Operari sequitur esse? Leonardo e as dinâmicas epistémicas na Europa dos séculos XV e XVI. (original) (raw)

2019, Operari sequitur esse? Leonardo e as dinâmicas epistémicas na Europa dos séculos XV e XVI.

Inúmeros autores têm contribuído, ao longo dos séculos, para a instauração de um mito em torno da personalidade de Leonardo da Vinci, intensificando de sobremaneira uma percepção desviante da sua verdade histórica. Paul Valéry constitui um desses casos, ao considerar que Leonardo ocupa um solitário papel na laboriosa dissecação da machina do mundo que ao longo dos séculos XV e XVI constituiu as fundações da idade moderna e do habitual equivoco historicista apelidado de “Renascimento”. Na sua Introdução ao Método de Leonardo da Vinci, Valéry prefigura o cúmulo de alguém, que face à natureza equívoca da personagem, sucumbe a uma hiperbólica caracterização das suas obras: “Alguns trabalhos de índole científica, por exemplo, e muito especialmente os de matemática, apresentam uma tal limpidez de organização que até parecem obra de ninguém. São algo de inumano” (Valéry, 2005, pp. 13 - 16). Acontece, na verdade, que os textos consagrados por Leonardo à matemática, ocupam uma ínfima parte de todo o corpus tratadístico que produziu e limitam-se a emular questões amplamente debatidas nos círculos de erudição coetâneos. Confrontado com este flagrante desvio à verdade histórica, André Chastel fala da criação de um «mito Leonardiano» de contornos claramente esotéricos e Freudianos como modo de conferir a uma subtil e evasiva personalidade artística, a consistência e a coerência dos heróis novelescos. Será esta a génese, na sua opinião, daquilo que classifica como os diversos desenvolvimentos naïfs da lenda de Leonardo: o mago; o necromante; o sábio que tudo antecipa; o técnico que tudo realiza; o artista maldito, etc. (Vinci, 1987, p. 5). O equivoco mais habitual, refere-se precisamente ao facto de Leonardo, dotado de um espírito inquisitivo único na história da humanidade, ter constituído o principal motor do renascimento e da subsequente revolução científica. Esta flagrante ausência de todo e qualquer enquadramento prévio capaz de o explicar do ponto de vista de uma fenomenologia cultural, isola o homem histórico do seu próprio vínculo cronológico; mais, isola-o da sua própria humanidade, tornando sobrenatural um fenómeno perfeitamente inteligível no seu lapso vivencial.