Felipe Hintze, de 'Família é Tudo', desafia gordofobia e luta por representatividade: "Não quero ser apenas a cota" (original) (raw)

*por Vítor Antunes

Poucas vezes corpos gordos foram protagonistas da televisão. Mais que isso, em poucas ocasiões, um homem gordo foi protagonista de novela. Numa leitura rápida, inclusive, não há nenhum. É sobre isso que se pauta muito do discurso de Felipe Hintze, ator que está em “_Família é Tudo_” e que fez um papel que nem sempre é destinado a pessoas com o seu perfil. Com recorrência, os homens e mulheres gordas são colocadas dentro do estereótipo do bem humorado, do glutão, do bobo. “A sociedade tem uma visão muito preconceituosa, muito gordofóbica, que associa a pessoa gorda ao desleixo, à preguiça, à falta de credibilidade. Talvez seja esta uma das razões que nos coloque em baixa representatividade de corpos gordos sendo protagonistas. Acho que a representatividade ela salva vidas. Quando você é consegue se ver no outro você cria uma abertura de possibilidades infinitas. Daí, acho importante haver pessoas reais minorizadas sendo vistas”.

Eu não quero ser o gordo único ou a única pessoa que está ali, na cota – e sob a pior forma da palavra – só para dizer que estou ali. Acho que isso também é muito, muito grave – Felipe Hintze

Na atual novela “_Família é Tudo_“, Felipe esteve fazendo um personagem malvado, ainda que numa participação. Mas um detalhe chamou atenção do ator, e é algo que costuma ser observado nos atores gordos. “O nome do meu personagem era Renzo. Tive a sorte de ter um nome comum. Já fiz um personagem chamado Mamutinho, por exemplo. Ou nomes no aumentativo, todos ligados à gordofobia. Por diversas vezes me questionaram o motivo de eu aceitar interpretar esses personagens esterotipados e eu digo que tenho que fazer, sim. Não tenho razão para negar porque eu acho que temos que ocupar este espaço como um instrumento de mudança”.

A fala de Felipe Hintze reflete uma crítica profunda à forma como a dramaturgia e a televisão tratam corpos fora do padrão estético imposto pela sociedade. O “personagem-orelha”, sempre presente, é geralmente aquele que ouve e apoia o protagonista, mas raramente tem a oportunidade de protagonizar sua própria narrativa. Para atores gordos, essa representação é recorrente – e limitadora – pois suas histórias ficam à margem, como se existissem apenas para realçar as jornadas de personagens magros. Felipe aponta avanços importantes na representatividade, mas alerta que, apesar das conquistas, o corpo gordo ainda é sub-representado de maneira complexa e digna na tela.

E acrescenta: “Jô Soares foi ator também é se comunicador, né? Mas mas eu peguei a fase do Jô apresentador. Era uma pessoa que me inspirava muito e era bom, porque eu vendo ele na televisão pensava: ‘eu posso estar ali também. É um lugar de que o meu corpo pode ocupar. Nas novelas, eu não tinha nenhuma inspiração”.

Felipe Hintze quer mudar o status quo do corpo gordo na teledramaturgia (Foto: Mariana Luz)

ENTRE OS AUMENTATIVOS E DIMINUTIVOS

Não é comum que personagens gordos na televisão sejam representados com naturalidade, confortáveis em sua forma ou sem necessariamente terem que apresentar a cartilha da necessidade imperiosa de emagrecer. Aos rapazes, os personagens são costumeiramente retratados no aumentativo: Renatão, Zezão, Ogro, Mamute e afins. Às mulheres, os diminutivos jeitosos, como Leiloca, ou ainda, os apostos: “Fulana, a gordinha”. Aliás, Nicette Bruno (1933-2020), que, convenhamos, não era exatamente gorda, foi assim chamada por toda a novela “_Selva de Pedra_” (1986). E 16 anos antes, na TV Tupi, Nicette deu vida à personagem Mônica em “_A Gordinha_“. A apresentação da personagem protagonista era, segundo o pesquisador Nilson Xavier, a seguinte: “Mônica come compulsivamente cada vez que se preocupa com os problemas da loja”. E, consultando o último capítulo da trama, nas últimas cenas do episódio de encerramento, é possível ver a personagem comendo pelo menos quatro coxinhas.

Em entrevista para o Site Heloisa Tolipan, em 2023, a atriz Carolinie Figueiredo, afirmou que seu papel de maior destaque também foi aquele que a feez descobrir-se gorda. “Eu mesma só fui ver que estava fazendo papel de gorda quando os textos chegaram e em todas as cenas ou eu estava comendo ou falando de forma bem sublinhada sobre autoestima. Eu descobri que era gorda enquanto interpretava a Domingas”.

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Nicette Bruno e Rui Rezende em “A Gordinha” (1970). Novela trouxe, ou teria trazido, o corpo gordo como protagonista (Foto: Reprodução)

Felipe traz à tona a urgência de incluir histórias autênticas de corpos gordos, questionando a ausência dessas vozes no espaço principal da dramaturgia: “A gente tem tido avanços, acho que estamos muito melhor do que em anos anteriores. Temos representatividade, conquistamos espaços importantes em alguns lugares, mas ainda falta muito. O corpo gordo, por exemplo, na dramaturgia, muitas vezes está a serviço de contar a história de um personagem magro. Cadê as nossas histórias sendo contadas? Acho que, como ator gordo, ainda enfrentamos muitos desafios. Mulheres gordas, por exemplo, sofrem muito mais, pois além da gordofobia, enfrentam o machismo. E se for uma mulher gorda, preta e trans, são muitos preconceitos acumulados. Já passei por muitas situações em que nem me cogitaram para papéis que não estivessem ligados ao estereótipo do gordo engraçado ou comilão. Felizmente, encontrei diretores e produtores de elenco que me deram oportunidades além desse perfil.”

Quanto à representatividade, precisamos de mais movimentos organizados. Vejo que, para outros grupos como pessoas pretas e amarelas, há iniciativas fortes, mas no caso dos atores gordos, ainda enfrentamos muita resistência. Sempre que falo sobre esse tema, percebo uma reação defensiva das pessoas, que rapidamente levam a discussão para a questão da saúde. Mas, na realidade, ninguém se preocupa com meus exames, mas sim com minha aparência – Felipe Hintze

Cláudia Costa era Leiloca em “Baila Comigo”. A personagem fazia o gênero engraçado e uma espécie de alívio comômico por ser gorda e fazer aula de ginástica em “Baila Comigo” (Foto: Reprodução/SIC)

O ator destaca que, em muitas das vezes, os personagens já chegam até ele tipificados. “A maioria das vezes vem escrito na especificação que o personagem é gordo. Quando não vem claramente, vem de forma implícita, tanto em relação com comida ou na relação com o humor. Essa questão do perfil vem sempre carregadas de preconceitos. Quando eu era adolescente teve um concurso da Malhação no Luciano Huck, que era o ‘Garoto Malhação’ e eu cheguei a mandar vídeo. A criação que meus pais me deram sempre me fizeram apoiar e acreditar que tudo era possível, então eu dava a cara a tapa mesmo.

Acredito que a gordofobia ainda é uma um preconceito esquematizado e que as pessoas não dão tanta credibilidade. Eu acho que havendo a criação de um movimento a gente vai receber mais e mais críticas do que um acolhimento. E esse é um tema é difícil porque a gente às vezes sempre tem uma resposta muito reativa. As pessoas entram no lugar é da saúde, mas é é incrível que ninguém fica preocupado com os meus exames – Felipe Hintze

Felipe Hintze reivindica maior espaço para atores gordos (Foto: Mariana Luz)

PASSADO, PRESENTE E FAMÍLIA BUGRINA

Felipe Hintze vive um momento de intensa atividade no segundo semestre de 2024, mergulhado em uma diversidade de projetos que reforçam sua versatilidade artística. Além de sua atuação na novela Família é Tudo, onde interpreta o vilão Renzo, o ator também está envolvido com a peça Um Só, em cartaz no Rio de Janeiro, e com a produção da peça Névoa, que estreou em São Paulo e será levada para o Rio em outubro. A dedicação a projetos autorais marca uma nova fase em sua carreira, trazendo à tona uma voz criativa que busca explorar temáticas próprias e desafiadoras.

Hintze comenta sobre a multiplicidade de suas atividades com entusiasmo: “Estou produzindo e fazendo projetos autorais que me dão mais propriedade para falar sobre coisas que eu quero expressar. Atualmente, estou numa peça chamada Um Só, em cartaz no Rio. Então, todo fim de semana vou para o Rio, faço a peça e depois volto para São Paulo. Também finalizei minha participação na novela Família é Tudo. Agora estão gravando os últimos episódios, e tudo que eu precisava gravar já foi feito. Então, no momento, estou envolvido com a novela e a peça no Rio. Além disso, tenho outro projeto, uma peça chamada Névoa, que fiz em 2022 em São Paulo. Agora, em outubro, vou levá-la para o Rio. Também sou o produtor dessa peça, e estou focado nesse projeto, mas ainda estou bastante envolvido com a novela e a peça em cartaz, que vai até 15 de setembro. Há também um filme meu para lançar, chamado Consequências Paralelas, uma ficção científica que estamos enviando para festivais de cinema. O trailer será lançado nas próximas semanas. Está acontecendo muita coisa, mas no momento estou focado em Um Só e na novela.”

Na novela Família é Tudo, Felipe Hintze interpreta o vilão Renzo, personagem que lhe permitiu explorar novas facetas como ator. A complexidade de viver um antagonista na trama de Daniel Ortiz trouxe desafios e alegrias. Sobre essa experiência, ele compartilha: “Entrar na reta final é como trocar o pneu com o carro andando. Foi um presente fazer um personagem tão diferente de mim, um vilão, algo que só acrescenta ao meu trabalho. Fazer novela é um desafio imenso, porque você vive aquilo por muito tempo. Muitas pessoas acham que televisão é mais fácil que teatro, mas eu penso o contrário; televisão é muito difícil, mas eu amo fazer. Na novela, tive a sorte de contracenar bastante com Dafne, uma parceira de cena maravilhosa que já conhecia de outros trabalhos. Essa novela teve momentos emblemáticos, como a cena em que humilhamos Lupita (Daphne Bozaski) em um comercial, que bateu recorde de audiência. Participar disso foi realmente um presente.”

Em Família é Tudo, Elisa (Thaila Ayala) e Renzo (Felipe Hintze) armaram contra Lupita (Daphne Bozaski) [Foto: Divulgação/Globo)

Outro destaque do segundo semestre é a peça Um Só, escrita por Alessandro Marson. A produção, que brinca com a interatividade e a ambientação fora do padrão convencional, tem um que de “_A Chorus Line_“: “São três atores que estão fazendo um teste de elenco para uma personagem num filme, e são atores de perfis totalmente diferentes, que estão concorrendo para esse personagem, e daí na sala de espera, no estúdio, eles vão contando seus anseios, contando a vida de cada um. É um espetáculo leve, divertido; até para quem não é da área vai se identificar muito. O legal dessa montagem é essa peça acontecer dentro do estúdio, então a gente convoca o público a entrar dentro do estúdio e participar desse teste junto com a gente. É uma peça tranquila, divertida, leve, engraçada. As pessoas têm se divertido muito, têm gostado muito do texto, e o Alessandro é fantástico, é um cara que sabe falar com o público muito bem. Ele tem uma qualidade nos diálogos, uma forma primorosa de como aborda as questões e os personagens. Eu estou muito feliz com esse projeto e com a repercussão.”

Acho que a profissão do ator ela é uma batalha constante contra contra o ego e contra o desemprego. Acho que a gente tem uma instabilidade muito grande e é por isso que precisamos nos inserir nesse mercado e estar ali todo dia lutando todo dia e quando o trabalho não vem acho que você tem que criar o seu trabalho e
E é isso o teatro. O teatro sempre me acolheu e foi um lugar pra o qual eu retornava sempre. O teatro nunca me disse não – Felipe Hintze

Felipe Hintze, conhecido por sua autenticidade e por levantar questões sobre a representatividade de corpos gordos, expandiu seu impacto ao colaborar com uma marca de moda plus size. A proposta, surgida a partir de uma identificação genuína com as roupas que recebia, resultou em uma coleção pessoal que reflete sua experiência ao lidar com as dificuldades do mercado de moda voltado para corpos gordos. Para o ator, a moda plus size ainda não compreende plenamente as diferentes formas e necessidades dos corpos, sendo um desafio encontrar peças que unam conforto, estilo e acessibilidade financeira. Esse processo de frustração, que incluía crises de ansiedade nas idas ao shopping, foi transformado em uma oportunidade criativa. Na parceria com a marca, Hintze participou ativamente desde a escolha dos tecidos até o desenvolvimento de peças que atendiam suas demandas pessoais, como uma regata de alças largas, projetada para oferecer maior conforto.

O ator revela: “Uma marca plus size que já está no mercado há um tempo começou a me mandar roupa, e eu gostei demais. A moda plus size é muito ineficiente ainda. Ela não atende vários tipos de corpos assim. É muito difícil encontrar roupa. Eu tinha uma crise de ansiedade de ir para o shopping para encontrar uma roupa, porque eu sei que eu escolhi a roupa que eu queria, mas aquela que me cabia e às vezes o valor não era o que poderia pagar, mas era o que tinha. Então nesta marca eu senti acolhimento e as roupas tinham a ver com o meu estilo com as roupas que eu gostava de usar. Daí eles me propuseram fazer uma parceria que deu certo. E eu, que sempre tive pavor de camiseta regata, por que deixava meus braços à mostra, propus uma com tiras mais largas para me sentr mais confortável, e foi o produto que mais vendeu”.

Além de sua relação com o mundo da moda, Felipe Hintze também carrega uma ligação com o futebol, uma paixão herdada de seu pai. Adriano Hintze hoje trabalha no marketing do Guarani, clube de Campinas, e carrega em sua trajetória uma história de superação e dedicação. Após uma lesão no joelho que o impediu de continuar a carreira de jogador, ele direcionou suas energias para o desenvolvimento de estratégias de marketing, assumindo o cargo de vice-presidente do clube. Essa dedicação ao esporte é uma fonte de inspiração para Felipe, que viu no pai um exemplo de resiliência e apoio incondicional aos sonhos dos filhos. “O meu pai é apaixonado pelo Guarani hoje, ele tá ele trabalha marketing do time. Ele vive e respira futebol. E foi jogador de futebol, porém teve que operar o joelho e o médico proibiu ele de ser esportista. Razão pela qual ele nos apoiou incondicionalmente, a mim e à minha irmã, em realizar os nossos sonhos já que ele não pôde viver os dele da maneira como queria”.

Felipe Hintze vive um segundo semestre movimentado (Foto: Mariana Luz)

Ao ouvir Felipe Hintze, percebemos a profundidade de sua luta e a universalidade de sua mensagem. O corpo gordo, tantas vezes relegado a estereótipos ou papéis diminutos, encontra no ator uma resistência que transcende a atuação. Felipe não busca apenas o protagonismo na tela, mas a visibilidade de uma narrativa que se reflete nas ruas, nas vidas de tantos que, como ele, questionam os moldes estreitos da representação. O palco e a televisão são seus instrumentos de transformação, onde cada gesto, fala e escolha de personagem reverberam como uma manifestação de inclusão. “Estar ali” não é apenas ocupar um espaço, mas ocupar de maneira plena, sem as concessões limitantes que a sociedade impõe.