O que pulsa na fome: escrita e inanição na cidade contemporânea (original) (raw)

“Testemunha estomacal”: fome e escrita

Estudos De Literatura Brasileira Contemporânea, 2006

Mais de um estudioso, em diferentes áreas do conhecimento, já evidenciou a função de resistência da escrita. Das "cartas da prisão" e "memórias do cárcere" aos relatos confessionais de catadores de papel e outros habitantes de grandes cidades que sobrevivem na rua ou da rua, o texto escrito, publicado ou não, funciona como um porto, um lugar de ancoragem do ser, como define Maria Rita Kehl 1. Diário de adolescentes inseguros ou narrativas elaboradas por escritores consagrados pela sociedade, o espaço textual desdobra-se em mecanismos de processamento psíquico e social de um sujeito que busca se configurar para si mesmo e para o outro, e, além disso, traça um esboço do espaço social em que ocorre a enunciação. Nesse universo insere-se a escrita de Maria de Jesus da Silva, intitulada por ela mesma Divã de papel 2. Tal título confirma as premissas da presente reflexão, que tem como objetivo examinar a atuação da enunciadora em sua multiplicidade de vozes. Maria de Jesus quer contar sua história e, para isso, cede a palavra, em primeiro lugar, à sua irmã mais velha, Eva ou Veva, que recua a um passado mais remoto, situando a base da família. Veva, na verdade, faz um resumo da vida familiar, acentuando as carências que marcaram a trajetória do grupo: pai alcoólatra, mãe lutadora, mas instável e dominadora, muitos filhos a serem sustentados. Tal trajetória, da roça para a cidade, da cidade pequena para a cidade grande, é a trajetória de milhares de brasileiros, e tem como elemento básico a fome: "Chegamos na rodoviária, (...) todos nós famintos, descalços, com frio e nada mais..."(Veva).

Quarto de despejo: A escrita como arma e conforto à fome

Baleia Na Rede, 2006

Não tenho força física, mas as minhas palavras ferem mais do que espada. E as feridas são incicatrizáveis. (Carolina de Jesus) O diário de Carolina de Jesus nos revela o desejo de uma mulher que, mesmo vivendo em meio às mais degradantes condições de existência -cujos maiores momentos de alegria consistem nos instantes em que presencia o "espetáculo deslumbrante" da "gordura frigindo na panela (...) As crianças sorrindo vendo a comida ferver (...)" (JESUS, 19_ _, p. 37), ou, nos instantes em que sonha e imagina-se residindo "num castelo cor de ouro que reluz na luz do sol" (JESUS, 19_ _, p. 53) -em mostrar-se enquanto ser humano que pensa, sente, comove-se, indigna-se e que tem como ideal de vida escrever tudo o que vivencia.

A escrita da cidade

Cuiabá, a mulher e a cidade: literatura, cinema e artes da cena, 2021

Este livro inverte e multiplica a proposição de Calvino: são mulheres que narram as cidades que vivem, imaginam, percebem, distinguem, anseiam. Ainda que o nome seja apenas um, ao ser narrada por todas essas mulheres, descobrimos a verdade sobre Cuiabá: sua insofismável multiplicidade e que, em sendo uma mulher, poderia muito bem dizer, como Pessoa “– eu sou muitas”.

A cidade contemporânea: leituras e escritas do urbano

Revista FAMECOS, 2009

A narração diante da celeridade contemporânea de objetos e pessoas nos remete não mais à pluralidade da cultura moderna, mas a uma fragmentação que sugere novas percepções e possibilidades de escritas do espaço urbano. Vamos abordar, neste artigo, como o caminhar, com suas diferentes formas de uso, pela metrópole comunicacional – neste caso, por uma zona específica dela – pode ser alvo de múltiplos sentidos, múltiplas leituras e escrituras dessa mesma metrópole e do cosmopolitismo que a abarca. Nosso ponto de partida, para tal tarefa, é uma biblioteca comunitária, situada na Candelária, região da Favela da Mangueira, no Rio de Janeiro.

Da fome à letra: deslocamentos íntimos e geográficos em direção à comida

Opiniães

Nos movimentos em um território, que não é campo nem cidade, as narrativas sobre a fome e a falta delineiam percursos registrados em diários: escritas do (mais ou menos) íntimo. O cotidiano, desse modo, registra-se pela busca por comida, mas também pelos momentos compartilhados e de compartilhamento de comida em As mulheres de Tijucopapo (1982), de Marilene Felinto; Autobiografia precoce (1940) e Parque industrial (1933), de Patrícia Galvão; Casa de alvenaria (1961), Quarto de despejo: diário de uma favelada (1960) e Diário de Bitita (1986), de Carolina Maria de Jesus; e Os supridores (2020), de José Falero. As narrativas acontecem em terrenos reais ou fictícios, mas, em ambos os casos, descrevem e percorrem uma geografia da fome (CASTRO, 1984). Entre a busca por comida e o encontro, mulheres, homens, crianças e trabalhadoras/es são corpos em deslocamento. Em direção à comida: o que se escreve? Diários, cartas, narrativas em primeira pessoa, narrativas em terceira pessoa. Do singula...

Literatura, violência e fome

Revista Odisséia, 2023

Resumo: O artigo aborda as obras Os sertões (1902), de Euclides da Cunha, A Bagaceira (1928), de José Américo de Almeida, O Quinze (1930) de Rachel de Queiroz, e Pedra Bonita (1938), de José Lins do Rego, objetivando identificar pontos em comum, como a violência compositiva da estruturação formal do sertanejo: a fome e o meio-natural e social-hostil. O estudo permite delimitar problemáticas em torno da vida no sertão que, denunciadas na obra euclidiana, são ficcionalizadas pelos romances almeidiano, queiroziano e reguiano, observando-se a relação entre a literatura e o contexto de sua criação. A abordagem possibilita vislumbrar a literatura como forma de provocar reflexões, outras percepções ante a realidade de violência com a qual os indivíduos se habituaram, podendo contribuir para alterar esse quadro, sobretudo quando se verifica, dia a dia, o número crescente das suas vítimas. Palavras-chave: Literatura e violência. Literatura e fome. Literatura e sociedade. 1 Da literatura e do direito, da violência e da fome

A cidade, seus espaços, narrativas e o morador de rua: entre o miserável e o flâneur

Rizoma, 2017

Este artigo trata de urbanidades, subjetividades e conflitos gerados na cidade moderna e que se mantêm entrelaçados ao ambiente urbano contemporâneo. Para tal, o morador de rua é destacado na narrativa que busca refletir sobre sua invisibilidade perante a sociedade, o estado e a mídia ao ocupar os espaços esquecidos ou não reconhecidos como espaços ativos da cidade. Como um personagem do urbano, o morador de rua situa-se entre o miserável de Victor Hugo e o Flâneur de Baudelaire.

Realismo e (des)subjetivação: as várias faces da fome em três momentos da literatura brasileira

Scripta

Este texto discute como e por quais vias se processa a construção subjetiva em três romances da literatura brasileira: A fome, de Rodolfo Teófilo; Vidas secas, de Graciliano Ramos e Homens e caranguejos, de Josué de Castro. Usualmente classificados de realistas, os romances, produzidos em épocas e contextos distintos, têm em comum o tratamento da temática da fome. Considerando-se os textos analisados como construções em que os conceitos de real e realidade são entendidos diferentemente, optou-se por aproximar o conceito de realismo ao de formação discursiva (Foucault, 1995), esta compreendida como um saber constituído de discursos sobre algo, envolvendo sujeitos que ocupam posições diferentes de acordo com o tempo e o espaço de onde enunciam. O conceito de formação discursiva também se alinha ao de subjetivação na medida em que, como seres de linguagem, os sujeitos constituem a si e as coisas no momento em que falam, construindo sentidos nas e pelas relações que os envolve. Nessa perspectiva, propõe-se entender a realidade e o próprio realismo em suas fronteiras móveis, já que aí estão em jogo discursos, sujeitos, tempos e espaços. Palavras-chave: Realismo. Romance. Formações discursivas. Fome. Subjetivação.

Livro - o fenomeno urbano

Este volume reúne alguns dos estudos mais significativos já publi cados até hoje sobre o fenômeno urbano . Não o intitulamos Sociologia Urbana, pois que tal rótulo não daria uma idéia fiel da orientação seguida por todos os autores aqui apresentados. Isso porque a noção de uma Sociologia Urbana parece estar ligada em geral a uma certa primazia que se conferiria ao urbano per se, e conseqüentemente também ao rural, em termos de seu valor explicativo para uma grande série de fenômenos sociais. Muitos autores não concordariam com essa posição, e pretenderiam conferir o status de "variável independente" básica a outros fatores, tais como o nível tecnológico, organização econômica, poder social, valores culturais e assim por diante. Outros prefeririam deslocar a questão para a exigência da caracterização de totalidades histórica s em que, aí sim, inserirseiam as manifestações concretas do urbano e do rural. Outros, ainda, simplesmente pretenderiam estudar certos fenômenos sociológicos específicos tal como se dão no cenário urbano, admitindo que este possua um poder de determinação relativa, mas que não chega a esgotar o conteúdo dos fatos sociológicos examinados, os quais, em si, nada teriam de necessária e exclusivamente urbanos. Ao que parece, a idéia de uma Sociologia Urbana teria surgido não de uma preocupação acentuada de elaboração teórica, o que exigiria um extremo rigor lógico na definição da ciência, mas da necessidade de enfrentar certos problemas "práticos" urgentes ligados ao enorme crescimento das grandes cidades que acompanha a industrialização e o desenvolvimento capitalista, especialmente nos Estados Unidos, com a imigração em massa de contingentes europeus em fins do século XIX e início do XX. 4 Ver Sjoberg, Gideon, The Preindustrial City; Past and Present, The Free Press, Glencoe, Illinois, 1960, esp. "Introduction". 5 Ver Sjoberg, Gideon, op. cit. Por fim, queremos alertar o leitor para o fato de que os artigos estão apresentados em ordem cronológica, o que não deixa, como todo critério, de ser até certo ponto arbitrário. Outra solução possível, e que pode ser adotada pelo leitor em termos de leitura, seria começar pelos dois clássicos europeus (Simmel e Weber), passando depois pelos norte americanos (Park e Wirth) e terminando com Chombart de Lauwe, autor contemporâneo. O leitor menos familiarizado com as Ciências Sociais pode preferir, no entanto, seguir o caminho inverso. Seguese uma bibliografia selecionada de trabalhos existentes em português sobre o assunto. Chamamos a atenção para o fato de os livros de autores brasileiros não serem obra de sociólogos, mas de geógrafos 6 e de um arquiteto, que no entanto não só possuem bastante valor dentro do que se propõem como fornecem boas indicações e os pressupostos para o estudo sociológico do fenômeno urbano brasileiro, que ainda está por ser feito.