FATO E FICÇÃO NA OBRA DE DANILO KIŠ: UMA LEITURA DE UM TÚMULO PARA BORIS DAVIDOVITCH (original) (raw)

O espaço (auto) biográfico contemporâneo, tal como nos apresenta Arfuch (2010) constitui-se em uma zona híbrida, instável, irregular. Uma zona em que predominam a interdiscursividade entre os gêneros, a transversalidade dos discursos e uma dificuldade cada vez maior de etiquetar e classificar as produções que trabalham com a escrita da intimidade. Este novo cenário exige que o leitor incorpore novas formas de olhar às narrativas, armando-se de procedimentos de leitura específicos, porém ao mesmo tempo ambíguos, afinal uma obra de ficção pode conter elementos (auto) biográficos, assim como uma produção (auto) biográfica pode se construir predominantemente de invenção. Como encarar então este tipo de texto? Uma destas experimentações cada vez mais crescentes no interior do espaço (auto) biográfico é uma constante na bibliografia de um escritor iugoslavo que nas palavras de Sontag (2001), sempre esteve sob ataque e portanto, de modo forçoso, no ataque: Danilo Kiš. Espectador de períodos tempestuosos da História Mundial, filho de um país que celebrava a literatura provinciana (e que logo, opunha-se ao modelo nada conservador de escrita de Kiš), transformado em astro por seus conterrâneos apenas após a sua morte em 1989, o que se estabelece na produção deste autor, em especial na obra que analisamos, Um túmulo para Boris Davidovitch, é uma forte tensão entre fato e ficção. Ou seja, na construção mimética, Danilo Kiš incorpora às suas narrativas ficcionais, uma série de estratégias comumente presentes nas narrativas biográficas. Esse procedimento, que também aparece em Vidas Imaginárias (2011), de Marcel Schwob; História Universal da Infâmia (1986), de Jorge Luís Borges; e Mortes Imaginárias (2005), de Michel Schneider, insere Um túmulo para Boris Davidovitch na tradição das genericamente chamadas ficções biográficas (Premat, 2010). São obras que se estruturam no formato de relatos curtos, em que a veracidade e o testemunho, típicos da biografia, se mesclam com a invenção, a especulação e a dúvida da invenção ficcional. Pensando nestas questões, neste trabalho, lançamos um olhar analítico sobre os sete relatos que compõem Um túmulo para Boris Davidovitch, de Kiš, buscando compreender como se organizam as narrativas, como se estabelece essa tensão entre ficção e realidade na obra, e de que maneira o escritor iugoslavo assume o que Premat (2010) chama de posição de falsário, ao introduzir nas narrativas como dados autênticos personas e informações que, na verdade, não encontram referentes no mundo real. Paralelamente, buscamos conexões entre a obra de Kiš e os outros livros que compõem a tradição na qual ela está inserida, propondo o estabelecimento de uma genealogia que se configure não pela herança de sangue, típica da crítica comparativista tradicional, e sim, como propõe Souza (2007), pela aproximação, que se vale tanto de coincidências ideológicas entre os autores quanto de experiências biográficas comuns, que pode ser feita pela crítica a partir de liberdades interpretativas, de rede de associações que se compõem de elementos ficcionais, teóricos e biográficos.