DIREITO PENAL LÍQUIDO (original) (raw)
A estabilidade de conceitos e a previsibilidade da atuação do poder punitivo sempre foram declaradamente uma das principais demandas do Direito Penal como instrumento do controle do ius puniendi. De fato, a modernidade penal se caracterizou pela construção de um Direito Penal liberal marcadamente limitador do poder de punir que elevou o princípio da legalidade ao grande estruturador do Direito Penal. Assim, além de prévia e escrita, noções da legalidade que garantem que a lei penal é construída segundo limites formais bem claros, existe a demanda de clareza e de interpretação estrita de forma a garantir que o alcance do poder punitivo seja razoavelmente previsível. Entretanto, seguindo uma linha claramente ativista especialmente por parte de tribunais superiores, a jurisprudência penal tem determinado limites muito mais largos à lei. As dificuldades produzidas por uma hermenêutica ampliativa hoje ultrapassam em muito os elementos normativos dos tipos legais e alcançam figuras da lei que sempre gozaram de certa estabilidade determinada por fronteiras interpretativas bastante definidas. Independentemente das razões que levam esse exercício a tomar forma, os exemplos são vários, mas dentre eles salta aos olhos a figura do "trânsito em julgado" do HC 126.292. O presente trabalho tenta buscar uma explicação sociológica para o fenômeno na obra do sociólogo polonês Zygmunt BAUMAN, para quem "liquidez", ou simplesmente 'líquido', é um termo que traduz, em si próprio, todo um entendimento acerca da sociedade atual. Para o autor, a concretude intentada pelo ideal da modernidade não se faz presente no cenário atual. Essa solidez é apenas aparente. O sociólogo voltou o seu olhar para diversos temas: o amor, a felicidade, o medo, as relações humanas, a comunidade, a globalização, a segurança e até mesmo a própria modernidade. Em todas essas noções, notou a ausência de um basilar definidor de seus conteúdos. Talvez por conta disso, as promessas da modernidade jamais chegaram a se cumprir, de modo que desde antes de adotar o termo pelo qual recebeu notoriedade, Bauman já fazia críticas contra o termo 'pós-modernidade' justamente diante da constatação de não poder se falar em superação de algo que não foi. É diante disso que o sociólogo estabelece a noção de 'líquido': não há uma concretude nas coisas, nas relações, nas noções, nas compreensões, pois tudo se liquidifica e nada se mantém de modo firme, sólido, concreto. Diante da constatação de diversos fatores, internos e externos às comunidades (sociedades regionalizadas por países), os resultados observáveis se dão num conjunto de elementos que desestruturam toda e qualquer uniformidade no campo conceitual, ensejando em consequências práticas para o indivíduo, tais como a própria exclusão social. A liquidez, portanto, é o conceito dado a essa visão sobre as coisas presentes na modernidade atual-líquida-, que não possuem um firmamento estabelecido que possibilite se falar em uma identidade concreta das coisas. É a partir dessa noção criada por Bauman que se presente dizer que também pode se falar num Direito Penal Líquido ao considerar o estado de coisas atual em que se situa o cenário jurídico brasileiro. De fato, a noção baumaniana de liquidez parece explicar a atuação de um Judiciário que faz pouco caso da Constituição brasileira, com magistrados que julgam construindo conceitos ou revisitando certezas segundo suas próprias interpretações e convicções. Nesse exercício perigoso, rompem-se os limites possíveis da interpretação, ignoram-se finalidades de institutos jurídicos para se reinterpretarem-nos segundo demandas éticas e morais alheias ao próprio texto constitucional. Como movimento jurídico, a escola positivista, em suas várias vertentes, buscou resolver um problema similar, caracterizado pelo fato de que juízes julgavam conforme suas próprias consciências e independentemente de limites claros, por meio da criação de elementos jurídicos que visavam estabelecer limites e conter o arbítrio decisionista. Daí o império da legalidade, que é especialmente importante no plano penalpara oferecer a previsibilidade do poder punitivo. Mas essa solução, além de criticável porque exageradamente limitadora da atuação jurisdicional, é uma solução histórica que parece não mais oferecer a solução para o problema de uma sociedade liquefeita:de fato, a legalidade parece ser uma solução moderna para um problema pós-moderno determinado pela instabilidade não apenas normativa, mas sócio-cultural constituída na liquidez baumaniana. De fato, a formulação de conceitos e estabelecimento de significados sobre os elementos jurídicos cai por terra quando se interpreta a norma de modo desarrazoado, bastando uma decisão judicial equivocada para que a instabilidade se produza. O pretensamente sólido, se liquefaz diante da jurisdição pós-moderna. É nesse sentido que se questiona se se pode falar num Direito Penal líquido ao considerar o estado de coisas atual, tratando-se tal indagação do problema do presente trabalho. A justificativa temática se dá no sentido da preocupação existente, presente em toda a comunidade jurídica, com relação a sensação de incerteza sobre o próprio Direito, mas especialmente no Direito Penal, uma vez que na prática jurisdicional pode-se tudo, por mais que não se possa. Para buscar analisar essa hipótese –a do Direito Penal líquido-, serão analisados alguns casos paradigmáticos onde essa virada interpretativa aconteceu, ou onde ocorrem a todo instante. Para tanto, a forma de assim se proceder se dará numa pesquisa por amostragem de questões incômodas que passaram pelo crivo do Judiciário nesses últimos anos, dentre os quais o caso da ‘presunção de inocência’ –onde o Supremo Tribunal Federal ressignificou o conceito constitucional de ‘trânsito em julgado’, o da ‘ordem pública’ enquanto fundamento da prisão preventiva no processo penal –que recebeu significados próprios a cada caso e acabam desvirtuando a finalidade do instituto da prisão cautelar, e o do instituto do indulto que sofreu controvérsias acerca da possibilidade de contemplação de determinados casos enquadrados pelo decreto que o estabelece. Desta forma, diante da análise do estado de coisas atual no cenário jurídico e a forma como a qual o Poder Judiciário vem agindo nos últimos anos, avançando cada vez mais para além das suas atribuições, entende-se que hoje se tem uma espécie de Direito Líquido ao considerar que não há mais uma coerência ou uniformidade de identidade dos institutos jurídicos, pois sujeitos estão ao decisionismo judicial.