Troco uma máscara por alimento: fome e pobreza na Covid-19 (original) (raw)
2020, Diário da Pandemia: O Olhar dos Historiadores
Recentemente, uma foto chamou a atenção nos noticiários. Nela, uma criança levantava um cartaz onde estava escrito: “Troco uma máscara por alimento”, a imagem divulgada no Jornal Extra em 14/05/2020 era forte. De súbito, despertou diversos debates sobre as (im)possibilidades de distanciamento social e quarentena de quem, aos olhos do Estado, não existe: os informais, os desempregados, os desalentados. Ou seja, as políticas voltadas para esse estrato da população são ineficazes. Existem diversas explicações para o baixo grau de distanciamento social em comparação a outros países que estão passando pela epidemia da Covid-19. Essas análises, no geral, fazem referência às (más) relações entre os entes federativos no Brasil. Mas acredito que é possível apontar mais uma variável nesta questão. A fome é um fantasma recorrente na história do Brasil. Em especial na história recente. Por ser um assunto que traz à tona questões sociais e desigualdades muito profundas e antigas, é, decerto, um assunto incômodo. Desde as primeiras lutas pela redemocratização brasileira, a forma de abordar o assunto por parte das políticas públicas se alterou de forma significativa, sendo, em muitos casos, provocada pelos movimentos sociais que daquele momento participaram, como o ‘Movimento Custo de Vida e Contra a Carestia’ e as ‘Marchas da Panela Vazia’, criados no final da década de 1970 frente aos efeitos da crise do milagre econômico brasileiro. Na década de 1980, foi criada uma Comissão Parlamentar de Inquérito, instaurada em 1981, para investigar as causas do avanço da fome entre a população brasileira; mesmo ano da criação do Instituto Brasileiro de Análises Econômicas e Sociais, liderado pelo até então exilado Herbert de Souza. A ótima tese de doutorado de Daniel Alvim, defendida em 2016 na UFF, mostra como os saques populares ocorridos na década de 1980, antes e durante o período da redemocratização, resultaram em mobilizações populares que permitiram que a população brasileira reivindicasse, ao mesmo tempo, a luta contra a fome e a redemocratização nacional. Dois exemplos destacados no trabalho são a Campanha da Fraternidade da CNBB, chamada Pão para quem tem fome, e os debates envolvendo o assunto na Assembleia Nacional Constituinte. O sucesso da Ação da Cidadania Contra a Fome, liderada pelo já citado Herbert de Souza, o Betinho, no início dos anos 1990, é uma prova da mobilização da sociedade civil em torno do assunto.