Quem eram e como viviam os celtas? (III) (original) (raw)
A parte final do artigo escrito por Anne Ross, que levanta mais pontos a respeito dos hábitos dos celtas, conforme observado principalmente pelas tradições orais que foram coletadas pelos monges cristãos.
Quem eram e como viviam os celtas?
(...)As línguas de origem comum, o sistema jurídico ancestral, a paixão pela genealogia, pela história, mitologia, poesia, e o cultivo intenso do saber oral - tudo isso unia as tribos espalhadas e fazia delas um povo que pode ser identificado pela arqueologia, pelos textos gregos e romanos e por suas tradições transmitidas oralmente por seus descendentes: o povo celta.
Diferentemente dos romanos, os gauleses usavam calças e capas adequadas a seus hábitos eqüestres; os irlandeses usavam túnica e capa. O tipo celta era alto, de cabelos louros, olhos claros, corpos robustos, espírito ágil. E foi assim que os artistas de seus adversários os representaram, combatentes implacáveis, altivos e desdenhosos na vitória e na derrota.
Longa e confusa é a história celta, cujo fim ainda não foi escrito. Os celtas da Antiguidade não se interessaram pelo registro escrito do seu saber e das suas crenças, e em suas transações comerciais utilizavam o grego e o latim. Esse cultivo da memória é praticado até hoje nas regiões de língua celta, onde as lendas e baladas antigas, não aprendidas em livros mas passadas oralmente de geração a geração ao longo dos séculos, são recitadas com prazer.
O mais belo dos épicos irlandeses antigos é o Táin Bó Cualgne, "O Rapto do Boi de Cualgne", que narra a rivalidade entre a deusa-rainha Medb e seu marido Ailill por causa de um bonito boi divino, o Donn de Cualgne, e as guerras e transtornos resultantes da rixa. Nas Hábridas exteriores (ilhas a leste da Escócia) ainda se ouvem versões dessa lenda, contadas por pessoas que nada sabem de sua origem nem da Antiguidade de onde ela vem.
Um trecho da própria lenda servirá para dar uma idéia do ideal celta de heroísmo e beleza quando se descreve o jovem herói Cuchulainn, ao se apresentar lavado e enfeitado na corte do seu tio, o rei Conchobar, após violenta batalha. Cuchulainn era filho do deus pan-celta Lugh (Lugus) e da irmã do rei, Deichtire, herói por excelência no mundo celta antigo.
"Como era belo o jovem que veio assim se mostrar aos hóspedes, Cuchulainn. Três cores de cabelo ele tinha, negro perto da pele, vermelho sangue no meio, e nas pontas, em coroa, uma massa ouro-sangue. No pescoço cem torçais de ouro vermelho reluzente. Em cada olho sete pedras faiscantes. A veste para aquele dia era um manto claro, bem assentado, com plissados e franjas. No peito branco um broche de prata incrustado de ouro, como se fosse uma lanterna de brilho e fulgor que olhos humanos não podem suportar. Sobre a pele uma túnica de seda orlada de vivos e franjas de ouro e seda e bronze branco. Usava um esplêndido escudo púrpura debruado de prata pura, e do lado esquerdo uma espada de punho de ouro trabalhado. Ao lado dele na carruagem, uma comprida lança de fio acerado e uma adaga de combate afiada, de punho guarnecido de bronze branco. Numa das mãos ele carregava nove cabeças, e na outra dez cabeças que ele brandia para a corte."
"Nove cabeças numa mão e dez na outra." Os celtas não apenas decapitavam seus inimigos, eles adoravam a tal ponto as cabeças cortadas que se pode dizer que elas eram um símbolo fortíssimo para suas crenças pagãs. Numa história do Mabinogion galês, que fala de Bran, gigante de clara origem divina, quando sua cabeça foi cortada a seu próprio pedido, ela continuou viva e uma boa companhia.
A literatura da Irlanda recebeu forma escrita antes da de Gales, sob a égide da Igreja Cristã, igreja que na Irlanda não teve paralelo na sua austeridade devocional mas ao mesmo tempo conservou profundo amor por suas raízes, pela língua e pelas tradições celtas. O paganismo é perceptível nas literaturas irlandesa e galesa - as mais antigas da Europa ao norte dos Alpes - mas os escribas cristãos eram muito fiéis à tradição oral e só mascaravam os exemplos mais flagrantes de práticas pagãs.
Como conseguiram os cristãos irlandeses conciliar esse passado pagão com seu cristianismo tão devoto? A resposta está muito bem expressa nas palavras do escriba que transcreveu o Táin Bó Cualgne, que retrata o mundo celta do primeiro século a.C. Assim termina ele a narrativa:
"Bendito seja quem decorar fielmente o Táin como está escrito aqui, sem nada acrescentar a ele. Mas eu que escrevi esta história, ou melhor, esta fábula, não dou crédito a vários incidentes nela relatados. Porque algumas passagens são maquinações do diabo, outras são invenções poéticas. Algumas são prováveis, outras não; e algumas se destinam apenas a divertir os tolos."
Espero que tenham gostado! ^__^
PS: retirado da revista O Correio da Unesco, nº2, 1978.