CARTOGRAFIAS RETROPROSPECTIVAS 3 1 DEFINITIVO (original) (raw)
Quando um(a) narrador(a) expõe suas dúvidas no decorrer da narrativa ampliam-se as possibilidades para transferências intersubjetivas entre ele e o(a) leitor(a). As dúvidas, ao serem replicada no(a) leitor(a), tornam-se signo de cumplicidade — e o(a) leitor(a) torna-se o(a) Doppelgänger do(a) narrador(a). Esse diálogo intersubjetivo multiplica as possibilidades já oferecidas pela leitura. Às dúvidas do(a) narrador(a) somar-se-ão outras, próprias do(a) leitor(a). O(A) leitor(a) toma como sua a tarefa de preencher lacunas deixadas pelos significantes, cujos significados são oscilantes e cambiáveis, e desenvolve suas próprias especulações. Tudo parece situado num " entre-lugar " : os fatos, os personagens envolvidos, o(a) autor(a)/narrador(a), o(a) próprio(a) leitor(a). Ele(a) joga sua rede conceitual sobre os dados de um " modelo original " 1 para compor a imagética de sua interpretação e seleciona dados da narrativa regido por afetividades, preferências, identificações, e acrescenta outros, extra narrativos. Ler é participar, criar em conjunto. É recontar para si mesmo — e também para um outro e tantos mais —, num processo subjetivo de reordenações de seleções e adições. É construir uma " hiper-estruturação " 2 narrativa. Pierre Boulez traduz essa " hiper-estruturação " de duas maneiras em sua música: a espiral e o puzzle [ou o " caminho das palavras cruzadas " ]. Ambas são formas tanto finitas quanto infinitas: a finitude está sujeita tanto à decisão de interromper o traçado da linha quanto à de não mais recombinar palavras ou elementos. As instalações da artista Inés Lombardi são exemplares dessas estratégias de narração e composição. Lombardi experimenta com as dúvidas inerente aos " entre-lugares " a fim de nos sugerir trajetórias inesperadas. A forma temporal da espiral é combinada à forma espacial do puzzle — cartografia de linhas espiraladas traçadas sobre o plano movente de um puzzle e/ou puzzle de um atlas que se ajusta as curvas de uma espiral. São como sinfonias visuais complexas compostas no espaço expositivo. " É fácil trocar as palavras, Difícil é interpretar os silêncios! É fácil caminhar lado a lado, Difícil é saber como se encontrar! " Fernando Pessoa, 1930. Na partitura espaço-temporal composta pela artista tudo parece estar sob efeitos variados da paralaxe — tanto o deslocamento real do ponto de vista do(a) espectador(a) opera um deslocamento aparente no objeto, como o deslocamento do ponto vista da representação do objeto opera um deslocamento na subjetividade do(a) espectador(a). O(A) observador(a) se desloca de sua posição de fruição para perceber a si mesmo nos espaços da representação; o espaço da representação se desloca no tempo para ilustrar a posição paradoxal em que " o passado coexiste com o presente do qual ele é passado " 3. Todo o espaço parece mover-se em velocidade infinita no tempo subjetivo da percepção. Lombardi constrói um jogo de " ressonâncias visuais " com acessos múltiplos. As imagens se dobram e se desdobram entre os espaços da apresentabilidade e da representatividade. Distribuídas entre suportes variados de transparências, reflexões e opacidades, elas fazem " o antes e o depois entrarem na própria imagem presente " 4 expondo os paradoxos das simultaneidades dos tempos. " Só executava a invenção de se permanecer naqueles espaços do rio, de meio a meio, sempre dentro da canoa, para dela não saltar, nunca mais. A estranheza dessa verdade deu para estarrecer de todo a gente. Aquilo que não havia, acontecia. " Guimarães Rosa, A terceira margem do rio, 1954. Antes que se iniciasse a era das selfies, ainda nos tempos da fotografia analógica, Lombardi começa a dialetizar a questão da apresentabilidade daquilo que se autorrepresenta. Imagens se auto documentam num esforço constante de historicizar uma identidade num mundo onde as identidades são fluidas e fragmentadas. O resultado são jogos de reversibilidade entre " lá onde era e aqui onde é " , como bem coloca Jan Avgikos 5 , e finda por espelhar a própria fluidez e fragmentação da identidade que se quer preservar. O que resta de opaco nos " entre-lugares " da subjetividade é o próprio desejo, novamente Avgikos: " If Lombardi's art can be seen as a staging ground psychological gamesmanship, it is fruitful to acknowledge that in her work we see reflected our own desire to find form and that at the threshold of there where it was and here where it is, we represent and engage that need. " 6