Guia politicamente incorreto da política brasileira Rodrigo da Silva (original) (raw)
Não consigo chamar de politicamente incorreta a clara exposição de um quadro tenebroso, fruto de investigação fundada e profunda, diagnóstico detalhado das patologias que assolam o sistema político e os poderes públicos do Brasil. Este guia é corretíssimo, incorreta é a realidade aqui descrita. Aliás, incorreta é apelido, eufemismo brabo. O que aqui se demonstra, de forma equilibrada e cirúrgica, muito mais que incorreto, é indecente, de arrepiar qualquer ser minimamente dotado de senso moral; é escandaloso, revoltante, nojento, tétrico. (Deixa eu gastar todos os adjetivos no prefácio, pois o texto beira o irrefutável de tão substantivo.) Logo na introdução, em bem-vindo "disclaimer" (aviso legal), Rodrigo da Silva promete o que irá de fato cumprir: Nas próximas páginas, você não encontrará em nenhum capítulo, em qualquer contexto, palavras como esquerda ou direita, ou ainda socialismo, conservadorismo ou (neo)liberalismo. Porém, não se confunda tal independência com neutralidade forçada, o ponto de vista de Rodrigo se expõe com clareza. O autor observa nossa realidade de um posto altamente subversivo, quase banido de nossa prática, anátema da cultura brasileira: o lugar da racionalidade. E é uma razão solidária, movida por compaixão discreta, quase disfarçada sob tantos números, dados, estatísticas, planilhas, documentos; numa palavra: e-vi-dên-ci-as. Pois então. Volto a repetir: este guia nos conduz, de forma mais que correta, precisa, pelos círculos malditos da, esta sim, incorreta política brasileira. Aliás, vamos aproveitar a oportunidade para tentar resgatar o sentido de "correção política". Nos tempos que correm-de saudável dissolução de valores podres e do insalubre vácuo que por ora se segue e se instala-; nesses dias em que se levam a sério abundantes sandices populistas, mas que rir de uma piada pode levar o sujeito à prisão, ou pior, ao tribunal pré-hamurábico da internet; valei-nos a razão neoiluminista aqui representada por Rodrigo da Silva. Rodrigo não esquece, e pratica nesta obra, o lema iluminista expresso por Emanuel Kant: "Ouse compreender!" (Sim, há um movimento neoiluminista, libertário, no panorama intelectual do mundo, representado por nomes como Steven Pinker, Antonio Damasio, Yuval Noah Harari, Jordan Peterson e Hans Rosling, entre outros. No Brasil, arriscaria apontar Eduardo Gianetti e Fernando Gabeira como dois que estão antenados nessa onda, cientes de que já há no horizonte, na vanguarda do pensamento, projeções, interpretações e especulações de como e o que será o mundo da governança pós-governo, e qual será o capitalismo pós-capitalismo-pois sabemos que o capitalismo se transforma, enquanto suas defuntas alternativas jazem fossilizadas.) Essas páginas, além de retrato sem filtro de brutal realidade, podem bem servir como manual de referência a quem se dispuser, paciente, honesta e tenazmente, a promover mudanças no "status 'cocô'" que nos domina há séculos. Bastaria a homens de boa vontade seguir o inventário de absurdos aqui organizado para iniciar o tremendo e inevitável trabalho de desmonte do edifício disfuncional e torto, erguido desde nosso "descobrimento"-o monumento é antigo e parece inexpugnável, mas nem por isso é invulnerável ou imutável. Não temos por que e não podemos aceitar o inaceitável como fato da vida, ou traço cultural. Não! Nossa cultura, em sua mestiçagem única e exemplar, pode, ao contrário, nos servir de aliada na demolição das estruturas que criaram, adubam e perpetuam a vergonhosa desigualdade brasileira. Rodrigo desvela, com paciência e exatidão, os mecanismos pelos quais o Estado brasileiro se tornou o principal promotor e mantenedor de nossas iniquidades. A começar pela descrição minuciosa das perversões de nosso poder legislativo, vítima do que Rodrigo qualificou de "diarreia institucional" (e olha que ele foi elegante na classificação!), somos levados ao misto de trem-fantasma com montanha-russa dos poderes Executivo e Judiciário. Por exemplo, no Rio de Janeiro, da guerra civil não declarada, da intervenção militar semicrônica: "A Câmara dos Vereadores do Rio gasta anualmente R$ 3,6 10 produtos genuínos da maior fábrica de leis estúpidas de Constituição e Justiça (CCJ) da Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG). Com o microfone ligado, Attiê satirizou a proposta: "Coach?? Esses deputados, é brincadeira, viu…" Só tinha um problema: como o presidente da comissão anunciaria segundos depois, o projeto era do próprio deputado… E as nossas Assembleias Legislativas não se contentam em homenagear apenas as profissões. Além delas, só em 2016, ganharam datas comemorativas em diferentes estados brasileiros também o Funk, a Paz nos Estádios, a Gastronomia Goiana, o Poderoso Sermão da Montanha, os Quadrinhos, a Festa da Melancia e o Lazer da Família. Das 4.661 leis aprovadas nas 26 Assembleias Legislativas e na Câmara Legislativa do Distrito Federal em 2016, apenas 35% tiveram impacto real no dia a dia das pessoas-ou seja, tratavam de assuntos como a regulação de atividades comerciais ou modificações orçamentárias ou tributárias. As demais, 65% da produção legislativa estadual, se referiam a questões burocráticas menores, como a atribuição de nomes de ruas e avenidas, a criação de datas comemorativas e homenagens. A maior parte das leis aprovadas no períodocerca de 1.200-tratava de transformar entidades em utilidade pública, permitindo que recebessem recursos dos cofres estaduais (em muitos casos, sem licitação). 28 Só Minas Gerais aprovou 360 leis dessa natureza em 2016, 29 declarando utilidade pública até a escolinha de futebol de Cachoeira da Prata, um município com 3.654 habitantes no interior do estado. Em Florianópolis, as homenagens estavam no topo das propostas que tramitaram de janeiro a agosto de 2017 na Câmara de Vereadores. Dos 103 projetos de lei e de resolução com tramitação concluída nesse período, 59% diziam respeito a algum tipo de homenagem ou honraria. 30 E com os mais diversos fins: semana de comemoração à criação de bairros, dos conselhos comunitários, do profissional de educação física, do animal doméstico, Dia do Rock, do Jovem Empreendedor, da Bíblia. Nos decretos, um festival de coresfevereiro dourado do esporte, março verde, setembro branco. Na Câmara do Rio de Janeiro, nada muito diferente: um quarto dos projetos apresentados diz respeito a nomes de ruas ou homenagens. Segundo um levantamento da CBN, 76 dos 296 projetos de lei lançados aos vereadores no primeiro semestre da gestão Marcelo Crivella (PRB) não tinham qualquer importância para os cariocas. Em seis meses, 141 leis foram aprovadas na cidade: 20% delas sobre nomes de rua e homenagens. Nada disso é qualquer exceção na história da legislação carioca. Das últimas cem propostas apresentadas na gestão de Eduardo Paes (MDB), 35 diziam respeito a nomes de ruas e homenagens. 31 Homenagear alguém, aliás, é o que não falta no Rio. Tem pra todos os gostos. Charles Darwin, d. Pedro II, Martin Luther King. Conceder medalhas é quase uma modalidade esportiva na cidade. A Pedro Ernesto, a principal condecoração carioca, desde a sua criação, em 1980, já foi dada para cerca de cinco mil pessoas. 32 Até os descendentes do prefeito Pedro Ernesto, morto em 1942, criticam a falta de rigor na concessão da homenagem. 33 Por ano, cada vereador carioca pode premiar até onze pessoas com medalhas: cinco com a Pedro Ernesto, cinco com a São Francisco de Assis e uma com a Chiquinha Gonzaga. O modelo funciona como um sistema de pontos (caso um vereador não gaste sua cota num intervalo de doze meses, pode acumular medalhas para o ano seguinte). Em 2006, Carlos Bolsonaro (PSC) escolheu a aposentada Dora dos Santos Arbex para receber uma Medalha Pedro Ernesto. O motivo: ter atirado num ladrão. Ao receber a principal homenagem que o Rio de Janeiro presta a quem mais se destaca na sociedade brasileira ou internacional, Dora discursou pedindo leis que proíbam moradores de rua de terem filhos e conclamou as "mulheres cariocas" a realizar um mutirão para expulsar mendigos das ruas: 34 "Tem que ter albergue. Se não tem albergue, que fique no meio do mar. Bota num navio e descarrega longe." Em 1991, a Medalha Pedro Ernesto foi dada ao bicheiro Carlos Teixeira Martins, o Carlinhos Maracanã. Em 2005, a Câmara dos Vereadores premiou o inspetor Félix dos Santos Tostes, apontado como o chefe da milícia de Rio das Pedras, dois anos antes de ser assassinado. Nadinho-outro miliciano, acusado de planejar o assassinato do inspetor Félix-recebeu a homenagem em 2006. Ele morreu assassinado três anos depois. Analisando as 30.177 proposições dos 33 vereadores reeleitos no Rio em 2016, 67% delas (20.316 no total) não fariam falta. 35 A análise seguiu critérios da ONG Transparência Brasil, que considera "homenagens, batismo de logradouros, simbologia, cidades-irmãs, pedidos de convocação de sessões solenes para comemorações e homenagens, datas comemorativas e criação de honrarias" como propostas "sem relevância". Dos dez vereadores com percentual mais alto nessa categoria, seis são do MDB. 36 Em 2017, os vereadores do Rio atingiram a incrível marca de 4.460 homenagens na Câmara Municipal. 37 E ninguém trabalhou mais por esses números do que o bispo da Igreja Universal do Reino de Deus, João Mendes de Jesus (PRB): foram 877 homenagens num intervalo de apenas doze meses. Das 4.378 proposições apresentadas ao longo de todo o mandato pelo bispo João, 96,6% não tiveram qualquer utilidade pública (só de moções de louvor e aplausos foram 4.201, a maioria esmagadora delas a pastores, diáconos, bispos, reverendos, apóstolos e missionários evangélicos). Homenagear líderes religiosos, aliás, é outro esporte favorito dos vereadores cariocas. Na legislatura 2013-2016, a vereadora Tânia Bastos, do mesmo PRB, concedeu trinta de suas moções a missionários religiosos. No mesmo período, o vereador Eliseu Kessler, do PSD, concedeu moções de louvor e aplausos a dez pastores-ele também defendeu a cessão de um selo de utilidade pública para...