Pandemia nas favelas: entre carências e potências (original) (raw)

A pandemia da Covid-19 espalhou-se desde as classes médias altas para as populações de favelas e periferias. Embora tenha atingido diferentes classes sociais, as condições sociais e sanitárias absurdamente diferenciadas, além do descaso das políticas públicas, colocaram os moradores das favelas em uma situação de extrema vulnerabilidade. Ficou patente que as condições de determinação social da saúde e da doença, associadas às políticas e acesso aos serviços de saúde, condicionam as possibilidades daqueles que sobreviverão e dos que morrerão, para além das condições pessoais; o que inclui condições como falta de saneamento, abastecimento irregular de água e coleta de lixo, precárias condições de urbanização e de moradia, aliadas às carências nutricionais e insegurança alimentar. A estas, somam-se as dificuldades de acesso aos serviços de saúde, a exames e medicamentos, gerando uma situação de peregrinação que materializa o contradireito à saúde. Para Foucault 1 , enquanto a ordem política cria laços jurídicos igualitários entre os cidadãos, as disciplinas operam como um contradireito, pois produzem assimetrias insuperáveis. Em estudo sobre a atenção hospitalar, Fleury 2(51) identifica que A precariedade das condições de funcionamento [...] se torna um dos fatores fundamentais de concretização do contradireito à saúde. A banalização das injustiças provocadas pela inexistência das condições necessárias ao funcionamento em padrões de qualidade torna os profissionais e usuários reféns da precariedade, o que se expressa, no caso do usuário, no sofrimento das peregrinações de uma a outra unidade, e, no caso dos profissionais, na impossibilidade de atender à demanda com qualidade. A ampliação do atendimento na atenção primária buscou tanto estabelecer um vínculo dos moradores com os serviços de saúde quanto reduzir a peregrinação por meio do encaminhamento dos pacientes. No entanto, no contexto da pandemia, a ausência de políticas, recursos e orientações específicas para o atendimento na atenção primária reduz a capacidade resolutiva desse nível de atenção, o que aumenta os riscos para os profissionais e para a população de favelas, estimada, no censo de 2010, em 22,03% dos moradores em 762 favelas na cidade do Rio de Janeiro.