Acesso à Justiça e Democracia (original) (raw)
Neste artigo, farei um mapeamento dos principais conceitos que norteiam as ações dos operadores do direito (defensores públicos, procuradores, magistrados, advogados). Iniciarei definindo o princípio de acesso à Justiça e a articulação deste com o conceito de cidadania, tendo como elemento intermediário de ambos a democracia moderna, sendo esta percebida enquanto um processo dinâmico e renovador. Definidos esses postulados, retomarei o debate do fenômeno da judicialização, na medida em que esse fato político e social pressupõe os elementos de acesso à Justiça e de cidadania. Estabelecerei, assim, uma distinção da judicialização em relação ao movimento que envolve o Direito alternativo e o uso alternativo do Direito, que apesar de os últimos implicarem mobilização dos operadores jurídicos, em nada se assemelham ao fenômeno da judicialização. 2. Acesso à Justiça A questão do acesso à Justiça tem sido um dos temas mais recorrentes no campo da Sociologia do Direito nos últimos trinta anos, e tem como ponto de partida a obra de Cappelleti e Garth (1988) a respeito dessa problemática. De acordo com Eliane Junqueira (1996), o tema sobre o acesso à Justiça começou a despertar o interesse dos pesquisadores brasileiros nos anos 80, mas as motivações não eram as mesmas dos cientistas sociais europeus ou estadunidenses, já que esses vinculavam a questão do acesso à Justiça à expansão dos serviços do welfare state (em meio à crise desse modelo estatal que se iniciou nos anos 70); tampouco no que se refere à afirmação de novos direitos de cunho coletivo e difuso, como os do consumidor, meio ambiente, étnico ou sexual. O que prevalecia nos anos 80, no Brasil, eram os canais alternativos de Justiça, paralelos ao Estado, este sendo identificado como uma representação política autoritária, e daí a impossibilidade do enfoque ao acesso à Justiça aos canais institucionais oriundos do aparato estatal. A ênfase era, sobretudo, no papel das comunidades na resolução dos seus conflitos, a exemplo do trabalho de Boaventura de Sousa Santos sobre a favela do Jacarezinho, nos anos 70. Ademais, o tema do acesso à Justiça pelo Estado estava diluído e sobredeterminado pelo debate daquele contexto em que enfatizava a ampliação da cidadania participativa, da afirmação e da garantia das liberdades negativas, e na emergência do papel desempenhado pelos movimentos sociais que estavam se estabelecendo naquele contexto. Com efeito, houve, na virada dos anos 70 para os 80, o surgimento de novos atores políticos e sociais que exerceram forte pressão para a criação do Estado democrático de direito e de uma cidadania ativa. 1 De acordo com José Murilo de Carvalho houve, nesse contexto, em primeiro lugar, uma multiplicação de novos agentes coletivos como as organizações civis e religiosas (como as Comunidades Eclesiais de Base -CEBs), movimentos sociais urbanos, a exemplo das associações de moradores de favelas e de bairros, 2 e associações profissionais; em segundo, os sindicatos dos trabalhadores industriais que visavam a sua autonomia do Estado (sobretudo do Ministério do Trabalho) e acabaram por constituir duas organizações nacionais, a CUT e a CONCLAT; em 1 Como afirma Eliane Junqueira, "ainda que durante os anos 80 o Brasil, tanto em termos da produção acadêmica como em termos das mudanças jurídicas também participe da discussão sobre os direitos coletivos e sobre a informalização das agências de resolução de conflitos, aqui estas discussões são provocadas não pela crise do Estado de bem-estar social, como acontecia então nos países centrais, mas sim pela exclusão da grande maioria da população de direitos sociais básicos, entre os quais o direito à moradia e à saúde. [...] tratava-se fundamentalmente de analisar como os novos movimentos sociais e suas demandas por direitos coletivos e difusos, que ganham impulsos com as primeiras greves do final dos anos 70 e com o início da reorganização da sociedade civil que acompanha o processo de abertura política, lidam com um Poder Judiciário tradicionalmente estruturado para o processamento de direitos individuais" (Junqueira, 1996:390-391). 2 Segundo J. M. de Carvalho, havia, no início da década de 80, mais de oito mil associações de moradores no país (Carvalho,1995:137). terceiro, além da CNBB, outras instituições "tradicionais" como a OAB e a ABI afirmaram-se enquanto focos de resistência ao governo militar. Para José Murilo, a oposição da OAB ao Estado autoritário era tanto por convicção como também por interesse profissional. O interesse profissional era óbvio, na medida em que o regime autoritário reduzia o campo de atividades dos advogados. A intervenção no Poder Judiciário também desmoralizava a Justiça vista como um todo. Os juízes (e promotores) viam-se diretamente afetados, e indiretamente também os advogados. Mas muitos integrantes da OAB atuavam em função de uma sincera crença na importância dos direitos humanos. Desde a sua V Conferência Anual, realizada em 1974, a OAB empunhou a bandeira dos direitos humanos como a sua principal reivindicação. Daí em diante, a OAB converteu-se numa das trincheiras da legalidade constitucional e civil. A ABI também se opôs ao Estado autoritário na defesa dos direitos civis e políticos, pois também possuía motivos de ordem corporativa na sua oposição à ditadura: para ser exercida plenamente, a profissão de jornalista exige a liberdade de informação, o que não poderia ocorrer sob uma censura prévia (Carvalho, 1995:136-139). Como bem observa Paulo Sérgio Pinheiro, a partir dos anos 70 os princípios e conceitos dos direitos humanos -tanto civis e políticos como econômicos e sociais -emergem com o surgimento de novos atores durante a ditadura, até 1985. Já no início dos anos 80, os movimentos sociais progressivamente vão dedicar-se à promoção dos direitos sociais e econômicos dos setores pobres da população, pois houve o crescimento da insegurança social. Novas reivindicações surgiram, como no caso do movimento em favor dos povos indígenas, que ampliaram e prolongaram a pauta da reforma agrária. Iniciou-se a defesa dos direitos dos grupos chamados "minoritários", como os negros, as mulheres, os homossexuais, as crianças e os portadores de deficiência, e a promoção do direito a moradia, educação, saúde e meio ambiente. Essa luta da sociedade civil pelo restabelecimento do estado de direito teve como ponto de apoio os movimentos sociais. No final da ditadura, uma rede extremamente dinâmica de movimentos sociais começou a ser organizada nas cidades e no campo (Pinheiro, 2001: 290). Cátia Aída Silva, por seu turno, complementando o diagnóstico de P. S. Pinheiro, observa que nessa conjuntura da abertura política, as demandas e conflitos protagonizados por movimentos sociais tornaram-se uma importante referência na avaliação do funcionamento e da estrutura do sistema judicial brasileiro, sobretudo do Poder Judiciário. Esses movimentos sociais que surgiram na virada dos anos 70 para os 80, como as organizações de defesa dos direitos humanos, comunidades eclesiais de base, associações de moradores, movimentos urbanos que reivindicavam a oferta e melhorias dos serviços públicos, movimentos feministas e organizações negras visavam à defesa dos direitos humanos, além de serem portadores de reivindicações por emprego, terra, habitação, saúde, transporte, educação. Esses movimentos contribuíram para o debate em torno da necessidade de mudanças legislativas e institucionais que garantissem novos direitos individuais e coletivos, sobretudo direitos para a população marginalizada e para as minorias (Silva, 2002:4). O tema da democratização do Poder Judiciário foi incorporado à pauta de advogados, juízes, promotores, acadêmicos e militantes de organizações de assistência jurídica e comitês de direitos humanos. A ampliação do acesso à Justiça das classes mais baixas, a racionalização e redução dos custos dos serviços judiciários, a simplificação e modificação do processo jurídico nas áreas cível, penal e trabalhista, a representação jurídica de causas coletivas e, finalmente, a mudança na formação e no papel do juiz e dos demais operadores jurídicos (advogados, promotores, defensores) foram questões exaustivamente discutidas por especialistas e por diversos grupos da sociedade civil organizada (ibidem:5). implosão dos direitos sociais que era a "pedra de toque" do Estado de Bem-Estar durante a chamada "era dourada" 5 . Se as "três ondas cappelletianas" não faziam parte da bandeira do acesso à Justiça na virada dos anos 70 para os 80, na segunda metade dos anos 80 começaram a se tornar alvo de discussão e de efetivação legal, particularmente na Constituição de 1988, que tornou o acesso à Justiça um princípio constitucional. Mário Gryzspan chama a atenção para o fato de quando se discute o tema do acesso à Justiça este traz consigo a questão da cidadania -e da democracia -que, mais do que direitos universais legalmente constituídos, requer a disponibilização e a generalização de recursos necessários ao seu exercício e garantia. Em outros termos, é a democratização do Judiciário que se põe em questão. De fato, a garantia ao acesso à Justiça a partir da visão introduzida por Cappelletti começou a ser encarada enquanto um direito social. De acordo com J. M. de Carvalho, "[...] a garantia da justiça exige a interferência do poder de Estado, assim como o exige a política de bem-estar. Ela não representa uma reação ao Estado, um direito negativo. Corresponde a um momento da sociedade liberal em que o Estado já foi convocado para garantir, pela intervenção, um direito inicialmente estendido a parcela limitada da população". (Carvalho, 2002:108)