2007 - Herança de Philogônio ["O mulo", de Darcy Ribeiro] (Revista Literatura e Autoritarismo, UFSM, n. 10) (original) (raw)
Abstract : O mulo (1981), by Darcy Ribeiro, is the autobiography of Philogônio Castro Maya: a colonel from Goiás's hinterland that in face of the death decides to donate all his properties to an unknown priest, as a way of redeeming his sins. Densely narrated, the text is reminiscent of Grande Sertão: Veredas, with metaphysical and universal speculations among confessions of crimes, affective relationships and lessons of life from the protagonist. Em O Mulo (1981), segunda experiência de Darcy Ribeiro como romancista -escrito enquanto ainda estava no exílio -, nove capítulos separam o leitor do universo ora vivido, ora fantasiado por Philogônio Castro Maya. De primeiro, apelidado Trem e Filó, depois, civilizado simbolicamente pela documentação de eleitor que tira com o auxílio de um militar, é o apelido (dado pelos homens que vivem em sua fazenda) que nomeia sua autobiografia: "Uma madrugada que acordei estremunhado e saí porta afora, bati com o pé no moleque que dormia enrodilhado ali. Acordando assustado ele perguntou gritando: que é, seu Mulo? Quem é quem?, perguntei eu. Aprendi ali, naquela hora, meu apelido." (RIBEIRO, 1981, p. 258) 2 Bruto ao proceder, é um ser rude e de pouca instrução, absoluto devoto da natureza dos "goiases" que se defende contra as afetações dos homens da cidade. "A cidade enorme, cheia de gente, me dava medo. Sem rancho e longe dos bichos com que sei lidar não posso viver." (p. 205) Em sua trajetória, o maior artifício parece estar mesmo com os leitores. A nós cabe reconstituir as sobras de um sertanejo próximo do fim. Nosso papel também é articular, sob a ótica muito particular deste homem decadente, suas próprias reminiscências e aprendizados. "Sou homem de gosto para gozos maiores. Ou era, fui; nos meus idos. Agora, estou aprendendo a gozar os menores." (p. 22) Trata-se de narrativa em tensão permanente, construída pelos atos de uma só personagem; de sua fala, aliás. O monólogo, feito de reminiscências e sonhos que se confundem, lembra Grande Sertão: Veredas (1956) 3 com seus buritizais das veredas; capangas e assassinatos; animais, homens, mulheres e perversidades. Possível releitura do universo roseano, com um toque a mais de erotismo e violência, em linguagem que beira a escatologia. "Dentro de casa não quero escarro que não seja meu". (p. 22) Por outro lado, O mulo difere de Grande Sertão principalmente devido à linguagem menos erudita, digamos, e, sobretudo, à visão um tanto mais estreita do narrador a respeito de mandar no mundo. Conseqüentemente, o papel do leitor é fundamental. Ainda que a linguagem seja fluida, com freqüência é necessário deter-se nesta ou naquela passagem para melhor captar o que Philogônio afirma com aparente despretensão. Em meio ao discurso extenso, o trecho mais ligeiro registrado às pressas como sintoma da visão estreita do narrador, para causar-nos maior impacto: "Mal comparada, raça de preto é como raça de jegue, e raça de branco, como de cavalo." (p. 259)