Identidades sociais na escola : gênero, etnicidade, língua e as práticas de letramento em uma comunidade rural multilíngüe (original) (raw)

Este estudo investiga o modo como alunos e professores da escola-núcleo de ensino fundamental Joaquim Nabuco, do município de Missal, oeste do Paraná, constroem conhecimento em eventos de letramento em língua portuguesa. Foram adotados procedimentos de trabalho de campo da pesquisa etnográfica e microetnográfica. O trabalho de campo na comunidade envolveu participação em eventos de letramento que aconteceram em domínios sociais como Igreja, associações de agricultores, reuniões da Pastoral da Criança, acompanhamento de crianças da escola até as suas casas e visitas às suas famílias. Na escola-núcleo, esse trabalho implicou observação participante continuada, anotações em diário de campo, coleta de documentos, entrevistas e registros de interações em áudio e vídeo. O processamento e a análise de dados consistiu em catalogação e indexação dos dados de observação participante e coleção de registros e transcrições de dados audiovisuais de falaem-interação. A análise microetnográfica de mais de dez horas de aula registradas em vídeo na 1ª série ocorreu em etapas: a) análise inicial de todos os dados; b) tipificação das atividades realizadas com o texto escrito; c) análise da (co)sustentação do(s) piso(s) conversacional(is) (SULTZ, FLORIO e ERICKSON, 1982); d) transcrição seletiva de dados audiovisuais. Para a articulação das ações sociais dos participantes, adotei as posições ontológicas da Sociolingüística Interacional (RIBEIRO e GARCEZ, 2002). Os resultados da pesquisa mostram que a identidade de gênero e a identidade étnico-lingüística alemã estão em uma relação complexa na comunidade, o que fica evidenciado no comportamento que homens e mulheres adotam em relação aos valores associados à urbanidade. Dentre esses valores, estão o letramento em português, o uso do brasileiro (variedade não-padrão da língua portuguesa, assim denominada pelos usuários) e o conforto, itens almejados pelas mulheres para a conquista de status de prestígio local. A identidade masculina local, reconhecida na comunidade por meio de traços também equacionados com a identidade de colono alemão, proprietário de terra, se fortalece na relação com os habitantes da área do município ocupada pelo sistema de posses e é ameaçada na relação com os habitantes de Medianeira (cidade-pólo microrregional), que representam os valores +urbano, +letramento, +brasileiro. A língua alemã é, assim, um traço da identidade masculina local que as mulheres procuram apagar, uma vez que a vida rural mostra-se uma escolha pouco atraente para elas. A escola reforça essa realidade presente na comunidade, uma vez que ratifica positivamente em sala de aula uma identidade feminina hegemônica, que corresponde à identidade feminina prestigiosa na comunidade local. Os traços dessa identidade feminina são co-sustentar os pisos conversacionais propostos pela professora, apresentar a resposta esperada, produzir a segunda parte do par adjacente inicial da seqüência Iniciação-Resposta-Avaliação, apresentar voluntariamente o caderno para a correção, organizar devidamente a atividade no caderno e zelar pelo asseio corporal. As meninas e os meninos que tornam relevantes traços de outras identidades, como a identidade masculina, a identidade étnico-lingüística alemã, a identidade racial negra, a identidade religiosa evangélica pentecostal ou a identidade de repetente, vivem conflitos de identidade na escola. Vários meninos da 1ª série, por exemplo, respondem por traços, como desorganização e falta de asseio corporal, que estão associados à identidade de colono alemão na comunidade. São construtos sociais e/ou identidades, com percurso vi histórico anterior, que emergem na atuação dos alunos em sala de aula. Alguns meninos da 4ª série aprenderam a negociar os traços da identidade feminina hegemônica da escola, conquistando status de ótimos alunos. Em termos de contribuição teórica, os resultados deste trabalho mostram que os indivíduos estão sempre negociando identidades sociais na interação face a face. Essas identidades foram construídas através de um contato intenso em determinadas comunidades de prática (ECKERT e McCONNELL-GINET, 1992). Assim, ressalta-se a visão de que membros aparentemente próximos e que, em princípio, pertencem à mesma comunidade lingüística (GUMPERZ, 1993) podem construir diferentemente uma identidade, como a identidade étnico-lingüística alemã no município de Missal.