O Tecelão dos Tempos: o historiador como artesão das temporalidades (original) (raw)

Um galo sozinho não tece uma manhã: ele precisará sempre de outros galos. De um que apanhe este grito que ele e o lance a outro; de outro galo que apanhe o grito que um galo antes e o lance a outro; e de outros galos que com muitos outros galos se cruzem os fios de sol de seus gritos de galo, para que a manhã, desde uma teia tênue, se vá tecendo, entre todos os galos". (Tecendo a manhã, João Cabral de Melo Neto) 1 Michel de Certeau 2 pergunta: o que fabrica o historiador quando faz história? Querendo com isto ressaltar que o que faz o historiador é um trabalho; um trabalho de fabricação de uma narrativa, de um artefato escriturístico; um trabalho de fabricação dos acontecimentos do passado. Querendo com isto dizer que a historiografia é produto de uma operação, de uma atividade de atribuição de sentido aos eventos. A historiografia seria uma maquinaria narrativa que usinaria o passado, buscando dar forma à mecânica que azeitaria os processos que se desenrolaram em dado tempo e espaço. Karl Marx 3 , muito antes de Certeau, já havia falado do motor da história, da mecânica social, da qual caberia ao historiador, usando como instrumento o materialismo histórico, desvendar, enunciar, fazer aparecer em suas engrenagens mais sutis. Embora tenham escrito seus textos em séculos distintos, Marx e Certeau parecem partilhar algumas metáforas, alguns topos lingüísticos, algumas imagens-símbolo da sociedade moderna, da 1 MELO NETO, João Cabral de. Poesia Completa. foram, os veste de novo para um ato inaugural, os fazem novamente vir para o centro da sala, para a frente do cortejo, os fazem levantar a fronte e novamente falarem, vociferarem, imprecarem, readquirindo o direito a fala e a dirigir seu próprio enterro, a simularem o controle sobre a versão de sua própria vida, da sua própria memória. A carpintaria do passado, portanto, é obra do historiador, ele é o carpina que de posse dos escombros que o passado deixou, os submete a um trabalho de corte, de rejuntamento, de limagem, de aparas, de encaixe e aprumo que os põem novamente para funcionarem como acesso ao que foi, como porta ou janela por onde podemos espiar ou adentrar a dramaturgia dos tempos idos. O historiador é um padeiro que faz, com aparas das atitudes, dos costumes, das ações das massas, fermentar novas imagens dos tempos, que servem de alimento para nossos sonhos de continuidade, para nossa fome de identidade, para nossa inanição de sentidos para vida, para o estarmos aqui na terra, para a nossa existência finita e ilimitada. A história pode ser delicioso pão que alimenta nossas vaidades, nossa onipotência, nossos preconceitos, que explica e justifica nossas desigualdades e diferenças, mas pode ser também o licor amargo que tragamos para nos darmos conta de nossas veleidades, de nossos crimes, de nossas injustiças, de nossas ignomínias, de tudo que nos amarga a existência individual e coletiva. Historiador, o cozinheiro do tempo, aquele que traz para nossos lábios a possibilidade de experimentarmos, mesmo que diferencialmente, os sabores, saberes e odores de outras gentes, de outros lugares, de outras formas de vida social e cultural. "Sempre o pirão de farinha da história" 13 . Farinha moída pelos moinhos do tempo, grãos minúsculos de tempos que podem vir a fazer liga, podem vir a se espessarem, a engrolarem, a se escaldarem, sob a atividade concentrada, vigorosa, da pá do historiador. Pá feita de letras, habilidade narrativa, vórtice da linguagem a tragar, misturar e conectar todos estes grãos de tempo, linguagem a produzir a transubstanciação dos elementos que captura, experiências humanas reexperimentadas, provas novamente provadas, o estranho que se encontra, o sentido que se transporta, metáforas a fazer o trânsito entre o indizível e o dizível, o ontem e o hoje, o assignificante e o significado, o reaquecer do esquecido dando novamente caldo, fazendo vir a tona, emergir, borbulhar depósitos de tempo, camadas de acontecimentos que sedimentadas, que adormecidas no fundo do caldeirão da história, voltam novamente a circularem, a exalarem sentidos e valores, projetos e desejos, voltam a ser o prato do dia. 13 Referência a trecho da música O Fim da História (Gilberto Gil, Parabolicamará, Wea, 1991).