A LITERATURA REENGAJADA NOTAS SOBRE CRIAÇÃO E ENGAJAMENTO EM ALBERT CAMUS (original) (raw)
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DIREITO E LITERATURA: O ABSURDO NO DIREITO EM O ESTRANGEIRO, DE ALBERT CAMUS
RESUMO: A partir de uma compreensão da filosofia do absurdo desenvolvida por Camus, é possível pensar a obra O estrangeiro sob a ótica jurídica, não apenas em relação aos elementos penais tratados no decorrer do processo de julgamento do protagonista Mersault, mas, inclusive, no que diz respeito às implicações que as noções de " estrangeiro " e de " inimigo " trazem a estudos que abordam identidade e alteridade, bem como a proximidade entre homem e direito, liberdade e moral, apresentados no presente artigo como pilares que sustentam a narrativa de Camus. O trabalho explora, assim, a riqueza emergente de um estudo interdisciplinar que lança mão da Literatura para pensar o Direito, uma vez que compreender os paradoxos exaltados na arte literária permite que tracemos um caminho profícuo para a reflexão crítica sobre a própria natureza do Direito, demonstrando a importante intersecção entre ambas as esferas.
BOTULISMO EM CÃES: REVISÃO DE LITERATURA
RESUMO O botulismo é uma enfermidade causada pela ingestão de toxinas produzidas pelo Clostridium botulinum, bactéria gram-positiva, anaeróbica e formadora de esporos, que está amplamente distribuída na natureza, no solo e em sedimentos de lagos e mares. Em cães, a doença ocorre principalmente pela ingestão da toxina pré-formada presente em alimentos deteriorados ou carcaças em decomposição. Após a absorção, a toxina migra por via hematógena até as terminações nervosas e bloqueia a liberação da acetilcolina na membrana pré-sináptica da junção neuromuscular, resultando em paralisia completa do neurônio motor inferior. Os cães acometidos apresentam paralisia flácida ascendente da musculatura esquelética, embora a sensibilidade e a consciência sejam mantidas. O diagnóstico presuntivo é realizado com base no histórico do animal e nas manifestações clínicas. A técnica padrão para o diagnóstico definitivo é a inoculação intraperitoneal de soro sanguíneo dos animais suspeitos em camundongos. O tratamento de suporte é fundamental para a recuperação. O prognóstico é bom, exceto nos casos com infecções secundárias ou outras complicações. A recuperação é completa geralmente entre 2 a 3 semanas. Nos casos mais severos, pode ocorrer a morte por paralisia da musculatura respiratória. A profilaxia da doença nos cães é baseada na restrição ao consumo de alimentos deteriorados ou carcaças em putrefação. ABSTRACT Botulism is a disease caused by ingestion of toxins produced by Clostridium botulinum, a gram positive bacterium, anaerobic spore-forming, which are widely distributed in nature, soil and sediments of lakes and seas. In dogs, the disease mainly occurs by ingestion of preformed toxin present in spoiled food or rotting carcasses. Once absorbed, the toxin migrates through hematogenous until the nerve endings and blocks the release of acetylcholine at the presynaptic membrane of the neuromuscular junction, resulting in complete paralysis of the lower motor neuron. The affected dogs have ascending flaccid paralysis of the skeletal muscles, although the sensitivity and awareness are maintained. Initial diagnosis is carried out through the history of the animal as well as clinical manifestations. The standard technique for definitive diagnosis is intraperitoneal inoculation of blood serum of suspected animals in mice. Supportive care is essential to recovery. The prognosis is good if there is no development of secondary infections or other complications. The recovery is complete after a period of 2 to 3 weeks. In more severe cases, death can occur due to paralysis of the respiratory muscles. The prevention of the disease in dogs is based on restricting the consumption of spoiled food or rotting carcasses.
Outros Tempos, 2018
Resumo: O objetivo deste trabalho é apresentar o tema da escravidão e suas potencialidades de pesquisa no quadro dos documentos históricos do judiciário amazonense, composto por milhares de processos judiciais. Os registros históricos mapeados e reunidos no Arquivo do Tribunal de Justiça do Estado do Amazonas revelam uma complexa e multifacetada realidade cotidiana, envolvendo cativos em situações às vezes insuspeitadas. O cotejamento dos registros da justiça contendo processos contra escravos, africanos livres e outros indivíduos oferece-nos indícios valiosos sobre as especificidades da escravidão no Amazonas. Logo, as narrativas e memórias resgatadas instigam-nos a recuperar a história de homens e mulheres que vivenciaram experiências complexas entre a escravidão e a liberdade. Para além das histórias individuais ou coletivas que foram marcadas pela experiência do cativeiro, a sistematização/organização do acervo histórico do Tribunal de Justiça apresenta-nos um desafio ainda mais complexo: romper os silêncios sobre a temática e impulsionar o desenvolvimento de novas pesquisas. Nesse sentido, o retorno aos arquivos históricos torna-se uma tarefa fundamental para os pesquisadores que pretendem tornar visível a história das populações negras. Observando a fluidez e as aproximações das múltiplas realidades que compõem o cenário amazônico, é possível romper com as narrativas hegemônicas que marcaram a historiografia sobre a escravidão no Amazonas e que minimizam a importância da temática, oferecendo ainda novas categorias analíticas e propostas inovadoras de investigação. Abstract: The goal of this paper is to present the topic of the slavery and its research potentialities in the context of the historical documents of the Amazonian judiciary, constituted of thousands of legal cases. The historical records mapped and gathered in the Archive of Amazonas State Justice Court reveal a complex and multifaceted daily reality, involving slaves in unsuspected situations sometimes. The comparison of the judicial records containing lawsuits against slaves, free Africans, and other individuals offers us valuable indications about the specificities of the slavery in the Amazon. The narratives and memories rescued instigate us to recover the history of men and women who had lived complex experiences between slavery and freedom. Beyond to the individual or collective stories marked by the captivity experience, the systematization/organization of the historical collection of the Justice Court introduces us to an even more complex challenge: to break the silence on this subject and to encourage the development of new researches. Thereby, the return to the historical archives becomes a fundamental task to researchers who intend to make visible the history of black populations. Observing the fluidity and the approximations of the multiple realities that compose the Amazonian scenario, it is possible to break with the hegemonic narratives that marked the slavery historiography in the Amazonas, that minimizes the importance of this subject, also offering new analytical categories and innovative research proposals. Resumen: El objetivo de este estudio es presentar el tema de la esclavitud y sus potencialidades de investigación en el contexto de los documentos históricos del judiciario amazonense, compuesto por miles de procesos judiciales. Los registros históricos mapeados y reunidos en el Arquivo do Tribunal de Justiça do Estado do Amazonas revelan una compleja y multifacética realidad cotidiana, involucrando cautivos en situaciones a veces insospechadas. El cotejo de los registros de la justicia conteniendo procesos contra esclavos, africanos libres y otros individuos nos ofrece indicios valiosos sobre las especificidades de la esclavitud en el Amazonas. Las narrativas y memorias rescatadas nos instigan a recuperar la historia de hombres y mujeres que han experimentado complejas experiencias entre la esclavitud y la libertad. Además de las historias individuales o colectivas que fueron marcadas por la experiencia del cautiverio, la sistematización/organización del acervo histórico del Tribunal de Justiça nos presenta un desafío aún más complejo: romper los silencios sobre la temática e impulsar el desarrollo de nuevas investigaciones. En ese sentido, el retorno a los archivos históricos se convierte en una tarea fundamental para los investigadores que pretenden hacer visible la historia de las poblaciones negras. Observando la fluidez y las aproximaciones de las múltiples realidades que componen el escenario amazónico, es posible romper con las narrativas hegemónicas que marcaron la historiografía sobre la esclavitud en el Amazonas y que minimizan la importancia de la temática, ofreciendo aún nuevas categorías analíticas y propuestas innovadoras de investigación.
IMAGEM, ABSURDO E REVOLTA EM ALBERT CAMUS
2018
Resumo: Este artigo pretende investigar como a imagem é preponderante para as reflexões sobre o absurdo e a revolta no pensamento filosófico de Albert Camus. Para o autor, a imagem fornece ocasião para a reflexão e não se separa desta, uma vez que o pensamento por imagens configura-se como um pensamento mais integral, operando no entrecruzamento da experiência sensível com a reflexão filosófica. Sendo assim, pode-se dizer que Camus sugere à filosofia de seu tempo pensar a condição humana a partir da diluição das fronteiras entre o texto filosófico e a narrativa literária, propondo ao filósofo uma recusa à mera construção de sistemas conceituais que, no limite, apartam pensamento e experiência. Para Camus, tal filosofia se configuraria por meio da imagem, conduzindo a uma reflexão lúcida sobre a existência humana. Abstract: This article aims to investigate how the image is important for the reflections about the absurd and the rebellion in the philosophical thought of Albert Camus. For the author, the image provides the occasion for reflection and does not separate itself from it, since the thought by images is configured as a more integral thought, operating in the intercrossing of sensory experience and philosophical reflection. Thus, it can be said that Camus suggests to the philosophy of his time to think about the human condition from the dissolution of boundaries between the philosophical text and the literary narrative, proposing to the philosopher a refusal to the mere construction of conceptual systems that ultimately separate thought and experience. For Camus, such philosophy would be configured through the image, leading to a clear reflection of human existence.
VIVER E MORRER DIANTE DO ESPELHO: A REVOLTA DE CHARLES BAUDELAIRE NOS ESCRITOS DE ALBERT CAMUS
RESUMO: o presente artigo pretende refletir sobre a leitura que Albert Camus faz do poeta Charles Baudelaire (1821-1867) no capítulo "A revolta metafísica", de O homem revoltado (1951). A relação com esse poeta, contudo, não se limita a essa referência e abrange também possíveis intertextos em outros escritos. É o caso de A queda (1956), que traz o dândi baudelairiano na figura do seu protagonista, o advogado decadente Jean-Baptiste Clemence. A presente análise pretende revelar que Camus se projeta além do olhar crítico sobre Baudelaire para absorver também alguns das suas imagens no momento da composição literária. Palavras-chave: Albert Camus, O homem revoltado, dândi, revolta, Charles Baudelaire. 1. A REVOLTA DOS DÂNDIS Responsável por grandes querelas intelectuais, O homem revoltado (1951) i , de Albert Camus, apresenta um tratado da insurreição, no qual artistas e pensadores modernos do ocidente são exemplos de como se dizer não. Personagens como Sade, Nietzsche, Marx, Lautréamont e Rimbaud contribuem para o esboço de um caminho rumo a um equilíbrio no qual o indivíduo consciente se libertaria de um sistema opressor. Dentre tais exemplos, Charles Baudelaire entra no conjunto dos "revoltados | Nº 16 | Ano 12 | 2013 | Estudos (9) p. 2 metafísicos" de Camus por trazer em seus escritos a imagem poética do dândi, que personaliza o revoltado em meio às tensões inerentes a esse movimento de libertação. Enfocaremos, portanto, a leitura crítica que Camus faz de Charles Baudelaire sob essa ótica da moral da revolta. Os primeiros esboços de O homem revoltado podem ser encontrados no texto "Considerações sobre a revolta" ii , publicado seis anos antes pelo escritor. Nele, Camus defende que o valor primordial da revolta é a cumplicidade entre os homens, uma relação na qual se busque em primeiro lugar enxergar o relativismo de cada experiência. Nesse sentido, ela transcende a consciência absurda que indivíduo tem de si, teorizada em O mito de Sísifo (1942), e a projeta sobre a coletividade: "É na revolta que o homem transcende no outro e, deste ponto de vista, a solidariedade humana é metafísica. iii Considerando essa valorização da cumplicidade já na sua gênese, O homem revoltado terá como uma de suas maiores preocupações a violência despertada pelo movimento do rebelde. Camus se dirige, sobretudo, às rebeliões do homem moderno que se contradizem a partir do momento em que adentram a lógica revolucionária. Para o escritor, os campos de concentração da União Soviética revelariam como o comunismo é uma das principais expressões do século XX desse mal ocidental, pois nele a revolta recairia em uma falsa unidade, que contradiz seu ponto de partida: "A mais elementar rebelião exprime, paradoxalmente, a aspiração a uma ordem" (CAMUS, 2011, pp. 39-40). Trata-se, portanto, de distinguir entre o impulso inicial do rebelde, que estará em constante blasfêmia ante seu dominador, e o revolucionário, que almeja o " (CAMUS, 1965 p.1685) Trata-se, sobretudo, de uma "metafísica horizontal" que, em vez de se projetar para um plano ideal, parte em direção aos valores dos homens solidários uns aos outros. | Nº 16 | Ano 12 | 2013 | Estudos (9) p. 3
RESUMO A análise da escrita literária sempre traz em voga reflexões sobre os limites entre ficção e realidade, bem como, a forma como esses conceitos se entrelaçam. Partindo de referenciais como Aristóteles (2003), Bakhtin (2005), E. Bosi (2002), entre outros. Esse trabalho tem por objetivo identificar como ocorre a relação entre as características dos gêneros biográfico e ficcional na obra O Amanuense Belmiro, do autor Cyro dos Anjos. Os resultados indicam que o romance é composto por características do gênero autobiográfico, porém, o personagem se assume como autor do texto, assim, de certa forma, anulando a presença e função do autor empírico. Palavras-chave: ficção, autobiografia, diário, romance, Cyro dos Anjos. Considerações iniciais Este trabalho tem por objetivo analisar alguns aspectos da estrutura da narrativa da O amanuense Belmiro, do autor Cyro dos Anjos. A obra em questão pertence a segunda geração do período modernista da Literatura Brasileira, porém, tem como enfoque...
ALBERT CAMUS: A SUBVERSÃO DA POLÍTICA PELA LÓGICA DO ABSURDO EM CALÍGULA
Incitatus : reflexões sobre humor e política , 2023
O presente capítulo apresenta uma leitura política da obra teatral Calígula, escrita por Albert Camus entre 1937 e 1945. A narrativa da peça explora o conceito do absurdo como uma lógica subversiva utilizada pelo imperador romano Calígula para negar a equivalência da morte. A obra aborda as tensões entre a fragilidade humana, a ideia de ordem e segurança que são conteúdos da ideia de Estado, e a indiferença do mundo.
Tendo-se completado o dia de Pentecostes, estavam todos reunidos no mesmo lugar. De repente, veio do céu um ruído como o agitar-se de um vendaval impetuoso, que encheu toda a casa onde se encontravam. Apareceram-lhes, então, línguas como de fogo, que se repartiam e que pousaram sobre cada um deles. E todos ficaram repletos do Espírito Santo (At. 2,1-4) 1 1. Considerações iniciais Originária de diferentes festejos agrícolas hebraicos, 2 a celebração de Pentecostes entre os primeiros cristãos remontava aos eventos descritos em At.2,1-11, associados à difusão do Espírito Santo e à missão apostólica. Descrito como momento de júbilo entre as comunidades cristãs, o dia de Pentecostes caracterizava-se por sua estreita vinculação às datas pascais, pela glorificação da Ascensão de Cristo e, por fim, pela reflexão da missão terrena conduzida pela Igreja. Na esteira do esforço pela uniformização e divulgação do calendário litúrgico conduzido pelo episcopado latino, sobretudo a partir do século IV, o dia de Pentecostes passou a ser considerado como encerramento do ciclo litúrgico pascal, ocasionando a secção de dois aspectos primordiais da festa em duas datas distintas. Ao passo que a Quinta-feira da Ascensão -40º dia após o Domingo da Páscoa, precedido na semana anterior por três dias penitenciais de Rogações 3 -foi reservada à exaltação da subida de Cristo aos céus; o Domingo de Pentecostes, 50º dia após a data pascal, deteve-se nas explanações sobre o Espírito Santo e a atuação da Igreja. Em nossa dissertação de mestrado, defendida em abril de 2009, examinamos o processo de organização do calendário litúrgico, em específico do ciclo pascal, ao partirmos do pressuposto que a preocupação episcopal com a divulgação e o ordenamento de datas festivas entre as comunidades cristãs corresponde a um dos âmbitos de fortalecimento de sua própria autoridade, tal como as crescentes atribuições jurídicas, diplomáticas, fiscais, dentre outras, das quais os bispos vieram a se encarregar, particularmente nas cidades. 4
O Estrangeiro, 1942
4 esperei ainda um pouco. Durante este tempo, o porteiro não parou de falar. Depois, o diretor recebeu-me no seu gabinete. Um velhote, que tem a Legião de honra. Fitou-me com uns olhos muito claros. Depois apertou-me a mão durante tanto tempo, que já não sabia como havia de a tirar. Consultou um processo e disse-me: "A senhora sua mãe entrou para aqui há três anos". "O senhor era o seu único amparo". Julguei que me estava a fazer alguma censura e comecei a explicarlhe, mas ele interrompeu-me: "Não tem nada que se justificar, meu filho". Estive lendo o processo da sua mãe. O senhor não lhe podia suportar as despesas. Ela precisava de uma enfermeira. O seu ordenado é modesto. E, no fim das contas, aqui ela era feliz. Disse: "Sim Sr. Diretor". Acrescentou: "Sabe o senhor, aqui ela tinha amigos, pessoas da mesma idade". Partilhava com eles motivos de interesse que são de um outro tempo. "O Senhor é novo, e ao pé de si, ela aborrecia-se com certeza". Era verdade. Quando estava lá em casa a mãe passava o tempo a seguir-me em silêncio com os olhos. Nos primeiros dias do asilo, chorava muitas vezes: Mas era por causa do hábito. Ao fim de alguns meses, choraria se a tirassem do asilo, ainda devido ao hábito. Foi um pouco por isto que, no último ano quase não a fui visitar, E também porque a visita me tomava o domingo todo sem contar o esforço para ir para o autocarro comprar os bilhetes e fazer duas horas de viagem. O diretor disse-me ainda mais coisas. Mas já quase não o ouvia. Em seguida perguntou-me: "Julgo que agora, quer ir ver a sua mãe?". Levantei-me sem dizer nada e acompanhei-o até à porta. Nas escadas, explicou-me: "Levamo-la para a nossa morgue particular. Para não impressionar os outros. Cada vez que algum morre, os outros ficam nervosos durante dois ou três dias, o que torna o serviço difícil". Atravessamos um pátio onde havia muitos velhos, conversando em grupos, uns com os outros. Ao passarmos, calavam-se. 5 E atrás de nós as conversas recomeçavam. Dir-se-ia um papaguear atordoado de periquitos. À porta de uma pequena construção, o diretor deixou-me. "Deixo-o agora, senhor Meursault". Estou às ordens, no escritório. Em princípio, o enterro estava marcado para as dez horas da manhã. Pensamos que o Senhor podia assim passar a noite a velar. Uma última coisa: parece que a sua mãe exprimiu várias vezes aos amigos o desejo de ter um enterro religioso. -Tomei à minha conta este encargo. Mas queria pô-lo a par. Agradeci-lhe. Embora sem ser atéia, enquanto viva a mãe nunca pensara na religião: Entrei: Era uma sala muito clara, caiada, e coberta por uma vidraça. Mobiliavam-na algumas cadeiras e cavaletes em forma de X. Dois deles, ao meio da sala, suportavam um caixão coberto. Viam-se apenas parafusos brilhantes, mal enterrados, destacando-se da madeira pintada de casca de noz. Perto do caixão estava uma enfermeira árabe, de bata branca, com um lenço colorido na cabeça. Neste momento, o porteiro entrou por detrás de mim. Devia ter corrido: Gaguejou. "Fecharam-no, mas eu vou desparafusá-lo, para que o senhor a possa ver". Aproximava-se do caixão, quando eu o detive. Disse-me: "Não quer?" Respondi: "Não". Calou-se e eu estava embaraçado porque sentia que não devia ter dito isto. Ao fim de uns momentos, ele olhou-me e perguntou: "Por quê?", mas sem um ar de censura, como se pedisse uma informação. Eu disse: "Não sei". Então, retorcendo os bigodes brancos, declarou sem olhar para mim: "Compreendo". O homem tinha uns bonitos olhos azuis claros e uma pele um pouco avermelhada. Deu-me uma cadeira e sentou-se também, um pouco atrás de mim. A enfermeira levantouse e dirigiu-se para a porta. Neste momento, o porteiro disse-me: "O que ela tem, é um cancro". Não percebi o que ele dizia, até reparar que a enfermeira trazia por debaixo dos olhos uma ligadura que dava a volta à cabeça. No sítio do nariz, não se via nenhuma saliência. Apenas a brancura do penso, sobre a cara.