Bauman lança livro e diz: o desafio do presente é construir o novo (original) (raw)

Em ‘Babel’, sociólogo polonês defende que vivemos tempos de crise mundial


‘Não podemos continuar como antes, mas os novos caminhos ainda são rascunhos’, diz Bauman
Foto: Leemage / Leonardo Cendamo

‘Não podemos continuar como antes, mas os novos caminhos ainda são rascunhos’, diz Bauman Foto: Leemage / Leonardo Cendamo

RIO — Vivemos tempos de crise mundial ou, nas palavras do sociólogo polonês Zygmunt Bauman, “tempos de interregno”, entre o que não é mais e o que não é ainda. Esta é a ideia central de seu novo livro, “Babel — Entre a incerteza e a esperança” (Zahar), um diálogo com o jornalista e escritor italiano Ezio Mauro. Em entrevista ao GLOBO, por e-mail, Bauman defende que não é a democracia que está em crise, mas o Estado nacional, incapaz frente ao poder das corporações e aos fluxos comerciais, financeiros e informacionais. Apesar do horizonte sombrio, o sociólogo afirma que “o que nos mantém vivos é a imortalidade da esperança”. E aponta que construir o novo é o desafio que se impõe no presente.

Seu novo livro, “Babel”, aborda a crise da democracia no mundo. Quais são as causas dessa crise?

A chamada “crise da democracia” na era da globalização do poder deriva da crise da territorialidade do Estado nacional. Esse Estado foi proclamado como o modelo universal da coabitação humana, pela autonomia e o autogoverno. Hoje, existe uma discrepância entre o alcance global — extraterritorial — dos poderes que realmente importam para nossa vida e as políticas dos Estados, destinadas a confrontá-los, mas que estão confinadas às fronteiras territoriais. Os Estados que pretendem proteger seus residentes e defender seus interesses não podem mais cumprir suas promessas, pois não têm mais os poderes necessários para isso. E é nos Estados que, corretamente, mais se orgulham do seu espírito democrático e das suas instituições que a crise é erradamente traduzida como uma crise da democracia.

A crise da democracia afeta também a crença nos valores democráticos mais nobres, como a tolerância e o respeito às diferenças?

A tolerância e o respeito às diferenças e a democracia são dois lados da mesma moeda, e seus destinos são inseparáveis. A crise de um é, simultaneamente, a crise do outro. Democracia sem tolerância e respeito pelo Outro é um oximoro, enquanto democracia com tolerância e respeito à diferença é um pleonasmo.

O senhor diz que os indivíduos se sentem vulneráveis, não se sentem representados politicamente e desconfiam do Estado. Qual a consequência dessa vulnerabilidade?

Um serviço fundamental esperado do Estado era a redução dos desconfortos da vida. No entanto, ou esse serviço foi completamente abandonado pelo Estado ou ficou muito abaixo do nível adequado. Os desconfortos, então, se multiplicaram e se intensificaram pelos tormentos da incerteza e da humilhação trazidas pela sensação de inadequação pessoal. Esta última, o efeito de uma política que tornou os indivíduos os únicos responsáveis pelos seus resultados, particularmente os negativos e os desapontadores. Como coloca o ditado popular inglês, “cada um por si e o diabo fica por último”. As pessoas pararam, então, de ver o Estado como um investimento seguro e confiável de suas esperanças.

O sentimento predominante no mundo contemporâneo parece ser a raiva. O espaço da tolerância e do respeito parece cada vez menor. Essa seria uma reação à sensação de vulnerabilidade?

A vulnerabilidade é como nós nos sentimos após um processo prolongado de individualização forçada, privatização e “flexibilização” das nossas preocupações, das nossas posições na sociedade, dos direitos, dos deveres e das responsabilidades. O sedimento deste sentimento de vulnerabilidade é a incerteza, a ameaça constante à nossa autoestima. Nossas conquistas ao longo da vida se tornam frágeis, instáveis e não confiáveis, temporárias até segunda ordem. Esses medos tendem a ser difusos, desfocados e indefinidos, por essa razão ainda mais insuportáveis. E nos provocam raiva. Pelo menos um alívio parcial — a que somos levados a acreditar pelo canto da sereia de todo o tipo de demagogo interessado no capital político oferecido pela nossa incerteza, nosso medo e nossa raiva — pode ser oferecido pela descarga das nossas tensões e ansiedades sobre alvos específicos. Atualmente, os alvos preferidos são imigrantes e refugiados, aqueles estranhos que tornam vívida a fragilidade do nosso próprio destino. Por isso, estão aptos a ocuparem esse lugar. São lembretes da nossa miséria e da nossa impotência.

O projeto da União Europeia foi uma tentativa de superação dos limites dos Estados nacionais, mas hoje está em crise, com ascensão da extrema-direita em todo o continente. O que houve?

Cada Estado e a própria União Europeia são pressionados por duas forças contraditórias e inconciliáveis: de um lado, os poderes extraterritoriais que estão fora do seu alcance e, do outro, as demandas dos seus próprios cidadãos e eleitores. Nessas circunstâncias, nenhum dos dois lados fica totalmente satisfeito com o desempenho do governo e considera suas ações adequadas. E por isso não me admira que a visão dos próprios membros da União Europeia varie entre uma armadura de proteção contra pressões hostis e um agente de tais pressões.

O senhor aponta que vivemos um interregno, um tempo entre aquilo que não é mais e aquilo que não é ainda. Quais são as bases do futuro que devemos construir?

A “base para esse futuro que devemos construir” reside precisamente no espaço “entre o que não é mais e aquilo que não é ainda”. Não podemos continuar como antes, mas os novos caminhos ainda são, na melhor das hipóteses, rascunhos. Esse é o desafio do nosso tempo. Os tempos do interregno.