Desafios da democracia intercultural na Bolívia: entre o projeto plurinacional e a regulamentação da prática eleitoral (original) (raw)
2019, Democracia na América Latina 2: Descolonização, territórios e horizontes
A construção da democracia intercultural boliviana resulta de um processo intenso, porém heterogêneo, de politização das identidades indígenas que vem se desenrolando desde meados da década de 1980. Os fenômenos que marcam esse processo também possibilitaram o questionamento substantivo da hegemonia liberal no país, assim como o pleito por uma nova forma de Estado e a sua consolidação. A constitucionalização da plurinacionalidade na Bolívia, lograda na carta constitucional promulgada em 2009, avança no sentido de incorporar sujeitos indígenas ao arcabouço do Estado e de incluir, à diferença das formas de pluralismo presentes nas constituições do Equador (2008) e Venezuela (1999), a democracia comunitária para além de mecanismos de democracia participativa e representativa. Com isso, os processos de pluralização político-institucional na Bolívia abarcaram não apenas a participação de grupos e representantes indígenas nos processos de tomada de decisão, mas também contemplaram a possibilidade de eles próprios serem parte do processo de redefinição do Estado. No presente capítulo, partimos da ideia de Mayorga (2014a), que apresenta a democracia intercultural como relação e processo. Nesse sentido, a relação se dá entre diferentes arranjos institucionais e modos de fazer política a fim de possibilitar a articulação da diversidade social, buscando a complementaridade entre formas de democracia e a prevenção de uma situação de dualismo nos processos de deliberação e de tomada de decisões. Trata-se, ademais, de um processo, uma vez que o devir da relação entre as formas comunitária, participativa e representativa implica a constante ampliação e disseminação da democracia em âmbitos distintos, ou seja, leva em conta o caráter dinâmico das relações sociais que dão base aos ajustes e inovações institucionais necessários para a consolidação de um ideal efetivamente intercultural (MAYORGA, 2014a, p. 110-111). Passados dez anos da promulgação da Constituição Política do Estado (CPE) boliviano, este artigo retoma os avanços promovidos pela carta de 2009 com relação aos mecanismos legais que a antecederam, bem como as limitações impostas a ela por regulamentações posteriores, tendo em vista a pluralização político-institucional como base para a consolidação de um ideal de democracia intercultural. Em particular, salientamos como os processos de politização das identidades indígenas no contexto boliviano são parte fundamental da transformação da institucionalidade estatal, ao promoverem uma crítica à primazia de formas liberais de exercício democrático, que privilegia visões individuais e individualizantes, em favor de formas coletivas de formação e atuação do sujeito político. Não tratamos, portanto, de analisar disputas e questões conjunturais da política boliviana, mas de oferecer insumos que auxiliem em uma leitura crítica da relação entre as distintas formas democráticas que coexistem no contexto boliviano. Isso posto, este artigo se estrutura da seguinte maneira: começamos por uma contextualização do caso boliviano, retomando elementos centrais do processo de politização das identidades indígenas desde a década de 1980, incluindo uma análise de mudanças legais promovidas por políticas multiculturais, seguida de uma discussão sobre o processo de emergência de uma demanda pela constitucionalização da plurinacionalidade. Introduzimos, então, alguns pontos chave da CPE e das leis que regulamentam sua implementação no que tange a formas de representação e deliberação política para, por fim, discutirmos os limites e potenciais oferecidos por esse marco legal antes de apresentarmos nossas considerações finais. [TEXTO ESCRITO COM AIKO IKEMURA AMARAL]