'Sob esta ruína edificai os vossos reinos': A identidade étnica dos vândalos sob um prisma da historiografia dos séculos V e VI (original) (raw)

Quando, em meados do século XIV, a peste invadiu a Europa, a primeira reação foi de fuga: fuga rápida, para o mais distante possível, sem pressa em regressar, tal como, quase dois mil anos antes, havia aconselhado Hipócrates. Sem reconhecer diferenças sociais, a peste tanto podia dizimar criados quanto reis, como demonstra o caso de D. Duarte, que, em 1438, fugindo da peste de Lisboa, procurou refúgio em Évora, Avis e Ponte de Sor, acabando por sucumbir à doença que o foi encontrar em Tomar (Tavares 1987, 17-32). Fenómenos disruptivos do quotidiano dos locais afetados, às vezes por longos períodos de tempo (Bourdelais 2003, 27-28), as epidemias, potenciadas pelas migrações (Biraben 1975, 262-286), eram um sorvedouro de vidas humanas, pondo em causa a integridade territorial dos estados, tornando-se, também por isso, uma das principais preocupações dos poderes centrais. Tendo identificado o problema, as cidades do Mediterrâneo, da Croácia e da Itália, foram as primeiras a encontrar soluções de combate e prevenção, pouco depois tomadas como modelo pelos restantes estados da Europa (Cipolla 1979; Tomic e Blažina 2015). Ao menor rebate de peste na vizinhança, termo que podia referenciar várias outras doenças, encerravam-se as portas das urbes, defendidas por homens armados, que exigiam a quem queria entrar a apresentação de uma prova escrita (carta de saúde)1 atestando que não tivera contacto com a moléstia. No caso de a doença já se ter instalado, colocavam-se bandeiras brancas nas muralhas e implementava-se uma série de medidas sanitárias tendentes a minorar o risco de contágio: embora desconhecendo a etiologia da doença, a consciência do seu carácter contagioso levava as autoridades a rapidamente assumir o isolamento e a desinfeção como o método mais eficaz de controlar a expansão das epidemias (Slack 1985).2 3Foi esta forma de proteção das cidades, assente nas quarentenas, lazaretos e cordões sanitários, que se aplicou às fronteiras, terrestres e marítimas. A defesa das fronteiras contra a invasão de um inimigo (a doença e o seu portador) que poderia pôr em causa não só a economia e a sociedade como a segurança nacional torna-se uma preocupação central para os governos, que para ela convocam, ainda que em diferentes escalas, um conjunto diversificado de instituições. No século XIX, a cólera viria questionar a utilidade dos meios de proteção tradicionais revelados impotentes perante as características da nova doença (Baldwin 1999) e o facto de as grandes potências começarem a pensar a Europa Ocidental como um espaço aberto, sem obstáculos condicionantes da livre circulação (Harrison 2013). 4É neste enquadramento que se posiciona este texto, cujo principal objetivo é perscrutar as políticas do liberalismo português em relação às epidemias. Para as contextualizar num tempo mais longo, começa-se por apresentar os quadros normativos e legislativos que organizaram este campo durante a época moderna. A posição geográfica do país, e, de forma particular, Lisboa, capital e principal cidade portuária, deixava-o demasiado exposto às dinâmicas do comércio marítimo; dada esta circunstância, foi, precisamente, na fronteira marítima que a coroa concentrou esforços, seguindo, de resto, os estados com idênticas condições morfológicas. No segundo ponto, acompanhar-se-á o alargamento da intervenção à fronteira terrestre com a implementação dos que terão sido os primeiros cordões sanitários militarizados (em 1800 e 1804), com o propósito de limitar a circulação de homens e de mercadorias entre Espanha e Portugal. Seguidamente, ver-se-á como, indiferente aos protestos e ameaças de desordem social, a Monarquia Constitucional persistiu nas quarentenas e nos cordões sanitários como a melhor forma de defender o país dos ataques epidémicos, facto que se demonstrará especialmente na secção 4, através da reconstituição do cordão sanitário de 1885, cordão que se procurará explicar à luz da realidade social e sanitária do país.