Coordenação geral, de pesquisa e editorial Pontão (original) (raw)
Notas de andarilhagens nas rotas do Tear Denise Mendonça ROTAS DA MEMÓRIA O resgate da experiência A Memória do lugar, o patrimoniável e a poética do Sul: a experiência de um Pontão de Cultura Viva como museu difuso e temporário Claudio Barría Mancilla Andarilhagens: caminhos, contornos e entornos Ana Alvarenga e Sérgio Alves Asas e raízes Bianca Wild Da dor ao horror: o corpo do africano escravizado, supliciado e disciplinado Cláudio de Paula Honorato O patrimônio que se descobre através da experiência Georgie Echeverri Vásquez Os tempos da Maré Luiz Antônio de Oliveira A rua é o museu: cartografias da memória em contexto urbano ibero-americano contemporâneo Lilian Amaral Curta-documentário Rotas da memória EntrePontos cariocas Rotas da memória: trilhas para não esquecer Sempre se desenha, pinta, fotografa o Rio de Janeiro. Sempre haverá ainda o que fotografar, desenhar, pintar. Sempre se escreve, em verso, prosa, crônica ou ciência, algo sobre o Rio de Janeiro. Sempre haverá o que ainda escrever e reinventar. Sempre se fala sobre o Rio de Janeiro e, sobretudo agora, para o bem e para o mal, sempre se noticia o que no Rio de Janeiro aconteceu, acontece e acontecerá. Qualquer lugar onde alguma forma de vida habita é inesgotável. Todo cenário em que uma única vida humana está e reside, por um instante que seja, é todo um mundo, e pode ser sempre infinitamente narrável. Uma pequenina aldeia, uma cidadezinha qualquer dessas que nem sequer merecem um mínimo nome em um mapa ainda são, uma e outra, territórios de vidas e sentidos que merecem todos os poemas (como em Fernando Pessoa e sua aldeia), ou todas as crônicas (como no mineiro Carlos Drummond de Andrade). E merecem a eterna memória das narrativas que uma velha senhora de poucas antigas palavras e muitas lembranças soubesse revelar. Vinícius de Moraes, carioca como eu, sabia disto e escreveu e cantou o Rio de Janeiro. Em direção oposta, João Guimarães Rosa, nascido na pequenina Cordisburgo, escolheu lugares menores ainda; mínimos arraiais norte-mineiros, "corrutelazinhas" esquecidas entre sertões sem-fim, para escrever sobre um "ali", onde cabia um cavalo, a vida e os dramas de um par de viventes, para escrever um conto inapagável. Imaginem o Rio de Janeiro. Nasci "no Rio", nos tempos em que o bonde ainda era o melhor de todos os meios de transporte. Nasci em Copacabana, quando, diante do mesmo mar imenso, eram muitas as casas, cujas janelas se abriam a ele e à praia de meus primeiros anos (Posto Dois-e-Meio, ao lado do Copacabana Pálace), e eram raros os edifícios. Morei durante meus dez primeiros anos em uma rua esquecida, chamada General Barbosa Lima. Uma rua que eu duvido que quem me leia conheça, e que, saindo da Rua Inhangá, subia uma ladeira calçada de pedras até morrer no "Morrinho", um dos pequenos paraísos de minha infância. Depois, aos dez anos de idade, "mudei pra Gávea". A Rua Cedro ainda despenca de um dos altos da Estrada da Gávea, e, entre florestas e, ao longe, os Dois Irmãos, é até hoje um dos lugares cariocas em que em certas manhãs se acorda escutando passarinhos e macacos. Eram apenas três as casas que por lá havia quando um tio engenheiro, irmão de meu pai, construiu a nossa casa. Toda branca, entre paredes e janelas, ela ainda está lá como há sessenta e oito anos. EntrePontos, uma expressão também cara às fiandeiras dos fundos de Goiás e de Minas Gerais por onde andei, entretece escritos que fazem do Rio de Janeiro uma inesperada Cidade-Macondo. Um Rio tanto meio fora dos mapas quanto fora dos eixos. Enfim, um péssimo livro para turistas ociosos, ou para buscadores da superfície do curioso, do pitoresco e do típico, e desinteressados do denso e do humanamente próprio. Quem, entre as pessoas de recato, começaria um livro sobre as culturas de entre-pontos com um escrito com este título tão sartriano: "O adubo e a náusea: a cidade"? E em nome de que admirável e corajoso desvario, ao se falar e dar a ver a presença do negro no Rio de Janeiro, em vez de, uma vez mais, trazer dele algo de sua arte, ou a sua voz de denúncia em seus depoimentos sobre como ainda há quem seja "gente de menos" nesta cidade-em boa medida edificada por eles-por apenas ser "um negro", o que se escreve e fotografa é um longo e denso estudo sobre o sofrimento do corpo do negro escravo do passado. E um homem-povo negro não apenas publicamente açoitado, mas dado a ver-entre desenhos e pinturas-sofrendo no meio da rua o absurdo do açoite e a imagem da mão que grava a cena. Neste livro, a cultura, com suas rotas, pontos e entre-pontos, é dada a ver e a ler e pensar, desde os fundos da Maré, como um lugar de vida coletiva, de arte e resistência, tão distante de minha Gávea de florestas e montanhas e de minha Copacabana, onde durante anos o que importava ao menino que eu fui era o perfil de outras "marés" e o que elas provocavam nas ondas que nos atraíam e desafiavam. Eis o valor de Rotas da memória através dos seus EntrePontos cariocas: ser um inesperado desafio a se rever o próprio olhar sobre uma grande e pluri-cênica cidade. Primeiro, a partir do que ela é, quando vista e escrita no que tem de uma peculiar vocação de ser também uma certa vocação de Macondo. Segundo, através de se descobrir nas entrelinhas de seus recantos menos conhecidos. Como quando uma rua pode ser um museu. Ou o que pensamos ser "patrimônio" não precisa ser o Cristo Redentor, ou o Museu do Amanhã, para tornar-se um bem-coletivo e partilhável de um valor inestimável. Terceiro, por demonstrar, sem apelos a cifras e a feitos, como, com criatividade e persistência, se pode solidariamente entretecer pontos e recriar belos e densos espaços e tempos não tanto de uma cultura-pronta-para-uso, mas de uma diversa-e até divertida-cultura que se cria quando, entre os teares do imaginário, as pessoas se encontram para, afinal, fazer algo além de "pegar jacaré" nas ondas da praia, ou passar todo um dia de sábado pendurado entre cordas a caminho de um cume de montanha. Carlos Rodrigues Brandão Outono de 2018 (65 anos depois de Edmund Hillary e o sherpa nepalês Tenzing conquistarem o Everest e 58 anos depois de uma equipe do Clube Excursionista Rio de Janeiro, de que fiz parte, conquistar o Paredão Baden-Powell, no Irmão Maior do Leblon-na verdade, na Gávea.) CONTEXTOS I Recebo com frequência indagações sobre minhas referências para falar da história da cidade do Rio de Janeiro e interagir com ela. Respondo ludicamente que me inspiro nas lições do Caboclo da Pedra Preta, aquele que cantou a beleza da pedrinha miudinha de Aruanda e encontrou no que aparentemente é insignificante o caminho para entender e indagar o mundo. Deliro que Walter Benjamin consultou-se com ele numa macaia imaginada. Busco pensar a cultura carioca a partir de um poder que Exu, o orixá iorubano, tem: o de ser "enugbarijó", a boca que tudo come. Exu come o que lhe for oferecido e, logo depois, restitui o que engoliu de forma renovada, como potência que, ao mesmo tempo, preserva e transforma. A cidade que me interessa é aquela que nas frestas e esquinas ritualiza a vida para o encantamento dos cantos e dos corpos. Aquela que subverteu a chibata que deu no corpo em baqueta que bateu no couro do tambor, conforme digo com frequência. Nós estamos adoecidos de "ismos", não duvido disso. Clamamos por revoluções libertadoras que são, paradoxalmente, normativas. Há quem desqualifique os saberes da gira; há quem os abrace exoticamente como modos de fazer alternativos, sem a coragem, todavia, para o mergulho que raspará o fundo do tacho; há quem os veja de forma paternalista e simpática, sem descer do pedestal de suas epistemes viciadas. Caladas por uma cidade oficial historicamente propensa a demolir seus lugares potenciais de memória, em constante negação do que somos e não queremos admitir, as culturas historicamente subalternizadas das ruas do Rio reinventaram a vida no vazio do sincopado, sambando, ousando discursos não verbalizados e soluções originais a partir dos corpos em transe e em trânsito, em desafiadora negação da morte, solapada pelo bailado caboclo dos ancestrais que baixam em seus cavalos nas canjiras de santo. Aqui, afinal, no meio do mais absoluto horror falaram também aguerés, cabulas, muzenzas, barraventos, avamunhas, satós, ijexás, ibins e adarruns. Na maioria das vezes, proibidos. Sempre vivos. As folhas foram encantadas pelo korin-ewé que chamou Ossain, o Katendê dos bantos. Os toques do tambor são idiomas que criaram, nos cantos mais inusitados da cidade, espaços de encantamento do cotidiano: terreiros. Muito além de ritos religiosos, nossas macumbas (sambadas, gingadas, funkeadas, carnavalizadas, dribladas na linha de fundo) traçam as tramas do diálogo com ancestrais e apontam para os corpos cariocas como assentamentos animados, gongás feitos de sangue, músculos e ossos, carregados de pulsão da vida. Não há encruzilhada da cidade que não fale disso. Há quem prefira a cidade desencantada, aquela que não assusta por ter dispersado o seu axé, adequadamente moldada para a circulação de carros e mercadorias, vitimada pela sanha demolidora da bandidagem engravatada, devastada em seu imaginário de afetos: do Maracanã de tantos gols, da UERJ de tantas ideias, das barbearias de rua, dos botequins mais vagabundos, dos açougues e quitandas da Zona Norte, das sociabilidades meninas dos debicadores de pipa, dos pregoeiros da Central, da malandragem do jogo de ronda, dos artistas anônimos do Japeri, dos boiadeiros cavalgadores dos ventos, do malandro das Alagoas e dos tupinambás flechadores de Uruçu-Mirim descendo em gira de lei. De uma cidade sem o sal da memória dos dias longos e da noite grande não sairá nada. Estamos agonizando e não acredito em nenhuma transformação efetiva no Rio de Janeiro que, no combate aos kiumbas poderosos e na luta pela justiça social, desconheça o manancial que as culturas do tambor representam e as formas desafiadoras de narrativa que elas elaboraram sobre o lugar. A lufada de esperança vaga que tenho é porque...