas e profilaxias pareciam inúteis. Cordões sanitários, quarentenas, queima de ervas aromáticas pelas ruas, sangrias, abafos, banhos de vapor e tiras de flanela enroladas em torno do abdómen não surtiam efeito. O saber médico parecia impotente perante tal calamidade. Em 2005, Peter Baldwin 2 num estudo comparativo levantava as seguintes questões: dado que o conhecimento médico era sensivelmente o mesmo em toda a Europa porque adoptaram os diferentes Estados nacionais medidas antiepidémicas tão 1 KOLATA, Gina -Flu. The story of the great influenza pandemic of 1918 and the search for the vírus that caused it. New York: Touchstone, 2005. pp.41-47. divergentes? Porque é que, perante a ameaça de cólera, uns defenderam medidas que restringiam os movimentos de pessoas e bens e outros insistiram na higienização das cidades? O impacto económico destas divergências nacionais tornou-se notório a partir de meados da centúria. Por um lado, os transportes terrestres e marítimos encontravam em cada fronteira um emaranhado de exigências diferenciadas, que embaraçavam o trânsito comercial; por outro, a má saúde dos grupos laboriosos e uma elevada mortalidade tinham custos consideráveis 3 . Daí que, a partir de 1851, as potências europeias se tenham reunido regularmente em Conferências Sanitárias Internacionais que visavam não só a discussão científica da nosologia, como também apostavam na uniformização das medidas que, sem pôr em risco as populações, minimizassem as demoras e os incómodos que sujeitavam o comércio internacional. Os debates que tiveram lugar nas diferentes Conferênciase nas quais Portugal foi presença assíduadão conta de um conhecimento científico em constante mutação, e ilustram posições nacionais divergentes e mutáveis ao longo do tempo. As grandes potências europeias -Inglaterra, França e mais tarde a Alemanhaposicionaram-se em campos por vezes antagónicos pressionando os países mais pequenos e periféricos a prescindirem da severidade das medidas quarentenárias. O objectivo deste artigo não é seguir detalhadamente as epidemias de cólera, nem fazer o levantamento exaustivo do estado do conhecimento médico e dos diferentes tratamentos prescritos ao longo de Oitocentos em Portugal. As questões que aqui se levantam são devedoras das enunciadas por Baldwin; trata-se de tentar perceber: 1) qual foi a posição adoptada por Portugal, nas Conferências Sanitárias Internacionais, perante as epidemias de cólera; 2) e como se justificaraminterna e diplomaticamenteas políticas adoptadas; 3) que modelo e que exemplos se seguiram no combate à epidemia? 2. Estas questões pressupõem a existência de uma organização de saúde pública. Em Portugal e no dealbar do século XIX, tal estrutura administrativa era incipiente. Não quer isto dizer que em Portugal não houvesse já algumas estruturas de socorro e amparo na doença. Não se ignora a existência de iniciativas, privadas, ou o trabalho das Misericórdias e das instituições religiosas. O que, todavia, sustentamos é 2 BALDWIN, Peter. Contagion and the State in Europe,1830-1930. Cambridge; Cambridge University Press, 2005.

Research paper thumbnail of O Emprego Feminino na transição do século XIX para o século XX

Research paper thumbnail of O Caso Rosa Calmon: género, discurso médico e opinião pública

Falar de Mulheres. História e Historiografia., 2008

Research paper thumbnail of A Vítima e o Direito Penal Oitocentista

INTRODUÇÃO Ao longo de todo o século XIX (e boa parte do século XX), a vítima ─ ou o ofendido com... more INTRODUÇÃO Ao longo de todo o século XIX (e boa parte do século XX), a vítima ─ ou o ofendido como a literatura jurídica Oitocentista preferia chamar-lhe ─ sendo essencial à existência do direito penal desempenhou, contudo, um papel secundário. A estrutura processual da penalidade moderna reduziu-a "a uma mera testemunha da lesão dos interesses do soberano" 1 . No lugar de protagonistas da encenação jurídico-penal surgiram, de um lado, o Estado, e do outro, o crime, o criminoso e a pena que este deveria sofrer. Reconhecendo-se embora que o mal sofrido pela vítima deveria ser reparado, para que a paz pública alterada pelo delito fosse completamente reposta, a reparação do dano feito ao ofendido foi deixada de fora do ordenamento jurídicopenal e remetida para o ramo civilista do Direito. Ora, este lugar apagado e contraditório da vítima no interior do direito penal precisa ser sublinhado e também explicado. O aparecimento e gradual monopólio do direito penal pelo soberano ─ afirmação do direito penal público ─ foi sector chave da construção do Estado moderno. Assumindo-se este como o único garante da paz e segurança públicas, logo como o único detentor do monopólio da violência legítima, este papel foi construído em boa parte à custa da vítima; isto é, para alcançar este fim social de paz e segurança, o Estado usurpou o lugar outrora ocupado pela vítima e passou a entender todo e qualquer crime como lesivo da ordem social que deveria ser por ele, e somente por ele, punido; o delito deixou de ser exclusivamente assunto entre duas partes, resolvido ou não por intermédio dos tribunais e, a pena, de reparação do dano, passou NOTAS