Frei José de Santa Cecília: um estudo da atividade musical do religioso sancristovense a partir de fontes hemerográficas e documentais. (original) (raw)
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O arquivo musical do compositor Florêncio José Ferreira Coutinho (Vila Rica, c.1750-1819), algum tempo antes de seu falecimento, foi transferido, em circunstâncias ainda ignoradas, ao jovem colega de profissão João José de Araújo (Vila Rica, c.1780-1831). Após sua morte, a inventariante de Florêncio questionou o direito de posse do arquivo por parte de Araújo, o qual, para garantir a guarda dos papéis, processou judicialmente as herdeiras de Florêncio (suas filhas naturais), por meio de um libelo cível no Cartório de Órfãos do Segundo Ofício de Vila Rica, que se estendeu por 17 meses, entre 1820 e 1821. Durante esse processo, o Juiz determinou que o arquivo de Florêncio, em posse de João José de Araújo, fosse depositado em juízo para exame, mandando elaborar uma relação intitulada “Termo de Deposito da Solfa”, que contém a primeira descrição do seu conteúdo. A descrição mais precisa, no entanto, surgiu na “Lista Geral das Músicas do falecido Florêncio José Ferreira Coutinho que me mandou trazer Micaela dos Anjos por Manoel Antônio do Sacramento”, assinada por João José de Araújo e anexada ao processo em 8 de janeiro de 1821. Este trabalho propõe um tipo de análise - aqui denominada paleoarquivística - para as informações que aparecem nas descrições de 1820 e 1821, análise essa que parte do conceito de cripto-história da arte, formulado pelo historiador português Vítor Serrão em 2001. Assim como a cripto-história da arte é o estudo do patrimônio artístico desaparecido, porém descrito em inventários, plantas, desenhos preparatórios, registros de laboratório, fotografias de obras alteradas, fragmentos, etc., a paleoarquivologia musical pode designar o estudo das características e da configuração de antigos acervos musicais, com base em informações, relatos e descrições que dos mesmos nos chegaram, independente de terem sido esses arquivos totalmente, parcialmente ou nulamente preservados. Na análise paleoarquivística das descrições do arquivo musical de Florêncio José Ferreira Coutinho será considerado o maior número possível de elementos documentais, para se procurar neles significados nem sempre aparentes, bem como relacioná-los aos aspectos históricos e musicológicos que envolvem os autores e proprietários das obras nelas referidas.
A execução de música polifônica dependeu, no Brasil e em várias regiões européias, da existência de conjuntos musicais que prestassem seus serviços a alguma instituição de caráter ou finalidade religiosa. Em matrizes e catedrais brasileiras, os conjuntos eram arregimentados pelos próprios mestres de capela, mas as irmandades, ordens terceiras e mesmo as câmaras de vilas e cidades ajustavam a música com um determinado mestre ou “professor da arte da música”, que deveria se responsabilizar pelos músicos e discípulos a seu serviço. No século XVII, os conjuntos dos quais se tem notícia, em São Paulo, atuaram, basicamente, em matrizes. Na primeira metade do século XVIII, em São Paulo e Minas Gerais, verifica-se a existência de conjuntos trabalhando em matrizes e em capelas de irmandades e ordens terceiras, enquanto, a partir da segunda metade do século XVIII, passaram a ser observados também em catedrais. Na Capitania de São Vicente, de acordo com os inventários e testamentos paulistas, o canto de órgão começava a ser praticado nas cerimônias fúnebres a partir de 1654, por um grupo dirigido pelo mestre de capela, que também poderia empregar dois instrumentos para o acompanhamento: a harpa e o baixão (precursor do fagote). Até inícios do século XVIII, as vilas que dispusessem de um mestre de capela não teriam mais de um conjunto musical, enquanto nas vilas onde não existisse o mestre seria muito difícil encontrar um grupo dessa natureza. Inicialmente, esses conjuntos foram constituídos por discípulos, amigos e parentes que, muitas vezes, nem pagamento recebiam por sua participação.
A Coleção Eclesiástica, do Arquivo Nacional, é constituída de vários fundos, que possuem em comum a característica de conterem documentação sobre a atividade eclesiástica brasileira. Essa coleção começou a ser catalogada na década de 1910 e o trabalho estendeu-se pelas décadas seguintes, envolvendo várias equipes. O catálogo foi elaborado a partir do critério onomástico, registrando-se em uma ficha cada nome mencionado em cada documento, com a indicação de seu código. A evolução da caligrafia e mesmo dos tipos datilográficos utilizados em tais fichas sugere que o trabalho estendeu-se até por volta da década de 1960. Infelizmente, muitos dos códigos originalmente atribuídos aos documentos da Coleção Eclesiástica foram alterados e às vezes sua localização não é uma tarefa simples. Por essa razão, é importante considerar que nem todos os códigos aqui citados podem ser atuais, necessitando serem conferidos nas tabelas de equivalência e mesmo diretamente nos pacotes do Arquivo Nacional para sua localização. Nesta pesquisa foram integralmente consultadas as cerca de 30.000 fichas, dispostas em oito gavetas do fichário F-73, com duas fileiras de fichas para cada gaveta, totalizando cerca de 11 metros lineares de fichas consultadas. O trabalho foi realizado com recursos próprios e sem financiamento específico em três visitas, nos meses de abril, maio e julho de 2004, totalizando cerca de 80 horas de trabalho em 10 dias. Foram registradas, de forma resumida, somente as informações ligadas à prática musical referentes a cada nome registrado nas fichas, não sendo incluídas outras informações que não aquelas diretamente relacionadas à prática musical. Os códigos transcritos são exclusivamente aqueles que constam nas fichas, os quais necessitam ser previamente conferidos antes da consulta, pelas razões acima expostas. Terminada a transcrição, as informações foram digitadas e dispostas por catedral, em ordem alfabética de prenome. Estão aqui apresentadas, em forma de tabela, o assunto resumido de cada documento, seu código e as datas que constam na respectiva ficha. Tais datas ora referem-se especificamente ao documento em questão, ora ao grupo ao qual pertence o respectivo documento, sendo necessário sua consulta para se conhecer a data precisa. Não sendo este o objetivo do presente trabalho, as datas foram transcritas tal como encontradas nas fichas da Coleção Eclesiástica. A documentação contém grande quantidade de registros ligados à prática musical catedralícia brasileira, como petições ou nomeações de pessoas para cargos com funções musicais (chantres, mestres da capela, capelães, moços do coro, organistas e músicos), em um total de 586 itens, sendo 61% referentes à Catedral e Capela Imperial do Rio de Janeiro e 23% referentes à Catedral de São Paulo. Os restantes 16% referem-se às catedrais de Salvador, Olinda, São Luís, Belém, Mariana, Cuiabá e Goiás. Relacionando-se os dados obtidos às datas de criação das dioceses brasileiras que existiram até o final do século XIX, percebe-se que somente foi contemplada, na Coleção Eclesiástica, a prática musical referente às dioceses criadas até 1826 (item B). A grande maioria das informações presentes nessa coleção foi registrada no período imperial (1822-1889) e um único códice (n.455) contém registros do século XVIII (mais precisamente 1746 e 1747) referentes à prática musical. Não é totalmente clara a desproporção que existe na origem geográfica das informações, mas é preciso considerar que o Arquivo Nacional recebeu documentação principalmente ministerial, contendo informações sobre a atividade eclesiástica principalmente registradas em códices ou documentos enviados ao governo. São, portanto, incomuns, no Arquivo Nacional, os códices ou documentos estritamente eclesiásticos, já que estes são normalmente arquivados nas cúrias das respectivas dioceses. Assim, a pequena quantidade de informações encontradas na Coleção Eclesiástica sobre a prática musical em catedrais como as de São Luís, Belém, Mariana e Cuiabá não significa que a documentação arquivada nas cúrias de suas atuais arquidioceses não contenha um número bem mais expressivo de dados do que aquele que consta no Arquivo Nacional. Espera-se, portanto, que este trabalho possa estimular o desenvolvimento da pesquisa sobre a prática musical catedralícia brasileira, que até agora não foi suficientemente explorada, apesar de sua importância nos estudos sobre a música religiosa brasileira. Finalmente, é importante destacar que esta pesquisa foi estimulada pela tese de doutorado de André Cardoso (A Capela Imperial do Rio de Janeiro: 1808-1889. Rio de Janeiro, Uni-Rio, 2001. 329p.), principalmente baseada na documentação da Coleção Eclesiástica, mas também no próprio incentivo desse autor para o exame do fichário F-73 do Arquivo Nacional.
LaborHistórico
Este trabalho tem por objetivo trazer à luz a trajetória da atividade musical dentro do Seminário de Mariana. Em 2020 a instituição celebrou seus 270 anos de fundação e estabeleceu-se na história como uma das mais tradicionais e prestigiadas casas de formação para sacerdotes no país. Egressos do Seminário ocuparam cargos de destaque tanto na vida religiosa quanto secular e política não só em Minas Gerais, mas em todo o Brasil. Para melhor entender o desenvolvimento das atividades musicais dentro do Seminário, abordamos inicialmente a história da instituição desde a sua fundação ainda no século XVIII, continuando com uma análise do perfil dos alunos e do currículo oferecido até que a Música passasse de fato a fazer parte da formação musical dos futuros sacerdotes. A vida musical do Seminário até a década de 60 do século XX foi retratada através de relatos escritos, acervos e entrevistas, que corroboram a importância da vivência artística no processo de formação dos futuros líderes re...
2016
Evidências pós-tridentinas na prática musical bracarense nos Arcebispados de D. Frei Bartolomeu dos Mártires (1559-1582) e D. Frei Agostinho de Jesus (1588-1609) Elisa Lessa Universidade do Minho Introdução A acção dos arcebispos D. Frei Bartolomeu dos Mártires e D. Frei Agostinho de Jesus enquadra-se numa época de profundas transformações da vida da sociedade e da Igreja que então viveu uma das maiores crises da sua história. No domínio da música sacra, o século XVI observou, a nível europeu, a consolidação definitiva da polifonia vocal, que encontrou no género motete a sua forma de expressão, por excelência. Tal facto pôde tornar-se uma realidade, também graças ao desenvolvimento nas capelas eclesiásticas, enquanto instituições musicais das catedrais. As sessões do Concílio de Trento tiveram início em 1545 e em 1563 foram promulgadas várias determinações com a finalidade de uniformizar as práticas litúrgicas católicas. Embora, no que se refere à música, o Concílio de Trento conter apenas ideias genéricas, teve pelo menos uma determinação explícita na sessão celebrada a 17 de Setembro de 1562, proibindo a utilização da música que demonstrasse algo de "impuro e lascivo". O Rei de Portugal, D. João III, antes mesmo da realização do concílio tinha anunciado que " na execução do que o sagrado concílio determinar, hei eu de trabalhar por favorecer e ajudar com todas as minhas forças e de meus reinos." 1 No reinado de D. Sebastião, em conformidade com as determinações tridentinas, numa reacção da Igreja Católica ao movimento protestante alterando os dogmas da fé e exercendo o controlo social sobre as ideias e os costumes, a música sacra foi também alvo de decretos disciplinares. A existência da censura a textos de novos motetes, a proibição do canto polifónico e execução instrumental nos mosteiros femininos e a proibição do uso de instrumentos, com excepção dos instrumentos de tecla, foram algumas das decisões tomadas. O órgão tornou-se o instrumento privilegiado,
A escassez de fontes tem dificultado a investigação sobre o costume litúrgico e a tradição musical da catedral de Coimbra até às reformas tridentinas. A proximidade geográfica e as conexões institucionais apontam para uma convergência litúrgica com os usos de Braga. Isto não significava necessariamente uma completa identificação, i. é, não impedia que a catedral de Coimbra conhecesse particularidades rituais, verificáveis também no plano melódico. Só o estudo sistemático das fontes afectas ao costume conimbricense permitirá um panorama mais consistente sobre a concreta realidade cultural. Procuramos considerar um desses poucos manuscritos completos: o Processional P-Cug MM 220. Destinado a servir aos cantores nas procissões rituais, o códice recolhe alargado conjunto de melodias que possibilita, pela análise comparativa, mais elementos sobre os modelos de cantochão em uso na catedral.