Introdução a Tragédia de Sófocles (original) (raw)

1867, ele afirma o desejo de "vestir artisticamente" seu trabalho sobre Diógenes de Laércio; 5 a Erwin Rohde, por sua vez, em 4 de agosto de 1871, confirma a impressão do amigo acerca de sua conferência "Sócrates e a tragédia", que Rohde chamara de "obscuridade púrpura", expressão que Nietzsche mobilizará contra a pretensão de clareza e objetividade da filologia universitária. 6 Ambas as expressões ganharam, por sua vez, uma espécie de síntese avant la lettre, em uma carta a Rohde, escrita entre o final de janeiro e 15 de fevereiro de 1870: a pretendida junção entre ciência, arte e filosofia significava poder, pelo menos uma única vez, "parir centauros". 7 Nessa perspectiva, é importante reiterar que Nietzsche não abandona completamente suas raízes filológicas, mas estabelece com elas um permanente diálogo e, ao mesmo tempo, uma confrontação. Devido a essas raízes, ele não poderia ignorar os inúmeros trabalhos publicados sobre o tema da tragédia antiga, embora, com freqüência, discorde deles. Não obstante, nessas preleções Nietzsche os cita, parafraseia, transcreve trechos inteiros de alguns, alude a outros. Mobiliza, igualmente, seu grande conhecimento da literatura greco-romana, dos clássicos estudos biográficos acerca das "vidas ilustres" ou da "vida dos filósofos", assim como das compilações de excertos, fragmentos e escólios, que constituíam, em grande parte, o "tesouro" que em pouco tempo a filologia já havia acumulado. Mas, apesar disso, já deveria causar bastante estranheza entre seus ouvintes que a recente tradição filológica caminhasse junto, e às vezes um passo atrás, seja da filosofia, seja dos dramaturgos que, como Goethe, Lessing e Schiller na Alemanha e Grillparzer na Áustria, refletiram sobre suas práticas. Sem esquecer que esses dramaturgos também se perguntaram, tal como os filósofos o farão a partir de Schelling, acerca da natureza do trágico. Esse é, especialmente, o caso de Schiller, personagem importante nessas preleções. Não se trata, porém, apenas de colar, um ao lado do outro, dois registros argumentativos, o filológico e o filosófico, como se eles fossem equivalentes nas suas pretensões e objetivos. Mas de, reconhecendo suas especificidades, pouco a pouco construir uma espécie de terceiro registro, de terceira possibilidade, qual seja, a de uma reflexão filosófica que tomasse a seu serviço a filologia, naquilo que esta, segundo Nietzsche, teria de melhor: a implosão de todo e qualquer significado transcendente, que pudesse enfim servir como um referente último, como verdade absoluta. Isto significa uma atenção paciente e cuidadosa às palavras, sua inserção no fluxo da história, que acaba por exigir um outro tipo de leitor, igualmente paciente e cuidadoso. Nietzsche marcava assim sua distância crítica em relação às duas grandes figuras de leitor que emergem no século XIX: o leitor de romances e sua empatia com o texto e o leitor do jornal diário, que se contenta em estar "bem informado". Lembremos, a propósito, a célebre passagem de Ecce homo, tantos anos depois, onde exige ser lido "como os bons filólogos de outrora liam o seu Horácio." 8 De uma maneira muito geral, este é o pano de fundo do trabalho de Nietzsche como professor de filologia na Basiléia, uma universidade ainda pequena, se comparada aos grandes centros universitários onde ele estudara na Alemanha, seja em Bonn, seja em Leipzig 9 (em 1870, ano dessas preleções, a Universidade da Basiléia tinha um total de 116 alunos, distribuídos nas suas quatro faculdades). Mas era uma universidade que apostava no talento e capacidade dos jovens, e por isso não é de espantar o fato de que Nietzsche, tão jovem ainda, com apenas 24 anos, tivesse sido admitido como professor. Nesse diapasão, as Vorlesungen, ao lado do trabalho de pesquisa, constituíam um dos pontos altos do exercício do magistério superior no sistema educacional "germânico", modelo que a Suíça de língua alemã seguia. Como o próprio nome indica, vorlesen significa ler em voz alta. No caso, em pé, na tribuna e vestido a caráter, ler um texto previamente escrito, diante dos alunos, que devem permanecer em silêncio e nada perguntar, nem durante e nem depois da preleção. Pode-se imaginar um certo desconforto de Nietzsche em seguir à risca as regras da tradição universitária. O tema "tragédia" passou a ocupá-lo de maneira mais intensa a partir do outono de 1866. Em carta a Hermann Mushacke, escrita em novembro de 1866, ele se refere ao projeto de uma palestra na Sociedade Filológica de Leipzig, que nunca chegou a se realizar e cujo tema seria a "teoria da interpolação nos poetas trágicos gregos", isto é, uma teoria acerca da inserção deliberada, numa cópia, de elementos estranhos ao original; 10 ao mesmo destinatário, um pouco depois, em 11 de janeiro de 1867, falava de uma "sistemática das interpolações". 11 Ao mesmo tempo, diversos tipos de referência ao tema-conjecturas, pesquisas acerca de determinadas palavras, interpolações em Ésquilo, Sófocles e Eurípides, anotações específicas sobre peças de Ésquilo-aparecem nos inúmeros esboços que se seguem a 1866. É lícito supor que todo esse interesse decorre, em grande parte, das preleções de seu orientador Friedrich Ritschl no semestre de inverno de 1865/1866, em Leipzig, acerca da "História da tragédia grega e uma introdução aos 'Sete contra Tebas', de Ésquilo", que ele acompanhara como aluno. 12 A partir desse momento, Nietzsche projeta escrever artigos com títulos como "Sobre a culpa na estética da Antigüidade. Tendência da tragédia", "Pessimismo na Antigüidade" e "Tragédia e destino", ou ainda anota: "As palavras-chave: 'desenvolvimento da tragédia' e 'catarse'". Não se pode deixar de assinalar ainda que determinadas questões e temas que esses projetos anunciam são também conseqüências de sua leitura de O mundo como vontade e representação , de Schopenhauer, no outono de 1865, assim como de seu encontro com Wagner três anos depois, no outono de 1868. A aproximação de Nietzsche com Wagner se intensifica, facilitada em parte pela pequena distância entre Basiléia e Tribschen, e a questão da tragédia passa a ocupar cada vez mais o centro dos interesses comuns aos dois amigos. Nietzsche se aproveita de suas atividades na Universidade para dedicar-se cada vez mais ao estudo da tragédia. Isso era possível também pelo fato de que o seu contrato de professor previa que uma parte da sua carga horária deveria ser utilizada no Pädagogium. O Pädagogium era o nível intermediário entre os seis anos do ginásio e a universidade, uma espécie de nível secundário ou médio, diríamos hoje, e consistia, no seu todo, em três anos de curso, divididos semestralmente. Nietzsche dava aula nos últimos semestres do Pädagogium, numa média de seis horas semanais, e passou também a utilizar essa atividade como uma espécie de preparação para os cursos que deveria ministrar na Universidade. Assim, por exemplo, as preleções sobre Sófocles foram antecipadas, no Pädagogium, pelo curso intitulado "Desenvolvimento do drama grego", ministrado no semestre de verão de 1869. E no verão seguinte, enquanto na Universidade aconteciam as preleções sobre Sófocles, no Pädagogium Nietzsche lia, com seus alunos, "As bacantes", de Eurípides. Além disso, tanto no Pädagogium quanto na Universidade, ele tratava da poesia lírica grega e da história da métrica grega. Em outras palavras, os centauros estavam sendo gerados. Não é por acaso, portanto, que durante o período das preleções sobre Sófocles aparecem na correspondência de Nietzsche inúmeras referências aos outros textos que hoje são considerados como "preparatórios" ao Nascimento da tragédia, ou ainda referências