Origem, ontologia e política em Heidegger e Cassirer (original) (raw)

Heidegger e os pensadores originários

29 "Poetar [Dichten] -significa aqui: se deixar dizer do puro apelo do apresentar enquanto tal, ainda que este seja somente e justamente um apresentar da retração e da reserva." (HEIDEGGER: Aus der Erfahrung des Denkens, p. 234) 30 Cf. HEIDEGGER: Aus der Erfahrung des Denkens, p. 84. "Só o poeta pode realizar aquela escuta que, resistindo junto à origem, suporta e ausculta a essência da mesma, abrigando o que foi escutado no que permanece da palavra poética." "Será exigido de nós, não meras comparações adequadas e constantes estabelecidas entre as forças do poetar, do pensar e do agir, mas levar a sério suas veladas singularidades que culminam na experiência do mistério de sua copertença originária para formar originariamente uma nova articualação do ser." (HEIDEGGER: Hölderlins Hymnen, p. 176]. Wesen des Seyns ist der Anfang. HEIDEGGER Se optarmos por tentar iniciar respondendo, ainda que parcialmente, aquela que para Otto Pöggeler é a "questão autêntica: onde é que, pois, tem o seu começo, a sua origem histórica, um pensamento como Heidegger o tenta?", 1 não devemos ter receio em assumir já de início que, em parte, foi "obra" do próprio Heidegger começar, ou ao menos recomeçar, tal origem. Em parte porque "nós homens, sem dúvida, nunca podemos originar a origem -isto somente um deus pode -, mas devemos começar, ou seja, iniciar algo que apenas conduza à origem, ou a aponte. É deste tipo o começo desta leitura." 2 Este começar é recomeçar por consistir essencialmente em um exercício de apropriação daquilo que só aparentemente sempre foi o mesmo, mas que na verdade não teria sido história se já não fosse sempre outro. 3 Jogo que só é possível, cumpre observar, em virtude da "força retroativa" da origem. 4 Aquilo que aqui chamamos de "origem", na verdade é uma tradução do termo alemão Anfang, que, de fato, se aproxima mais do que é comumente traduzido por "princípio", ou, melhor dito, por "início"; dado que para aquilo que se entende por origem, em alemão se diz mais Ursprung. Ambos os termos, Anfang e Ursprung, são de suma importância no cabedal conceitual da "linguagem" própria da filosofia de 1 PÖGGELER: A via do pensamento de Martin Heidegger, p. 198. 2 HEIDEGGER: Hölderlins Hymnen, pp. 3-4 [trad. port., p. 12]. 3 "A Obra pensada radicalmente é, com efeito, um movimento do Mesmo em direção ao Outro, que nunca volta ao Mesmo." (LÉVINAS: Descobrindo a existência com Husserl e Heidegger. Lisboa: Instituto Piaget, 1997, p. 232) 4 A expressão vem do aforismo 34 da "Gaya Scienza" de Nietzsche: "Historia abscondita -todo grande homem tem uma força retroativa: toda a história, por causa dele, é recolocada sobre a balança, e milhares de mistérios do passado saem de seus esconderijos -em seus sóis. -Não se pode prever tudo que ainda será história. Talvez o passado seja ainda mais essencial não descoberto! Ainda se precisa de muita força retroativa!" (NIETZSCHE: Die fröhliche Wissenschaft. ("La Gaya Scienza"). Stuttgart: Kröner, 1956, p. 64) Não é de se estranhar que também para a filosofia de Nietzsche justamente sejam Anaximandro, Parmênides e Heráclito aqueles que assumem esta condição! (Cf. NIETZSCHE: "Die Philosophie im tragischen Zeitalter der Griechen". In: Werke. [Fünf Bände]. Frankfurt am Main-Berlin-Wien: Ulstein, 1976 [Bd. III: Frühschriften u. a.], pp. 1072 ss.) seguinte: "o mais inicial [das Früheste] pode, porém, também ser o primeiro segundo o nível e a riqueza, segundo a originariedade [Ursprünglichkeit] e o comprometimento com nossa história e com as decisões que a precedem. E esta primazia, neste sentido essencial, é para nós a Grecidade. Chamamos este mais inicial o originário [das Anfängliche]." 14 Por fim, em suas "contribuições para a filosofia", diz de forma clara que "o sentido do pensamento originário [anfänglichen] é muito mais ursprünglich". 15 Mas com isto não estamos tentando provar que a relação entre ambos se diluiria numa equanimidade indiferente, "pois Anfang é o velado, o Ursprung ainda não maculado e nem explorado, que sempre se retraindo alcança de antemão o mais amplo e assim guarda em si o mais elevado domínio." 16 Para nós, é como se o Anfang fosse a mais especial modalidade da Ursprung, 17 que por sua vez só pode ter desvelada sua real importância quando configurada nesta modalidade. A partir disto, queremos ao menos poder concordar que "tanto pela definição que é proposta como pelos exemplos que o ilustram, o Anfang tem certamente, na terminologia heideggeriana, um estatuto de origem." 18 Isto por si já justificaria o fato de ao longo de nossas pesquisas termos nos deparado com estas passagens pouco conhecidas através das quais não só se mostrou possível colocar em xeque uma aparente relação de predominância entre os termos, como até mesmo invertê-la; pois se fosse esta nossa principal intenção acerca desta discussão, poderíamos nos valer de uma precisa, mas ainda pouco discutida, afirmação de Heidegger feita durante o curso de inverno dos anos de 1937/38 ministrado na Universidade de Freiburg. Nesta ocasião, onde se dedicara a tratar daquilo que para ele são "as questões fundamentais da filosofia", Heidegger afirmou simplesmente que zum Anfang das Ursprüngliche gehört; isto é, "à origem pertence o originário". 19 Contudo, não almejamos consolidar nenhum tipo de primazia, visto que mais nos interessa aproximar os termos em questão. Para isto, já nos basta colocar em suspenso qualquer relação de predominância para atingir aquilo que melhor nos serve: deixar que ambos os termos se confundam ao ponto de tornar justificável nossa opção de tradução 14 HEIDEGGER: Grundbegriffe, pp. 7-8.

Origem em Heidegger e Winnicott

Aprender – Caderno de filosofia e psicologia da educação, 2008

After making a brief presentation of the manner in which the topic of origin emerges in Heidegger´s thought, the article shows that this topic necessarily includes that of birth. Next, the birth is studied in the light of the first and the second phase of Heidegger´s philosophy. Finally, the concepts of birth and origin that are contained in Winnicott´s theory of maturation are presented in order to introduce a dialogue between Heidegger´s thinking of Being and Winnicott´s psychoanalysis of human coming to be and growth.

Cassirer e Sartre sobre o esclarecimento

Kriterion: Revista de Filosofia, 2005

O presente ensaio levanta alguns aspectos da estética no século XVIII. Partindo da apresentação de duas interpretações hoje clássicas sobre o assunto (a de Cassirer e a de Sartre), busca rever o pressuposto analítico comum a ambas, para, em seguida, apontar as conseqüências que a relação entre autor e público trazem para a compreensão de aspectos estilísticos que nos parecem centrais para a literatura do Esclarecimento.

Resenha de Continental Divide: Heidegger, Cassirer, Davos

Não é tarefa simples debruçar-se sobre um tema ao mesmo tempo tão conhecido e tão pouco explorado: é como precisar trazer uma luz nova a um fato que se julga já suficientemente conhecido, quando o é apenas em seus contornos mais gerais. Em seu livro Continental Divide, lançado em 2010, Peter Gordon dá a si a incumbência de tratar de um dos eventos filosóficos mais importantes da primeira metade do século XX, que já foi objeto de investigação de tantos pesquisadores, mas que, contudo, parece não ter ainda sido compreendido -apesar de contribuições muito significativas -em sua profundidade e principalmente nos seus desdobramentos. Trata-se do debate realizado em Davos entre Ernst Cassirer e Martin Heidegger no ano de 1929, ao qual é costumeiro referir-se como o evento que escancara uma crise latente da filosofia (europeia) de tal monta que a fez cindir talvez irrecuperavelmente. "[T]inha-se a impressão de assistir à criação e ao fim do mundo", disse à época Lévinas, que fora parte da audiência do debate e é lembrado oportunamente por Gordon. Peter Gordon é doutor em História pela Universidade de Berkeley desde 1997 e a partir de 2006 tornou-se professor da mesma disciplina na Universidade de Harvard. Dedicase, entre outros, ao pensamento alemão em torno do período da República de Weimar (no ocaso da qual o debate de Davos acontece) e à filosofia de Heidegger -a respeito do qual já conta com publicações diversas -sem, contudo, desconsiderar as escolas alemãs da mesma época e seus respectivos membros, dentre os quais surge para Gordon o pensamento de Cassirer, membro da tradição neokantiana (da Escola de Marburgo, liderada por Hermann Cohen) e um dos principais expoentes do pensamento continental justamente do período de Weimar. A publicação deste livro vem na esteira de uma revalorização do pensamento de Cassirer, que foi eclipsado logo após sua morte em 1945. Desde meados da década de 1980, entretanto, algum interesse por sua obra voltou a surgir e trabalhos sobre suas diversas contribuições para a história do pensamento moderno passaram a ser publicadas. Dentre elas, o episódio da disputa de Davos, que apesar de sua importância estava relegado a um mero clichê alegórico nos anais da história da filosofia. Nesse sentido, em 2002 foi publicada uma coletânea a partir de um evento comemorativo aos 70 anos do debate de Davos, em 1999, organizada por Dominic Kaegi e Enno Rudolph: Cassirer -Heidegger. 70 Jahre Davoser Disputation. No ano seguinte, Michael Friedman publicaria seu estudo sobre o mesmo evento,

Ontologia e antropologia: possíveis diálogos entre as hermenêuticas de Heidegger e Ricoeur

Trans/Form/Ação, 2024

Resumo: Este artigo objetiva matizar a taxativa contraposição entre a "via curta" da ontologia heideggeriana e a "via longa" adotada por Ricoeur, como representação das muitas mediações necessárias na constituição de sua antropologia filosófica. Heidegger irrompe no pensamento contemporâneo com a publicação de seu tratado Ser e tempo (1927), como uma espécie de instalação direta no terreno da ontologia. Em contraste, Ricoeur é visto-e ele mesmo se vêcomo um pensador das mediações conceituais, em seu longo itinerário, desde a adesão à fenomenologia husserliana e posterior inflexão hermenêutica, passando por confrontações com a psicanálise freudiana, o estruturalismo e a filosofia analítica, até a formação do livro O si-mesmo como outro (1990). Contudo, os dois filósofos construíram suas obras no horizonte comum da hermenêutica; assim, há entre eles possíveis pontos de convergência? E como se poderia interpretar a relevância dessa possível interlocução? Esses questionamentos não podem ser respondidos sem uma minuciosa leitura comparativa. Este texto não pretende respondê-los, mas apenas sugerir elementos para posteriores investigações.

A crítica de Adorno à ontologia fundamental de Heidegger a partir da interpretação heideggeriana de Kant

Veritas (Porto Alegre), 2015

Este artigo analisa a crítica de Adorno à ontologia de Heidegger. Para tal, utiliza como leitmotiv a interpretação heideggeriana de Kant. Procuraremos mostrar que para Adorno a edificação da ontologia fundamental a partir da filosofia de Kant é uma interpretação indevida desta. Por fim, procura apontar uma possível saída na filosofia de Adorno para o problema da necessidade de fundamentação do discurso filosófico. Tal saída passa pela constatação da importância da arte para a construção da universalidade na filosofia.

Ernst Cassirer e a objetividade das Ciências Culturais

RESUMO. O presente artigo consiste na apresentação e na análise de elementos da filosofia de Ernst Cassirer a partir dos quais o problema da objetividade das Ciências Culturais pode ser formulado e, em certa medida, respondido. Tais elementos são encontrados nos estudos que compõem a Lógica das Ciências Culturais, de 1942, obra da fase final da produção intelectual do autor, a saber: i) a fenomenologia préconceitual, que está na base da diferença entre as ciências naturais e as ciências da cultura; ii) as distinções entre o conceito natural e o conceito cultural, bem como a importância das noções de 'forma' e 'estilo' para as ciências culturais e iii) a centralidade da noção de forma e como isto reconfigura a noção de causa no interior das ciências não naturais. Palavras-chaves: Cassirer; objetividade; ciências culturais. Ernst Cassirer and the objectivity of Cultural Sciences ABSTRACT. This article presents and analyzes elements of Ernst Cassirer's philosophy from which the problem of objectivity in Cultural Sciences can be formulated and, to a certain extent, answered. Such elements are found in the studies that make up the Logic of Cultural Sciences, from 1942, a work in the final phase of the author's intellectual production, namely: i) the pre-conceptual phenomenology that underlies the difference between the natural sciences and the sciences of culture; ii) the distinctions between the natural concept and the cultural concept, as well as the importance of the notions of form and style for the cultural sciences and iii) the centrality of the notion of form and how this reconfigures the notion of cause within the non-natural sciences.

A leitura heideggeriana da filosofia do mito de Cassirer: sinal de antecipação do pensamento pós-Kehre?

2015

In 1928, Heidegger’s book review of the second volume of Cassirer’s Philosophy of Symbolic Forms (The Mythical Thought) was published in the Deutsche Literaturzeitung. Cassirer’s text date of 1925, hence it is possible that Heidegger had read it even before the publication of Being and Time. What makes both texts worthy of a closer examination is the fact that several central motifs and terms of Heidegger's later philosophy are already present in these two texts. Heidegger focuses particularly on Cassirer's reflections on the representation of mana (Mana-Vorstellung) in mythical thinking. This representation involves not only the distinction between the familiar and the unfamiliar, the ‘uncanniness’ or ‘not-at-homeness’ that befalls mightily the Dasein, but also the distinction between the sacred and the profane and that of the four world regions (Weltgegenden) and its organization in form of a cross. Although not everything that Heidegger announces is interpretable as full ...