Um sopro contra o Estado de exceção (original) (raw)
A tradição dos oprimidos nos ensina. Faz eco entre nós. Vozes que foram emudecidas. O sofrimento dos corpos prostrados, espezinhados, esquartejados. Não apenas de ontem. O estado de exceção é a regra. Hoje sabemos que as expressões cujas formas correspondem a essa verdade não logram mais ser meramente recalcadas diante da conservação e manutenção do ordenamento social como um todo regido pela suspensão abstrata das suas leis em nome da sua força de lei concreta e assassina, policial, por assim dizer, não apenas fundante, mas estruturante dos mecanismos que levam a cabo a destruição do outro, sempre que for necessário para a justificação do status quo. Amarildo, Claudia, inúmeras Mães de Maio -quantos nomes devemos dizer? Contudo, a filosofia e a literatura dignas das suas histórias erguem-se contra a dominação da realidade. Todo o resto é expansão e repetição. Mas não apenas diretamente enfrentamos hoje os ditadores, os amigos dos ditadores, os seus cúmplices sempre muito bem articulados com o estado oligárquico das coisas -e que, portanto, ousam, assim como outrora já ousaram, dizerem-se legítimos -um estado de todo lamentável, no qual se sustenta ainda a ficção da sua fundação "naturalmente" com base em teorias contratualistas, justificacionistas e civilizatórias, cuja potência criminógena e bandida ainda não prescreveu ante todas as suas consequências genocidas, e por isso dá as caras, sob togas, braceletes e aventais, e com camisas da CBF, principalmente apontam contra a pele de negros ou índios ou de bárbaros, naturalmente identificados conosco, mas dos quais eternamente os civis gostariam de se diferenciar, sem no entanto abdicar da entrega de suas próprias vidas às articulações instrumentais, cuja ideia vazia e preenchida pelo medo, repetida e expandida identifica-se ao todo da organização social. A esse respeito, em K., de Bernardo Kucinski, a visada da coisa nos abre o próprio autor antes do narrador, numa página preta inicial, na qual ele escreve: "Caro leitor: Tudo nesse livro é invenção, mas quase tudo aconteceu". Não se trata meramente de uma advertência de cunho editorial, apesar de lograr desequilibrar um estado geral de coisas aparentemente acomodado com a sua composição e a sua execução, levando à crise o enredamento da comunicação em geral na técnica que organiza não apenas linguisticamente o todo.