O duplo em Hoje é dia de Maria (original) (raw)

De acordo com Luís Alberto de Abreu, Hoje é Dia de Maria trabalhou com o universo dos contos fantásticos. Muito presente na minissérie é o tema do duplo, recorrente na literatura universal fantástica. Para Eco "a presença do sósia é quase obrigatória em um romance barroco" (ECO,2003: p.212), e, no caso do maravilhoso e do fantástico, mais ainda. No cinema e na televisão, mesmo quando não havia a possibilidade dos efeitos especiais digitais, a adaptação de textos fantásticos, por exemplo, já instigava os cineastas no século XIX, como George Mélies em sua Viagem à Lua, e continuou sendo um processo recorrente para o cinema surrealista e expressionista alemão e hoje para os filmes de terror ou de cineastas cult. Assim também a literatura vem trabalhando o fantástico através da história até a contemporaneidade, como vemos desde Edgar Alan Poe, Hoffmann, Gaultier e Mérimée a Isabel Allende, Julio Cortázar, Jorge Luís Borges, Rubem Fonseca, Lígia Fagundes Teles e Murilo Rubião, para citarmos alguns brasileiros. Bakhtin revela o fenômeno habitual das personagens duplas em Dostoiévski, como sendo uma sua particularidade, pois escrevia "obrigando as personagens a dialogarem com seus duplos, com o diabo, com seu alter-ego e com sua caricatura" (BAKHTIN, 1997: p. 28-29). Segundo Le Goff, há "uma relação entre o espelho, símbolo da duplicidade, e o maravilhoso" (LE GOFF,1983: p.20), já no título do livro de Pierre Mabille sobre o maravilhoso, Le Miroir du Merveilleu x. Segundo Cesarini, o desdobramento, gêmeos e sósias, a duplicidade de cada personalidade, tudo isso é tema já muito desenvolvido no teatro, seja no trágico ou no cômico, mas também nas narrativas de todos os tempos. Entretanto, no fantástico o tema enriquece por meio dos motivos do retrato, do espelho, das muitas refrações da imagem humana, da duplicação obscura que cada indivíduo joga para trás de si, na sua sombra.(CESARINI, 2006: p.83), Para os românticos alemães, como Hoffmann, reflexos de espelho e sombras se confundem. De acordo com Junito Brandão , a sombra tem função ambivalente, já que possui qualidades comuns à luz e às trevas, assim aflorando o problema do bem e do mal. A força da fertilidade da sombra é associada à luz geradora da vida. "Possui instintos normais e impulsos criadores" (BRANDÃO, 1987: p.187). Sua força curativa é exaltada em muitas culturas, nas quais ela se acha imbuída de mistério e sobrenaturalidade. Para os latinos, a sombra, umbra, tem seu lado negativo: são os "aspectos ocultos, reprimidos, desfavoráveis da personalidade." Aí estamos no terreno da magia, do espiritual, característica apontada como sendo do maravilhoso. Entre os mitos gregos é que surgiram primeiramente estas tendências fantasmagóricas e demoníacas: "os mortos perdem a sombra, ou, por outra, transformam-se eles próprios em sombras, imago, umbra, eídolon e podem assustar os vivos: são as assombrações." (BRANDÃO, 1987: p.188) Sendo uma parte inconsciente da personalidade ou mesmo uma parcela do inconsciente coletivo, no dizer de Jung, a imagem perdida de Narciso continua viva entre nós.