Pandemia e o negacionismo nosso de cada dia (original) (raw)

2020, Pandemia e pandemônio: ensaios sobre biopolítica no Brasil

Certa vez, nos idos tempos da minha graduação em Filosofia, um professor muito estimado contou a seguinte história acerca da importância e do problema da inutilidade da Filosofia e do filósofo: "todos sabem da importância do piloto de avião. Se ele erra em seu ofício, é um grande problema! O avião cai e pessoas morrem. O mesmo ocorre com o neurocirurgião. Se ele comete um erro, o paciente pode morrer ou ficar com sequelas terríveis. E o filósofo? Se ele erra em seu ofício, o que ocorre? Não há mortos, não há comoção e é bem provável, aliás, que ninguém perceba ou se chateie. Nada mais inofensivo do que errar a interpretação de um poema ou um texto filosófico. Entretanto, o que ocorre depois de duzentos ou trezentos anos de má interpretação e leituras equivocadas? O fundamental do texto é perdido. Não porque suas linhas foram esquecidas, já que ele pode continuar sendo recitado com frequência e, até mesmo, se tornar um lugar-comum. Ele é perdido porque o que há de fundamental nele se tornou inacessível, obliterando-se toda a compreensão de mundo que há em jogo nele. Duzentos anos de má interpretação e toda uma possibilidade de interpretação de mundo e de realidade se perde. Mas não só isso. A má interpretação sempre é acompanhada por justificativas e reelaborações que buscam perpetuar sua leitura de mundo até, por fim, sufocar e enterrar definitivamente toda possibilidade de acesso à compreensão de mundo anterior. Essas reelaborações confundem-se com a própria história da filosofia e elas acontecem de tal modo que o que hoje compreendemos como mundo ou realidade não passa de um apinhado de más interpretações. O filósofo, ao errar, não mata pessoas como o cirurgião ou o piloto, ele mata o mundo".