Semina Ciências Sociais e Humanas, v. 42, n. 1 (2021) - Desamparo e desencanto na Literatura Portuguesa: revisitações da memória e da história (Dossiê) (original) (raw)

2021, Semina Ciências Sociais e Humanas, v. 42, n, 1 (2021) - Desamparo e desencanto na Literatura Portuguesa: revisitações da memória e da história (Dossiê)

O desamparo e o desencantamento diante dos acontecimentos e tribulações que a experiência com a história impõe ao ser humano resultam em atitudes ou sintomas recorrentes na Literatura Portuguesa, desde as suas origens até a hipercontemporaneidade. Nessa perspectiva, a memória manifesta-se como agente fundamental da emergência dessa experiência na prosa, na poesia e no teatro português. Tais modalidades literárias são meios privilegiados de resgate memorialístico, de representação crítica, de desconstrução de imaginários idealizados, mas também exercícios escriturais de projeção da esperança. Neste dossiê, estivemos abertos à recepção de artigos que explorassem tal viés investigativo, focalizado a Literatura Portuguesa desde as suas raízes, passando pela consolidação imperial, até a atualidade – marcada, segundo Eduardo Lourenço, n’O labirinto da saudade, por uma espécie de ideia “orientada ou subdeterminada consciente ou inconscientemente pela preocupação obsessiva de descobrir quem somos e o que somos como portugueses” – o que o célebre ensaísta, que nos deixou em dezembro do ano passado, “em plena luz”, considerava “uma arrumação tão legítima como a que consiste em organizá-la como caso particular (e em geral pouco relevante) da literatura ocidental”. Diante disso, o presente volume da Revista Semina – Ciências Humanas apresenta ao público uma seleção de oito artigos que exploram a ocorrência ou as recorrências desta temática cara à produção literária portuguesa, ou seja, a interlocução entre memória e história. O artigo de Claudia Maria de Souza Amorim, intitulado “O fio tênue e áspero da poesia de Ana Marques Gastão”, propõe uma leitura crítica da obra da poeta portuguesa Ana Marques Gastão (1962) – com destaque para o livro O olho e a mão (2018), escrito em coautoria com o poeta brasileiro Sérgio Nazar David (1964) –, a partir da imagem da(s) mão(s), presente no processo da escrita e no exercício indagativo do sujeito em sua relação com o mundo. Dentro de tal proposta, a autora ainda considera o diálogo com outras artes, como a música, a dança e a pintura. Clenir da Conceição Ribeiro e Eliana da Conceição Tolentino, com o artigo “A memória nacional lusitana em O vento assobiando nas gruas, de Lídia Jorge”, apresentam um estudo do romance O vento assobiando nas gruas (2002), da ficcionista portuguesa Lídia Jorge (1946), fazendo ressaltar uma metáfora da nação lusitana pós Revolução dos Cravos (1974) que oscila entre a grandiosidade do império e as transformações decorrentes desse acontecimento. Além disso, em um diálogo com a história do período colonial português, as autoras intentam um estudo da memória nacional e de seus desdobramentos com a descolonização, buscando problematizar a relação entre história e memória. Valéria Cardoso da Silva, no artigo “A interpretação de relatos em Fazes-me falta - Inês Pedrosa”, põe em evidência, pela via da comparação entre a Literatura Portuguesa e outros campos do saber, um diálogo entre dois protagonistas, narradores-personagens do romance Fazes-me falta (2002), da ficcionista portuguesa Inês Pedrosa (1962): uma mulher morta e um homem vivo, mas ambos convergindo e divergindo sobre diversos temas que trazem à baila a memória imaginária de relatos confessionais sobre a História da Humanidade. Já Suzana Costa, em “A crise afetiva e identitária do médico psiquiatra em Memória de Elefante, de António Lobo Antunes”, discorre sobre a angústia, o sofrimento amoroso e a profunda crise de identidade que permeiam a narrativa de Memória de Elefante (1979), primeiro romance do ficcionista português António Lobo Antunes (1942), e que tornam líquidas a sensibilidade e a dignidade do personagem “médico psiquiatra”, um indivíduo à deriva, que, fragmentado, não restabelece sua identidade perdida, e, em crise, vive os dramas da separação da mulher e do distanciamento das filhas, buscando, nas pequenas ações do cotidiano, as evasões para o seu desamparo e para o desencanto solitário que o mantém inerte. No artigo “A mitologia do mundo colonial português em decomposição na prosa romanesca de António Lobo Antunes”, Ana Cristina Pinto Bezerra, lançando mão das concepções de Eduardo Lourenço (1923-2020) sobre o desencanto cultivado no cenário português e da teorização de Mikhail Bakhtin (1895-1975) sobre as características da epicidade, nos mostra como a imagística colonial de um grande império luso se torna o material revisitado pelo singular narrador de Os cus de Judas (1979), segundo romance de António Lobo Antunes (1942), na medida em que esse narrador projeta uma imagem destrutiva dos valores que fizeram parte de sua formação como o “ser português esperado”, desenvolvendo estratégias específicas para que a mitologia que arregimentou a narrativa do mundo colonial lusitano seja posta em decomposição. Pedro Fernandes de Oliveira Neto, em “O ano de 1993 ou o encontro dos tempos, dentro e fora da revolução”, a partir de uma complexa perspectiva comparatista, privilegiando o tema da revolução e demonstrado como um instante de transformação coletiva é capaz de romper com o tempo de falibilidade dos processos civilizatórios, interpreta o livro de poesia O ano de 1993 (1975), do escritor português José Saramago (1922-2010), como um livro que é simultaneamente o produto contrário às ideologias de um tempo escuro da história e uma parábola sobre a nossa múltipla natureza, aspirando à liberdade e se elevando contra os modelos de dominação estabelecidos pela própria força humana. No artigo “Intersecções históricas em A ilustre Casa de Ramires: o romance e a revista”, Cintia Bravo põe em foco a valorização de Portugal proposta pelo escritor português Eça de Queirós (1845-1900) ao publicar o romance A ilustre casa de Ramires (1900) nas páginas da Revista moderna (1897), mostrando como, neste que é um dos seus três romances semipóstumo, Eça conjuga perspectivas históricas que se complementam e se distanciam, sem ficar preso ao passado, enaltecendo feitos que já não poderiam ajudar o seu país a se reconstruir. Por fim, Maria Clara Costa Pereira, no artigo “Desalento, descrença, desencanto e desesperança: o perfil poético do emigrado português em terras brasileiras”, busca imergir por entre as expressões poéticas publicadas no jornal carioca A Saudade (1855-1857 e 1861-1862) – periódico do Grêmio Literário Português –, investigando a visibilidade dada a determinadas construções sentimentais e artísticas, por meio das quais a experiência particular do grupo de portugueses emigrados no Rio de Janeiro, de afastamento e de saudade, é significada e apropriada como forma de identificação e conforto existencial e social, funcionando como meio de construção de uma ethos sensível do português emigrado, em meio aos embates sociais da sociedade brasileira oitocentista. Com base nesses elementos, colocamos para apreciação dos leitores este número da Semina – Ciências Humanas, cujo dossiê focaliza a Literatura Portuguesa em seus vários tempos a partir da temática do desamparo e do desencanto. Agradecemos aos autores dos artigos que aderiram à chamada e tornaram o dossiê temático possível. Nessa linha, registramos nossos agradecimentos à Universidade Estadual de Londrina, pela acolhida da nossa proposta, à Presidente do Conselho Editorial da Semina – Ciências Humanas e aos vários pareceristas ad hoc pela generosa disponibilidade na leitura e exame dos originais enviados. A contribuição de todos faz com que a Semina – Ciências Humanas se consolide gradativamente como um âmbito fértil para a discussão da textualidade literária nas Literaturas de Língua Portuguesa. O número ainda é finalizado com quatro artigos originais, marcando a ampliação do montante de textos publicados, que passa de oito para 12 artigos a cada edição. Os artigos originais versam sobre: percepções de genitores sobre a participação em Oficinas de Parentalidade; barreiras que a mulher negra enfrenta na formação em Psicologia; as montações e performances de drag queens e de pessoas gênero-dissidentes; e, por fim, divergências e semelhanças entre os entendimentos de democracia e feminismo em Chantal Mouffe e Seyla Benhabib. Boa leitura! Maria Aparecida da Costa (UERN) Gerson Luiz Roani (UFV) Maíra Bonafé Sei (UEL) Silvio Cesar dos Santos Alves (UEL)