Lavagem de Dinheiro e Crime Organizado: diálogos entre Brasil e Portugal - Money Laundering and Organized Crime: dialogue between Brazil and Portugal (original) (raw)

É com inconteste satisfação que descortino à apreciação da comunidade jurídica o livro “Lavagem de Dinheiro e Crime Organizado: diálogos entre Brasil e Portugal”, da autoria dos Professores Fillipe Azevedo Rodrigues e Liliana Bastos Pereira Santo de Azevedo Rodrigues. Cuida-se de uma instigante seleta de capítulos envoltos na temática expressa no título, extraídos das reflexões dos autores, postos sob o crivo do direito nacional dos autores, valendo aqui lembrar que o Professor Fillipe é brasileiro e a Professora Liliana é lusitana; ele graduou-se em Direito em Natal-RN, onde também cursou o Mestrado na UFRN (e foi meu destacado aluno) e ela é graduada e mestra em Ciências Jurídico-Empresariais pela Universidade Portucalense Infante Dom Henrique. Ambos, pelo viés da pesquisa, estão unidos no doutoramento em Ciências Jurídico-Criminais, nos domínios acadêmicos da vetusta Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Assim, a ótica do brasileiro oferecida ao contraponto da pesquisadora portuguesa celebra um amálgama da melhor qualidade, produzido a partir de componentes essenciais a essa rama do Direito Penal que se ocupa da criminalidade organizada e, notadamente, de uma das suas mais repetidas manifestações, a lavagem de valores e capitais. A opção pela comparação entre dois microssistemas sediados em países que sustentam ligações históricas e culturais, de inegável utilidade para ambos, passa ao largo da discussão acadêmica negativista encetada por Harold Cooke Gutteridge ou da intransigente defesa da cientificidade desse paralelismo formulada por Felipe de Solá Cañizares. Não cuidaram os autores da presente obra desse viés. Ingressaram sim, com afinco, na análise dos institutos e do material legislativo eleitos para objeto do livro. No exórdio, os autores cuidam das dificuldades na eleição do bem jurí- dico tutelado no âmbito do microssistema penal que trata do branqueamento de capitais, bem assim do estágio de perplexidade dos dois modelos penais – o brasileiro e o ultramarino – quanto a esse objeto da tutela, concluindo pela fragilidade dos elementos teóricos que dão suporte à política criminal da área. Criticam, com razão, as três principais correntes que orientam o assunto: a proteção da ordem econômica; ou da administração da justiça; ou a híbrida, que ajunta as duas primeiras. Adiante, versando sobre o fenômeno da criminalidade organizada no Brasil e em Portugal, expõem uma seleta de questões de fundo e de forma que conduzem a essa lamentável cifra da vida em sociedade cotidiana. Reportam a evolução legislativa específica do tema, a partir de diplomas genéricos (Código Penal e Código de Processo Penal) até as manifestações legislativas mais específicas – e nem por isso mesmo perfeitas – como as leis de combate ao crime organizado e o decreto que internaliza a Convenção de Palermo no nível infraconstitucional do Brasil. No âmbito português, analisam a mesma inclinação da política criminal no afã de debelar o crime organizado, a partir da Constituição daquele país, que reservou para o seu texto a tarefa de dar sede elevada à chamada “criminalidade altamente organizada”, ao tempo em que relativiza a inviolabilidade de domicílio, mediante autorização judicial para os casos em que presentes indícios dessa prática, incluindo o terrorismo, o tráfico de pessoas, de armas e de estupefacientes. Em outra passagem – destacam os autores – a Carta Política prevê exce- ção ao funcionamento do tribunal do júri para os casos dessa criminalidade estruturada, emparelhando-a ao terrorismo. No campo infraconstitucional, o tema obteve a ocupação do Código Penal (o vigente e o revogado) e do Código de Processo Penal, bem como das Leis 36/94, 101/2001 e 5/2002. Nesse mesmo capítulo imediatamente acima referenciado, os autores depõem críticas aos arreganhos do Estado – o daqui e o de lá – na busca da prova para a incriminação de quem é acusado por crime organizado. Diz-se, notadamente, das formas dissimuladas para a obtenção dos elementos probantes, tão ao sabor do modelo inquisitorial hipertrofiado, tachando-os de “meios enganosos de obtenção de prova” ou, na linha de Manuel da Costa Andrade, “métodos ocultos de investigação”. Obviamente que isso não se compatibiliza com as mais comezinhas noções de um Direito Penal de índole liberal; pelo inverso, caminha na rota do Direito Penal do Inimigo, objeto de preocupação de Günther Jakobs e Manuel Cancio Meliá, “cujos métodos de repressão são mais gravosos às liberdades individuais”, dizem os escribas. Em tópico da maior relevância, estudam qual é o papel do Estado regulador (definindo-o à satisfação), na intervenção para conter e debelar a lavagem de ativos e valores, indicando, já no princípio da focagem, a descrença na maximização dessa interferência veiculada por um Direito Penal ampliado e ampliativo, assegurando que não é “através de normas penais cada vez mais restritivas, com molduras penais mais elevadas e consequentemente maior privação de liberdade, que se vai obter alguma eficácia na preven- ção geral do problema”. Ao seguir, trazem de forma didática – e profunda – o esboço de uma definição (que entendo ser mais uma conceituação...) do fenômeno criminal do disfarce de capitais de origem criminosa, a partir do histórico da expressão, originariamente vinculada ao ramo empresarial escolhido (laundering), nos anos trintas do século vinte, para dar liceidade a valores apurados em outras atividades criminosas. Nesse ponto os autores voltam à carga a propósito das agruras para a qualificação do bem jurídico no delito de lavagem de valores, delineando o ingresso no tema maior do capítulo, que é a busca pela compreensão, quantum satis, da função do Estado regulador em um quadro em que inegavelmente é ampla a criminalidade econômica através do branqueamento de capitais, destacando que o agir estatal pode ocorrer de forma direta ou indireta, sendo aquela operada através de entes oficiais que controlam os respectivos meios e a última através da produção de normas que afetam o âmbito de atuação dos agentes econômicos, no particular esteados nas ideias de Denise Hammerschmidt e de João Nuno Calvão da Silva. No foco legal, aplicam detalhada análise sobre a Lei 25, de 5 de junho de 2008, portuguesa, que segue a direção indicada pelo Conselho e pelo Parlamento Europeu. Essa abordagem perpassa o espectro de aplicação do mencionado diploma e as obrigações demarcadas às entidades encarregadas do acompanhamento das movimentações financeiras (dever de abstenção, dever de colaboração, dever de segredo, dever de controle e dever de forma- ção), concluindo pela delimitação do papel do Estado-controlador (é dizer, o exercente das prerrogativas e deveres de um Direito Administrativo Sancionador, “quase penal”), estremando a missão desse para poder dar espaço ao Direito Penal clássico, ainda que especializado. Posto assim, em linhas gerais, o conteúdo do livro que ora se apresenta não somente orna o acervo bibliográfico temático acerca de lavagem de dinheiro e criminalidade organizada, como estimula o necessário colóquio entre sistemas penais diversos, inclusive intercontinentais, advindo elogiável contributo para o confronto de ideias que contribuem para o enfrentamento dessas duas preocupantes ocorrências ilícitas, cada vez mais presentes nas relações interpessoais e empresariais atuais.