A imagem do kinaidos no "Górgias" de Platão (original) (raw)
Na parte final do Górgias, Sócrates usa um exemplo para tentar embaraçar Cálicles e, com isso, confrontar sua posição hedonista. O termo kinaidos pode causar certo constrangimento nos tradutores, intérpretes e leitores contemporâneos do diálogo – a expressão é traduzida, em edições em português, como “devasso” e até mesmo “veado”. Sócrates sugere que, se aceitarmos a identificação entre bem e prazer, seria preciso admitir que a vida do kinaidos é a vida de uma pessoa feliz. Mas o que exatamente é a vida do kinaidos? Por que ela não pode ser o exemplo de uma vida feliz? Ainda que a imagem seja rapidamente abandonada, o artifício argumentativo de Sócrates mostra-se decisivo para o desenrolar da discussão do Górgias. Portanto, enquanto essas perguntas não forem adequadamente respondidas, o argumento de Sócrates permanecerá parcialmente ininteligível. Inicio o presente artigo tentando demonstrar a importância do kinaidos como exemplo culminante em um processo de refutação por imagens desencadeado por Sócrates. Em seguida, analiso o estado da questão e demonstro por que os estudos do nível de importância de Charles Kahn, Kenneth Dover e John Winkler ainda não foram capazes de contemplar todos os aspectos do emprego desta imagem no Górgias. Por fim, tento propor uma interpretação segundo a qual a menção ao kinaidos seria uma resposta de Platão contra teses anti-intelectualistas em voga, tal qual a presente na Antíope de Eurípides. Essa resposta, por sua vez, cumpre papel crucial no projeto platônico de legitimar e delimitar a filosofia contra a prática da retórica.