As políticas públicas e as suas narrativas: o estranho caso entre o Mais Cultura e o Sistema Nacional de Cultura (original) (raw)

O Programa Mais Cultura enquanto política pública foi, na longa história das ações do governo federal na área de cultura, não mais que um soluço. É fácil ver o que se quer dizer com isso se se levar em consideração que as políticas de cultura no Brasil começaram, pelo menos, em 1930;1 enquanto o Mais Cultura teve início pelos idos de 2007, encerrando-se com a mudança da administração no fim de 2009. É verdade que houve certa continuidade entre o fim do segundo mandato do presidente Lula e o começo da administração do seu sucessor, pela razão nada singela de o presidente Lula ter, na linguagem da política, “feito” seu candidato, a presidente Dilma Rousseff — metáfora, neste caso, muito apropria- da aos acontecimentos. O Ministério da Cultura, no entanto, apesar da perma- nência de alguns funcionários em cargos importantes, passou por uma inflexão com a mudança de ministro. Olhando a distância, não mudou muito e, ao mes- mo tempo, tudo é diferente: o discurso, prioridades e justificativas continuam semelhantes; porém, mudaram as pessoas e, com as que se foram, vieram novas ênfases — o suficiente para desarticular e descontinuar o programa. O Mais Cul- tura era um programa ambicioso, reconheça-se. Tentou, com graus discutíveis de sucesso, reorganizar vários projetos que já estavam em andamento – alguns de média duração —, e criou alguns novos, dando-lhes, no plano das justificativas e organizações conceituais, uma estrutura coerente com algumas das grandes preo- cupações do então governo: combate às desigualdades, redistribuição de recursos para os municípios mais pobres, reinvenção do pacto republicano, reinvenção do Estado, ênfase na participação popular etc. Curiosamente, os programas que lhe precederam e foram incorporados ao Mais Cultura acabaram por sobreviver a ele. Isso sugere que o Mais Cultura tenha sido, no fundo, a encarnação governa- mental de uma antropofagia institucional que nos lembra, nem que seja à trans- versa, a perspectiva modernista, de índole revolucionária, da década de 1930, de juntar coisas que não poderiam estar juntas (no caso destes, a cultura europeia e a brasileira). Ou talvez nem seja tão curioso assim, uma vez que as sobrevivências nas coisas do governo sejam muito mais poderosas que as rupturas e novidades, apesar do caráter histriônico destas e da humildade servil daquelas. Justamente por isso, se perguntaria o leitor atento: qual a necessidade e conveniência de um livro que examina um soluço?