Resenha de O luto entre a clínica e a política: Judith Butler para além do gênero, de Carla Rodrigues | Revista Rosa 4 (original) (raw)

Cabeça, Flora Rebollo (2021). Marcador, lápis de cera, giz pastel seco, grafite, bastão oleoso, batom e sticker sobre papel adesivado em chapa de alumínio, 225×130×2 cm. Foto: Ana Pigosso.

Começo esta resenha do livro de Carla Rodrigues pelo fim. Não pretendo com isso nem adiantar as suas conclusões, nem expor a delicadeza com que a autora nos envolve nessa trama tecida entre vida, morte, amor, filosofia e política e que se revela em toda a sua profundidade ao final. Quero, antes, tentar recuperar com as palavras um sentimento complexo que, depois de duas leituras atentas do livro, permanece em meu corpo. Algo acontece quando chegamos nesse final, depois de atravessar toda a construção dos capítulos divididos em três partes principais, intituladas: “Por que Judith Butler”; “Luto e despossessão”; “Encontros feministas”. Tem ainda uma bela apresentação que nos insere no problema a ser trabalhado a partir do próprio trajeto intelectual da pesquisadora e que, articulado ao movimento da história do Brasil, especialmente o assassinato da vereadora carioca Marielle Franco no mesmo dia da aprovação de seu projeto de pesquisa “Judith Butler: do gênero à violência de Estado” pela Faperj em março de 2018, culmina na escrita desse livro. Esse acontecimento, que é uma grave tragédia, pessoal e política, passa a ser um caso paradigmático para observar as políticas de luto assim como a distribuição desigual do luto público no Brasil. Assim, desde o início ficamos sabendo que esse é um livro que trata do luto como um problema filosófico.

O sentimento complexo, confuso, que menciono e que emerge ao final da leitura, me indica um caminho sobre como apresentar o livro. Esse caminho, hesitante, que ouso, me forço para tentar nomear, não é passível de ser apreendido facilmente e se sigo com ele é porque levo a sério as palavras finais da autora sobre a questão da escrita. E convido quem for ler o livro a participar junto comigo no desafio de nomear o que o livro faz com a gente.

Num primeiro momento, posso dizer que a leitura do livro flui de um modo impressionante, apesar de estarmos lidando com problemas filosóficos densos e questões políticas sérias; com a necessária reinvenção de categorias, conceitos e posturas críticas para fazer teoria desde o Brasil; com o chamado à autoimplicação na história da violência colonial; com as perdas e as dores irreparáveis das mortes que se acumulam na vida social; com a dor pessoal, íntima, silenciosa, que cada pessoa guarda a partir das perdas que lhe constituem. Carla atravessa esses problemas com uma linguagem delicada, clara, precisa, porque ela quer que sigamos junto com ela, ela nos convida a pensar junto, e para isso a sua linguagem é profundamente acessível. Então, esse sentimento que emerge ao final, me parece ter a ver com isso: por estamos navegando em águas turbulentas com uma estranha tranquilidade e serenidade. A forma de sua escrita nos envolve durante todo o percurso, é uma escrita que cuida de quem lê. Acolhidas por um lado, mas, por outro, chegamos ao final totalmente despossuídas, atordoadas com as questões que nos envolveram sem nem percebermos. E é apenas ao final que nos damos conta de que a leitura fez algo com a gente, porque nos encontramos mais cheias de perguntas do que tínhamos de início, com menos respostas do que achávamos que tínhamos, com algumas intuições para novas articulações que não estavam previstas, e esse vazio… essa fragilidade de nossas certezas, as ausências de respostas para os problemas sérios que o livro apresenta e que nos aproxima, numa visada, daquela experiência intangível, inominável, inaudível da perda, da finitude, da solidão e da ignorância. De modo que o luto aparece em sua íntima relação com a escrita.

Talvez o afeto que emerge ao final da leitura possa ser aproximado por meio de algumas palavras como desnorteio, coragem, surpresa, fragilidade, carinho, silêncio, que em parte se referem a mim, leitora, em parte à própria escritora. Pois parece que é nesse encontro entre leitora e escritora que uma cumplicidade pode acontecer e que, como exemplar de todo encontro, nos desloca de nós mesmas. Consigo ver Carla sorrir ao ler este trecho, porque ela também se sabe deslocada de si enquanto aquela que escreve. A citação final deixa ecoar com reticências aquilo que o livro faz com a gente:

Ao escrevermos, como evitar que escrevemos sobre aquilo que não sabemos ou que sabemos mal? É necessariamente neste ponto que imaginamos ter algo a dizer. Só escrevemos na extremidade do nosso saber (…). É só deste modo que somos determinados a escrever. Suprir a ignorância é transferir a escrita para depois ou, antes, torná-la impossível. Talvez tenhamos aí, entre a escrita e a ignorância, uma relação ainda mais ameaçadora que a relação geralmente apontada entre a escrita e a morte, entre a escrita e o silêncio.

Aqui está meu ponto de partida para escrever. Por isso eu começo a escrever pelo fim. Porque, como escritora, me vejo deslocada frente à pergunta “o que pode uma resenha” depois de entender, com Carla, que a escrita se faz nesse espaço entre saber e ignorar. Eu não sei se faço a melhor escolha ao começar expondo abertamente os desafios desta escrita, mas levo a sério o conselho final, ou melhor, a cumplicidade da escritora para conosco, que me parece deixar algumas pistas sobre como começar. Tal como a experiência do luto que não progride de modo linear, que não se resolve ou se supera, mas se reatualiza e retorna na experiência individual (e política), o livro nos insere nesta temporalidade circular que vemos se repetir a cada capítulo com questões que retornam e se aprofundam, como se fossemos adentrando em camadas epidérmicas de afetos (e de questões filosófico-políticas) densas, tal qual num longo processo clínico analítico. Assim, vamos entrar devagar nesse livro.

Para além das divisões em partes, podemos perceber que as questões fundamentais são desdobradas de modo não linear, sendo retomadas e rearticuladas com novas questões e outras contribuições a cada capítulo, numa espécie de movimento elíptico que faz girar adicionando mais um elemento, sem nunca retornar ao mesmo ponto. Há um primeiro movimento que permeia todo o livro e que eu chamaria de “tudo aquilo que podemos fazer com Judith Butler”. O livro de Carla tem um claro objetivo de apresentar a filósofa Judith Butler com cuidado, atravessando as diferentes etapas do seu pensamento, as influências, as questões de origem e os desdobramentos na obra da pensadora, assim como aquilo que importa para nós, como filósofxs e como feministas. Tanto que o segundo capítulo é um mapa com todas as obras e todas as traduções para o português, o que torna o livro de Carla um excelente material para apresentação e aprofundamento no pensamento butleriano. Das diferentes questões que emergem dessa apresentação do pensamento de Judith Butler, destaco o deslizamento do problema de gênero para o problema do luto e os desafios do feminismo depois do abalo da categoria mulher entendido como uma unidade estável.

Em torno de um segundo movimento, que eu chamaria de “e agora o que fazemos com isso”, eu vou apresentar três grandes aporias que emergem, para mim, da leitura do livro. Partindo das especificidades do contexto brasileiro, da forma como violência colonial é sustentada pelo aparato de segurança do Estado-nação constituído no Brasil que permanece até hoje, nesta aparência de democracia que nunca se constitui efetivamente, Carla cruza o pensamento butleriano com questões que apontam os desafios de se pensar com Butler o contexto brasileiro, devolvendo a nós, leitoras e leitores, os sérios problemas. O primeiro deles é a crítica da democracia e do Estado de direito. Baseada em bibliografia ampla, especialmente sobre a instituição do Estado colonial e seu necessário processo de racialização e hierarquização dos povos e culturas em nome do progresso, da civilização e da modernidade, Carla apresenta a democracia como um sistema de governo que traz em si mesmo a constante ameaça de sua destituição, como algo inerente, parte de seu sistema imunológico. Isso traz desafios imensos para a luta política atual, especialmente quando este Estado aparece não mais em sua forma democrática, mas em sua forma fascista como antidemocracia. A partir do debate que ela propõe, ficamos com a forte impressão de que o fascismo é o outro lado da (moeda) democracia, que reaparece nos momentos de restituição do poder (neo)colonial, e sempre que necessário forçar a mais uma rodada de apropriação primitiva do Capital. Desse modo, não seria suficiente, para a luta política, que ela se faça apenas em nome do Estado democrático de direitos sem uma crítica de sua própria gênese, porque ao fazermos isso compramos todo o pacote colonial que também é o próprio Capital; teríamos, talvez, que apelar conjuntamente a uma noção de emancipação que ao mesmo tempo se inventa e se conecta com as formas de resistência que sempre estiveram aí, nas margens do poder do Estado colonial: “talvez seja possível reencontrar práticas políticas e comunitárias que se mantiveram existindo à margem do progresso ou apesar dele, o que me faz crer que esse reencontro é diferente da melancolia pós colonial que procura pelo tempo no antes” (Rodrigues, p. 96). De onde deriva um trabalho de memória e agência no presente, não para inventar um futuro a partir do nada, nem para apelar a um retorno a um passado nostálgico.

A segunda aporia — e se uso esse termo é para intencionalmente aproximar Carla Rodrigues do modo como Gayatri Spivak nos perturba com as questões difíceis e sem saídas que ela expõe em seu trabalho de desconstrução — atinge o coração (doloroso) do livro, o lugar em que chegamos a uma densidade difícil de ser acessada por conta de todos os processos de negação e resistências internas que constituem as nossas subjetividades colonizadas, afinal, ela nos lembra com Fanon de que “é preciso repensar o próprio modo como os sujeitos são constituídos no campo político” (Rodrigues, p. 88). Trata-se, aqui, de entender o que Carla faz ao estabelecer uma transposição crítica do modo como Butler lê a dialética do senhor-escravo na Fenomenologia do espírito de Hegel para a apresentação da dialética bloqueada da empregada doméstica e da dona de casa.

Não tenho intenção nem condições de reconstruir o intrincado argumento desta parte e o que apresentarei já parece, de início, bastante frágil frente àquilo que a autora faz neste capítulo. Mas insisto em acompanhar de perto este movimento para reforçar a sua importância e chamar a atenção para que o capítulo intitulado “O corpo infeliz” não passe despercebido e que seja lido com um pouco mais de cuidado. Talvez não seja possível desenredar a questão acima mencionada da democracia sem levar esta parte bem a sério. O capítulo é o primeiro da terceira parte intitulada “Encontros feministas”. E ele começa com Hegel e com a leitura que Butler faz da “subtração do corpo” na Fenomenologia do espírito. Ao revisitar a leitura que Butler faz de Hegel, Carla pretende discutir “algumas características do trabalho doméstico realizados por mulheres no contexto brasileiro” e “descrever o modo de subtração dos corpos das mulheres na esfera doméstica” (Rodrigues, p. 138): “assim como o corpo do escravo precisa desaparecer para que o senhor possa apropriar-se do objeto produzido por ele, o corpo da empregada precisa desaparecer como corpo-substituto da dona de casa.” (p. 138)

Como leitora de Hegel via Kojève, Butler se dedica ao movimento de constituição da “consciência infeliz” que se dá através de um enfrentamento entre duas consciências no âmbito do trabalho. Carla vai deslocar este argumento propondo a noção de “corpo infeliz” e esta mudança faz toda a diferença. Em Butler com Hegel, “o corpo do escravo precisa desaparecer para que o senhor possa se apropriar dos objetos produzidos pelo trabalho do escravo. Para a operação de substituição funcionar, o corpo do senhor também não pode existir enquanto tal” (Rodrigues, p. 138). Mas haveria ainda um segundo desaparecimento: não apenas o corpo do senhor precisa desaparecer como lembrança da substituição do trabalho do escravo, mas o senhor precisa esquecer essa substituição, e o seu próprio desaparecimento, para poder usufruir do objeto de trabalho do escravo. No trabalho doméstico esse segundo esquecimento não aconteceria porque não há esquecimento possível no âmbito de um trabalho que não produz valor social reconhecível, uma ideia que remete aos trabalhos de Silvia Federici. Na verdade, se algum reconhecimento pode ser possível é o do enfrentamento entre dois corpos infelizes.

A explicação do que acontece nesse caso parte do fato de que o trabalho realizado pelo corpo da empregada parece pertencer à empregada quando na verdade pertence à dona de casa. Assim, ela usufrui do objeto do trabalho da empregada sem poder saber sobre a ausência de suas próprias marcas. A empregada cuida da família “como se fosse sua”, enquanto a dona de casa cuida da família “como se não fosse a sua” já que não é o resultado de seu próprio trabalho que está implicado na organização do espaço doméstico, ou seja, não é o seu corpo que está implicado no trabalho de cuidar da família. “É preciso um truque em que o corpo substituído esquece a sua substituição, e o corpo que substitui esquece estar substituindo” (Rodrigues, p. 147). O impasse que aparece no caso do trabalho doméstico é que uma vez que o objeto do trabalho não é reconhecido como valor, a dona de casa não tem acesso ao esquecimento de que usufrui o senhor na dialética hegeliana do trabalho; ela “não tem direito ao mesmo não querer saber de seu próprio apagamento, de sua expropriação em relação ao trabalho pelo qual será sempre responsabilizada, mesmo sem tê-lo realizado (…): eis dois corpos infelizes” (p. 149). Ao contrário da dialética do senhor-escravo, a dona de casa não ascende à plena desmaterialização do corpo, porque ser mulher já é ter um corpo e não poder esquecer disso: “A infelicidade se instala em ambas” (p. 150). Se na dialética do senhor e do escravo estão envolvidas a descorporalização, a autoreflexão e o esquecimento (esse truque que faz com que se esqueça a origem violenta da própria consciência como resultado da instrumentalização do corpo do escravo; essa morte do corpo em vida que se revela como uma dívida impagável, nos termos usados pelo filósofa Denise Ferreira da Silva), esse caminho não seria possível no enfrentamento patroa-empregada na dialética do trabalho doméstico.

Segundo Anne McClintock, em Couro imperial: raça, gênero e sexualidade no embate colonial (2010),1 a quem remeto porque acredito que pode ajudar a fazer pensar o que está envolvido nas proposições de Carla Rodrigues acerca desse tema, não dá pra entender imperialismo (e seu par colonialismo) sem uma teoria do poder de gênero como elemento “fundamental para assegurar e manter o poder imperial” (McClintock, 2010, p. 23) e, com isso, o lugar das mulheres brancas como aquelas que deveriam zelar pelo âmbito doméstico, pelo lar, pela limpeza, pela manutenção da raça em nome do progresso, da família e da civilização. O imperialismo colonial instituiu a intervenção do Estado não apenas na vida pública, mas também nos arranjos domésticos, na domesticação dos corpos, na racialização, o policiamento das classes ditas degeneradas, o controle da promiscuidade e dos desvios de gênero, a purificação do corpo pelo sacrifício e a punição, o controle do corpo pela medição de desvio e a invenção da raça na modernidade industrial ocidental. Seguindo ainda McClintock, a formação da moderna imaginação imperial articularia em torno desses elementos uma oposição entre a raça branca simbolizada pelo macho e a raça negra feminizada para ser controlada e domesticada. E se, como diz Carla, “todo corpo marcado pelo elemento feminino torna-se um corpo matável” (Rodrigues, p. 174) então devemos olhar para como funciona a nossa própria herança colonial e escravocrata em seus enredamentos interiorizados na dinâmica mesma do sujeito (e da sujeita), com importantes consequências para pensar os movimentos feministas — como podemos ver nos capítulos finais do livro a partir do debate entre Seyla Benhabib, Judith Butler e Nancy Fraser. Por isso, aquilo que já estava desde o início retorna ao final, com a necessidade de pensar para além do gênero a partir de uma perspectiva interseccional ampla.

O que estou chamando de feminicídio estrutural estaria presente em todo o aparato institucional, econômico, jurídico que ordena a vida social não apenas para subjugar as mulheres como “gênero”, mas também para eliminar o feminino e a feminilidade como marcas dos corpos sexuados, confirmando a centralidade da crítica à heteronormatividade na filosofia de Butler. Assim, se a partir de Beauvoir foi possível às mulheres obter reconhecimento como sujeitos, ainda há algo que nos secundariza quando o fundamento natural do feminino entra em perturbação. Abalar esse fundamento natural é expor a arbitrariedade da violência contra certas formas de vida em detrimento de outras, é denunciar que o poder se exerce como necropoder. Por fim, o feminicídio estrutural poderia estar ligado à necessidade de foraclusão, marca do humano, um feminino cuja perturbação parece precisar ser aniquilada em nome da sustentação de uma razão masculina branca, europeia, colonizadora, heteronormativa, impotente, e, por isso mesmo, cada vez mais violenta.

Com isso, chegamos ao que chamarei de terceira aporia, indo com Butler para além de Butler. E este além traz para bem perto de nós. Ainda na sequência do capítulo “corpo infeliz”, o enfrentamento entre a patroa e a empregada permite reconstituir as marcas foracluídas da violência instituinte do Estado colonial. A palavra foraclusão aparece em alguns momentos cruciais do livro e Carla não explicita a origem do termo que ela mobiliza. Mas sabemos que é um termo da psicanálise de Freud retomado por Lacan nos estudos sobre psicose e vinculado a um processo específico de negação “por meio do qual se produz a rejeição de um significante fundamental para fora do universo simbólico do sujeito. Essa rejeição não atua apenas como uma negação, mas como um apagamento completo dos rastros que dariam acesso a esse significante incômodo, inclusive aos afetos a ele ligados”.2 Retiro essa definição da apresentação da tradução brasileira do livro Crítica da razão pós-colonial: por uma história do presente fugidio, de Gayatri Spivak, cuja tradução sairá em breve em português. Acredito que exista um vínculo profundo entre o pensamento das duas filósofas, a indiana e a brasileira, que aparece não apenas pela presença e importância de Derrida, mas sobretudo pelas implicações do debate acerca da colonização.

Em Spivak a noção de foraclusão remete às formas de um apagamento muito específico do “informante nativo” (o selvagem, não civilizado, primitivo etc., ou seja, todos os povos racializados como não europeus) em momentos cruciais da argumentação de filósofos como na fundamentação das noções de autonomia e juízo reflexionante em Kant, a consciência de si em Hegel, a explicação do que é o propriamente moderno nos modos de produção (Marx), ou ainda na emergência do sujeito feminino moderno na literatura de Jane Eyre. Esse processo é muito intrincado, porque não se trata de um mero apagamento, mas de uma impossibilidade de acessar os rastros mesmo que levariam à possibilidade de acessá-lo (porque ao nomear, destitui). Não será possível avançar muito mais com Spivak (remeto novamente à tradução que logo estará disponível), mas quero pensar o lugar da foraclusão no livro de Carla Rodrigues. Primeiro, tal como Spivak, há uma passagem de uma categoria clínica a uma categoria política, porque a foraclusão é um funcionamento psíquico com profundas implicações ético-políticas. Segundo, trata-se de uma avaliação crítica da modernidade e da democracia ocidental fundadas em termos intraduzíveis para certos contextos culturais (e tradução não quer dizer, aqui, ir aos dicionários). Acredito que se seguirmos com Carla chegaremos ainda mais fundo naquilo que ela vem propondo em seu livro.

Sugiro que podemos encontrar em Carla uma possível ideia de foraclusão do corpo e da natureza como resultado de certo modo de constituição do “corpo da razão” moderna, o que quer dizer uma “desmaterialização fantasmática da masculinidade” que requer “os corpos de outros: mulheres, escravos, crianças, animais” (Rodrigues, p. 150) para sua própria constituição como sujeito. Esta postura é consequente com a crítica do progresso e da noção de história linear como fundamento “da empresa colonial europeia em direção à dominação e à escravidão, cujo projeto foi fazer com que o desejo do senhor se realizasse através do trabalho do escravo sobre as coisas naturais, refletindo, em seu próprio eu sua brutal capacidade de transformar o mundo” (pp. 154–155). Como ela afirma, “esse processo tem exigido (…) a permanente produção dos corpos bestializados e confinados ao campo das coisas naturais (…) [postos a serviço da dominação do mundo]” (p. 155). Acredito que se pensarmos politicamente desde o Brasil, essa é a única postura possível para lidar com as questões envolvidas na defesa radical da Floresta junto com a Aliança dos Povos da Floresta. Porque apenas uma crítica do progresso com sua temporalidade linear e da modernidade/colonialidade com suas ontologias hierarquizantes permite entender a gênese mesma de suas lutas e o que está envolvido na “defesa da natureza”. Remeto aqui à Carta em Defesa da Amazônia e da Mãe Terra, contra as Invasões do Capital, da Violência Bruta e dos Golpes Verdes,3 publicada neste ano de 2021.

A partir da apresentação desses intrincados problemas que o livro de Carla traz à tona, penso que poderíamos entender melhor como a filósofa passa de uma crítica da democracia e do Estado (neo)colonial a uma noção de emancipação que recupera as formas de sociabilidade e de temporalidade para além das condições circunscritas pela modernidade. E aqui teríamos muito o que pensar junto com a noção de quilombo de Maria Beatriz Nascimento,4 a Cosmopoéticas do refúgio, de Dénètem Touam Bona, a A queda do céu, de Davi Kopenawa, entre tantas outras. Importante notar que a crítica das categorias da modernidade não remetem a nenhuma postura pós-moderna, afinal ela mantém a noção de vulnerabilidade dos corpos como momento universal de uma ética inspirada em Butler. Partindo de uma perspectiva feminista implicada, o trabalho de Carla Rodrigues parece apontar para um necessário desvio epistemológico, ético e político em relação a certos modos de fazer filosofia e teoria política. Por isso, não é contraditório que Carla mantenha sua crítica ao Estado ao mesmo tempo em que toma como caso paradigmático para fazer mover sua pesquisa a história de luta de Marielle Franco, uma vereadora defensora dos direitos das minorias, dos povos marginalizados e acossados pela violência policial, que lutou em defesa dos direitos de existência e (re)existência das mulheres pretas, lésbicas, trabalhadoras e trabalhadores das periferias. Aqui está um compromisso que permite mover junto, abrindo espaço para a emergência de outras linguagens, com suas outras ontologias. Se falo de ontologias é para remeter à frase da filósofa Katiúscia Ribeiro durante mesa de debate do evento I Vozes Negras na Filosofia ocorrido em agosto de 2021 na qual ela afirma que a ontologia da modernidade é cúmplice da morte violenta das mulheres pretas.

Gostaria de sugerir um terceiro e último movimento. Depois de pensarmos com Butler e pensarmos com Carla, o livro deixa as reticências finais para que nos impliquemos em pensar os problemas conjuntamente em ato. Desde o lançamento do livro ocorreram inúmeras mesas de debate online com pesquisadores, estudantes, psicanalistas, escritores, filósofxs etc. Esse ato corajoso e amoroso de juntar as pessoas para pensar as questões que importam, criando redes de debate amplas, parece ser um impulso mesmo que move Carla Rodrigues na vida e no pensamento ao favorecer encontros feministas. Podemos ver nas diversas notas de rodapé do livro quantas foram as pessoas mobilizadas em torno da feitura desse material — corpos articulados e em ação. E minha memória afetiva me remete às lembranças dos encontros com Carla em 2015 em uma banca de concurso sobre gênero e raça na área de filosofia, à fundação do Grupo de Trabalho Filosofia e Gênero da ANPOF, em 2016, do qual participamos ativamente desde o início, aos manifestos escritos coletivamente, às lutas institucionais, às assembleias abertas em que testamos as possibilidades de juntar pessoas em termos que fossem outros e aos desafios que seguimos ainda procurando elaborar. A leitura do livro trouxe à tona todos esses momentos e sinto um vazio delicado neste final de escritura que faz deslizar a palavra para o afeto que emerge como alegria e saudades pelo que já foi vivido e pelo que ainda há de ser vivido e construído. Porque, como ouvi dizer certa vez, aqui as florestas ainda são enormes.