O Feminino na Literatura Grega e Latina (original) (raw)

APRESENTAÇÃO As imagens construídas em torno de figuras femininas na tradição literária grega e latina vêm reproduzindo ao longo dos tempos o discurso predominante de autoria masculina, que, amiúde, retrata personagens femininas de modo a traduzir a idealização de uma sociedade, cujo poder, em grande parte, está concentrado em mãos masculinas. Essa configuração expressa a concepção de um corpo dominante, configurando, dessa forma, as percepções socioculturais, que moldam, moralmente e retoricamente, a representação das mulheres no imaginário grego e latino. O artigo Romanas por elas mesmas (1995) de Funari é um importante exemplo de como o discurso feminino pode ser tomado como fonte primária e, especialmente, de como os estudiosos dos estudos clássicos devem estar atentos à crítica de senso comum. A representação feminina construída pela tradição literária grega e latina vem sendo difundida por fontes secundárias produzidas, em sua maioria, também por autores homens, uma vez que o legado dos estudos clássicos vem sendo transmitido por um corpo predominantemente branco e masculino (Skinner, 1993: 181). Esse cenário tem sido questionado a partir do avanço e da consolidação de movimentos sociais fundamentais, que pautam, dentre muitas outras demandas relevantes, o seu “lugar de fala”, no sentido difundido pela filósofa brasileira Djamila Ribeiro, que apresenta em seu livro O que é lugar de fala? (2017) e que é retomado em outros livros como o Pequeno manual antirracista (2019), uma problematização em torno do locus social, que, segundo a autora, deve ser observado para compreender de que ponto as pessoas partem para perceber e ser no mundo (Ribeiro, 2017: 2019). Para compreender melhor o sentido de locus social, Djamila esclarece, a partir das reflexões da socióloga norte americana Patricia Hill Collins, uma das primeiras autoras da teoria do ponto de vista feminista (standpoint feminism), que “quando falamos de pontos de partida, não estamos falando de experiências de indivíduos necessariamente, mas das condições sociais que permitem ou não que esses grupos acessem lugares de cidadania” (2017, p.34). Em meio ao profícuo cenário de crítica social no qual nos encontramos, podemos destacar o movimento feminista, o movimento negro e o movimento decolonial como as lutas que mais têm inspirado o que poderíamos chamar de novos estudos clássicos. Trata-se de pesquisas orientadas por pensamentos que traduzem as questões do nosso tempo e que vêm fornecendo novas epistemologias que nos conduzem a novos questionamentos . São essas novas questões que têm nos revelado uma nova Grécia e uma nova Roma Antiga e que têm alimentado e fortalecido o nosso diálogo com essas Antiguidades. Nessa perspectiva, alguns temas têm sido discutidos mais profundamente em estudos recentes, ressaltando questões próprias da mulher e do corpo feminino, tais como as pesquisas realizadas no âmbito do projeto Gynecia , que se dedica a analisar a forma como a saúde da mulher, a ginecologia e a embriologia são exploradas pela tradição antiga a partir do tratado De uniuersa mulierum medicina de Rodrigo de Castro Lusitano. Sob a perspectiva, tão somente, de mulheres, professoras e pesquisadoras de língua e literatura grega e latina de inúmeras instituições nacionais de ensino superior, e tomando como fonte primária a literatura grega e latina, esta coletânea reúne estudos que tomam como assunto personagens femininas míticas, históricas e literárias, propondo questões que inquietam mulheres deste tempo, de modo a reconfigurar as figuras femininas como sujeito social, cultural e político. As organizadoras Referências bibliográficas RIBEIRO, Djamila. O que é lugar de fala. Belo Horizonte: Editora Letramento, 2017. RIBEIRO, Djamila. Pequeno manual antirracista. São Paulo: Companhia das Letras, 2019. SKINNER, Marilyn: "Woman and Language, in Archaic Greece, or Why is Sappho a Woman?". In: RABINOWITZ, N.S. e RICHLIN, A. (eds.): Feminist Theory and the Classics. Londres: Routledge, 1993.