Tarkovsky: Intersubjectividade e Tempo (original) (raw)
O presente trabalho visa fazer uma análise a dois filmes de Andrei Tarkovsky, «Solaris» e «Stalker», tendo como pano de fundo o livro de Gilles Deleuze, «Cinema II: Imagem – Tempo». Proponho-me a trabalhar a distinção entre cinema clássico e moderno, mais concretamente a noção de zona de indeterminabilidade e de que forma esta se manifesta em Tarkovsky e que conclusões podemos daí retirar. Se no primeiro filme é o próprio planeta Solaris que traça esta zona, em «Stalker» o espaço de reflexão é apelidado precisamente de Zona. Irei distinguir em Tarkovsky dois conceitos principais: intersubjectividade e tempo. No primeiro debruçar-me-ei na forma como o cineasta convida o espectador a entrar na acção, interpretando-a e construindo pontos de encontro entre todos os intervenientes, actores, personagens, espectadores e o próprio Tarkovsky. Num segundo momento, irei referir as consequências que os planos-sequência e outras técnicas/aspectos em Tarkovsky têm no resultado dos filmes e na sua interpretação. Nestes dois momentos parece-me ser diagnosticável todo o processo que Gilles Deleuze descreve em «Cinema II: Imagem – Tempo». Seja a dimensão interpretativa ou a reinvenção do tempo, Tarkovsky ao longo da sua filmografia debruçou-se sobre os efeitos no espectador, sobre a função do cinema e da arte em geral, condenou o cinema de montagem, curiosamente a estrela mais brilhante do cinema russo a partir de Sergei Eisenstein. Através de seu pai, Arseny Alexandrovich Tarkovsky, poeta conceituado, transformou os seus filmes em “poética das imagens”, usando a vasta obra de Arseny quer directamente no argumento, quer como inspiração para construír a mise-en-scène. Tarkovsky afirmava que a mise-en-scène servia “para expressar o significado do que está a acontecer; nada mais que isso. Mas definir dessa forma os limites da mise-en-scène equivale a seguir um caminho que leva a um único fim: a abstracção.” Dessa forma Tarkovsky acreditava que o “director tem de trabalhar a partir do estado psicológico dos personagens, através da dinâmica interior da atmosfera da situação, e reportar tudo isso à verdade do facto directamente observado e à sua textura única. Só então a mise-en-scène alcançará a importância específica e multifacetada da verdade concreta” (Pág. 85-86). O cineasta, na sua obra literária «Esculpir o Tempo», exemplifica da seguinte forma o que pretende dizer com apelar à “dinâmica interior”: “Friedrich Gorenstein, por exemplo, escreveu num roteiro que o quarto cheirava a poeira, flores mortas e tinta seca. Gosto muito disso, pois me permite começar a imaginar como é aquele interior, e sentir a sua "alma".” (Pág. 86). Tarkovsky gostava de sentir o sabor das palavras e da sua alma. Gostava de sentir a emoção que lhe transmitiam. Não era de todo fã de argumentos puramente técnicos e racionais, e para ele a melhor forma de transmitir essas emoções era através da poesia. Depreendemos assim que Tarkovsky tinha a intenção de convocar uma reacção, um estímulo, não estruturado ou manipulatório, mas inteiramente subjectivo. “Através da arte o homem conquista a realidade mediante uma experiência subjectiva” (pág. 42) diz em «Esculpir o Tempo». Esta é a condição premente na filmografia de Tarkovsky, pedir ao espectador um investimento espiritual que o leve a comunicar consigo e com o mundo. Veremos mais a fundo esta característica em exemplos de «Solaris» e Stalker». Primeiramente irei recapitular os principais pontos que Deleuze aponta na passagem da imagem-movimento, para a imagem-tempo.