DA CONSTITUIÇÃO VIRA-LATA À CONSTITUIÇÃO INVISÍVEL: UMA PAUTA DE PESQUISA (original) (raw)
A Constituição de 1988 nasceu de uma Assembleia Nacional Constituinte participativa que produziu um texto a partir do zero, disputado linha a linha pelas lideranças sociais e pelos partidos durante dois anos. O resultado deste processo foi uma constituição que incluiu em seu texto todos os maiores conflitos sociais brasileiros, ainda que não tenha dado a eles uma solução definitiva. Tal solução fez com que a sociedade saísse da constituinte com o objetivo de concretizar o texto nas décadas seguinte, o que fez com ele passasse a ocupar o centro de nossas disputas políticas. Essas características de nossa Constituição só se tornaram perceptíveis muito recentemente, como se pode comprovar pelo exame de análises de nossa Carta Magna publicadas na primeira hora, tarefa que este texto realiza em sua primeira parte. Como será visto a seguir, a maior parte dos autores que examinaremos mostra-se reticente em relação ao futuro da Constituição e julga digno de nota a participação significativa da sociedade na Assembleia Nacional Constituinte. Depois de quase todos esses autores, o sucesso futuro do texto constitucional em estruturar os conflitos políticos brasileiros soa inexplicável. É claro que havia razões para desconfiar de uma constituinte cujos componentes foram eleitos sob as regras eleitorais da ditadura militar e não por deputados eleitos especificamente para esta tarefa, ou seja, por uma assembleia “livre e soberana” (CHAUÍ, 1987, 158). Especialmente antes da ocorrência da assembleia, imaginava-se que o texto constitucional seria construído de cima para baixo, principalmente, sem a participação dos movimentos sociais (CHAUÍ, 1987). No entanto, este problema de legitimidade foi em parte compensado pela intensa participação popular, fato que não foi apontado como relevante pelos analistas que examinaremos a seguir. Como demonstra Antônio Sérgio Rocha (ROCHA, 2017), a constituinte saiu do controle das elites. Por essa razão, esse texto levanta a hipótese de que o resultado analítico magro revelado nos escritos que examinaremos a seguir se explica pelo fato de que as análises estavam mais preocupadas com o uso oficial do direito, ou seja, como a atuação das autoridades do Estado, em especial o Poder Judiciário, na efetivação do texto constitucional, do que com o uso social do direito, ou seja, a apropriação social da constituição pelos agentes sociais. Em sua segunda parte, este artigo sugere uma pauta de pesquisa para o direito constitucional brasileiro que procure descrever nossa experiência constitucional completa, levando-se em conta estas duas dimensões do direito. Afinal, a construção e a reprodução de nossa ordem constitucional não é apenas obra das elites jurídicas e políticas brasileiras, não é resultado apenas das ações judiciais que tramitam no Supremo Tribunal Federal e em outros tribunais. Ela também é obra de uma série de agentes sociais, profissionais do direito e pessoas situadas na sociedade civil que mobilizam o direito para expressar suas demandas. Pessoas cujas ações, em grande parte, permanecem invisíveis para a doutrina constitucional e para a teoria do direito. Uma descrição com tais características pode ajudar a evitar a captura do constitucionalismo brasileiros pelas elites jurídicas e políticas, mais especificamente, pelos políticos profissionais e pelos Ministros e Ministras do STF, um movimento que pode ameaçar a legitimidade de nossa Constituição. Pois se a legitimidade de nossa Carta Magna se explica, em grande parte, pelas características participativas de nossa Constituinte e pelas lutas pela efetivação do texto constitucional que se seguiram, a invisibilidade da interação entre a sociedade como um todo e as instituições formais, entre o uso social e o uso oficial da Constituição, pode pôr em risco tal legitimidade. Uma descrição incompleta de nossa experiencia constitucional pode induzir quem estuda o problema a imaginar que a legitimidade constitucional dependa apenas da cúpula do Estado. Por exemplo, ao invés de criar diversos canais de diálogo entre os tribunais e a sociedade, ao invés de disseminar o conhecimento da Constituição e do processo constitucional pela sociedade e ampliar o acesso à justiça, podemos imaginar que a legitimidade da Constituição dependa apenas da ação dos Ministros do STF e dos advogados e procuradores que atuam diante da suprema corte. Por exemplo, alguém poderia imaginar que a legitimação da constituição dependa de uma vanguarda iluminada, responsável por dizer para a sociedade como o texto constitucional deve ser. Em seu desfecho, este artigo examina alguns exemplos de investigações que ajudam a elucidar o processo contínuo de legitimação da Constituição de 1988, entre uso social e uso oficial do direito. São examinadas uma entrevista com Ailton Krenak, depoimentos de lideranças quilombolas a respeito do direito, uma experiencia de litigância a favor de pessoas trans e uma pesquisa sobre a experiencia de assentados em acampamentos do Movimentos dos Trabalhadores Rurais Sem Terra. Estudos como esses podem nos ajudar a construir uma narrativa mais precisa e completa de nossa experiencia constitucional que ponha em primeiro plano, a par das elites políticas e dos Ministros e Ministras do STF, outros agentes sociais - profissionais do direito ou não - que mobilizam a gramática dos direitos para articular suas demandas e solucionar seus conflitos, com a utilização ou não das instituições do Estado. Além disso, estes estudos também podem nos ajudar a compreender como o texto Constitucional se relaciona com a visão de mundo e com o direito dos vários grupos que formam a nacionalidade brasileira, como será explicado a seguir.