A LIBERDADE E A GRAÇA EM AGOSTINHO DE HIPONA (original) (raw)

AGOSTINHO+DE+HIPONA

Agostinho foi, provavelmente, o grande pensador cristão da Idade Média. Por quase dois mil anos sua produção teológica tem pautado os grandes debates do cristianismo e influenciado o pensamento e cultura do Ocidente. Do ponto de vista católico, Joseph Aloisius Ratzinger ratifica essa impressão, ao dizer: "Agostinho deixou uma marca profunda na vida cultural do Ocidente e de todo o mundo. Sua influência é vastíssima. (...) Raramente uma civilização encontrou um espírito tão grande, com ideias e formas que alimentariam gerações vindouras." 1 A Reforma Protestante do século XVI, fundamental ao avivamento da fé e espiritualidade cristã, até então adoecida mortalmente pelo desvio teológico, corrupção e misticismo, deve a Agostinho o cerne de suas principais proposições, particularmente em questões como o pecado original, a graça de Deus, a salvação e a predestinação, além do exemplo de seu vigoroso ministério pastoral. O teólogo luterano Richard Balge, citando um colega, disse que: "Se Agostinho de Hipona tivesse vivido no tempo da Reforma, ele teria se juntado a Martinho Lutero". 2 O teólogo presbiteriano B. B. Warfield, por sua vez, disse que "o sistema de doutrina ensinado por Calvino é somente o agostinianismo, conforme se vê em todos os demais reformadores. Pois, se a Reforma foi, do ponto de vista espiritual, um grande avivamento da religião, do ponto de vista teológico foi um grande reavivamento do agostinianismo". 3 E o

O CONCEITO DE LIBERDADE EM SANTO AGOSTINHO

1. Ideias fundamentais sobre o livre-arbítrio 1. 1. A origem do pecado O termo "livre-arbítrio" na etimologia latina significa livre decisão. Na perspectiva inaugurada por Santo Agostinho, a liberdade passou a ser uma opção do ser humano de determinar o seu caminho, cujos parâmetros de escolha estão delimitados por uma ordem exterior. a qual estabelece o "valor" ou o "desvalor" de cada opção. No pensamento de Santo Agostinho há várias dicotomias que orientam a sua concepção de livre-arbítrio, que podem ser agrupadas em dois grupos opostos, conforme segue no quadro abaixo. Esses conceitos são fundamentais em seu pensamento, porque o livre-arbítrio consiste na opção do ser humano entre buscar o bem (retidão) ou buscar o mal (pecado). Bem Mal Existência Ausência Retidão Pecado Razão Paixão Felicidade Infortúnio Lei Eterna Lei Temporal Quadro 1: Dicotomias no pensamento de Santo Agostinho Para um cristão, é um dilema saber que Deus, criador de tudo o que existe com perfeição, possa ter criado o mal. São inevitáveis as perguntas: sendo Deus perfeito, como pode existir o mal? Ou, ainda, se o pecado procede dos seres criados por Deus, como não Lhe atribuir a existência dos pecados? Para Santo Agostinho o livre arbítrio define o mal como sendo a ausência de Deus. (Agostinho, 1995, p. 142-3) Essa ausência é decorrência da opção do ser humano por um caminho que o afaste do bem, uma vez que o mal não pode vir de Deus. Assim surge a ideia de livre-arbítrio, como aquilo que confere ao ser humano a vontade livre de decidir seguir um ou outro caminho. Logo, a fonte do mal é o próprio ser humano, que, por livre decisão, afasta-se de Deus e, consequentemente, cria o mal. Esta dicotomia entre o bem e o mal preparou o terreno para a formulação de dois conceitos que estruturam a noção de livre-arbítrio: a retidão e o pecado. A retidão consiste na submissão das paixões à razão. O pecado, por sua vez, é o inverso: consiste na submissão da razão às paixões. A causa do pecado é a vontade livre decorrente do livre-arbítrio, uma vez que nada força a razão submeter-se às paixões, nem esta à razão. Por isso, só quem tem o livre-arbítrio pode pecar. Um problema surge: se o livre-arbítrio é a origem do mal no mundo, por que Deus o deu ao ser humano? Ou seja. se não houvesse o livre-arbítrio, não haveria pecado. Em resposta a essa indagação, Santo Agostinho diz que o livre-arbítrio é um bem e um dom de Deus. Ele dá o exemplo da visão, que é um dom de Deus, que permite ao ser humano enxergar. Não é porque se pode pecar por meio dos olhos (cobiça) que Deus não deveria ter dado a visão. Por causa do livre-arbítrio, o insensato, isto é, o ser humano cuja mente é dominada pelas paixões, pode, com justiça, ser castigado, por ter feito um mau uso do seu livre-arbítrio. (Agostinho, 1995, p. 75) Sem o livre-arbítrio, não existiria justiça nem a retidão. De nada adiantaria elogiar os retos e condenar os maus. O problema do livre-arbítrio está em fazer mau uso deste, e não, de condenar Deus por tê-lo concedido ao ser humano. Em tese, para Santo Agostinho, o ser humano tem a possibilidade de não pecar e o poder de decidir se quer ou não pecar. É nesse sentido que deve se compreender o livre-arbítrio como causa do pecado. Estabelecido que a causa do pecado era o livre-arbítrio, surge a necessidade de saber o que era ou não era pecado. Para tanto, Santo Agostinho lança mais uma dicotomia: a lei eterna e a lei temporal. A lei eterna é a razão suprema de tudo (Naus), à qual é preciso obedecer sempre e em virtude da qual os seres humanos bons merecem uma vida feliz (felicidade), e os maus, uma vida infeliz (infortúnio). (Agostinho, 1995, p. 41) Ela ordena ao ser humano que se desapegue do amor pelas coisas temporais e que se volte para as coisas eternas, que conduzem à beatitude. Por ser a razão suprema, a lei eterna é a Verdade e a verdadeira liberdade consiste em seguir a lei eterna. A Verdade está na mente humana, isto é, na razão, já que é por meio da razão que se descobre a Verdade. Santo Agostinho diz: "'A nossa liberdade consiste em estar submetido à Verdade. Essa Verdade é o nosso

A EDUCAÇÃO NO CAMPO À LUZ DA FILOSOFIA DE AGOSTINHO DE HIPONA

2022

Este trabalho procura demonstrar, por meio de uma pesquisa bibliográfica, até que ponto a educação no campo estar em sintonia com a realidade dos alunos. A princípio, busca-se contextualizar a educação numa dimensão distinta dos centros urbanos, em seguida, trata-se dos desafios que esta prática educativa enfrenta para concretizar-se no ambiente camponês. Considerando que, é no campo que encontra-se a pérola que gera os benefícios para os grandes centros, a tarefa da educação consiste em dinamizar a parte intelectual que está intrínseca nos estudantes camponeses, uma vez que estes, alcançam acompanhar à dinâmica da vida no aspecto real. Por fim, buscando acentuar a capacidade interior de aprender, à luz da filosofia de Agostinho, na obra De Magistro, percebe-se que estes estudantes tem um potencial relevante tão quanto àqueles que nasceram nos centros urbanos. A gestão escolar procura despertar estratégias que visam enfrentar os desafios que a educação no campo interpõe, mediante as condições inatas e a participação de cada indivíduo.

OBEDIÊNCIA E LIBERDADE EM HOBBES E ESPINOSA

De acordo com Antonio Negri e Michael Hardt, a modernidade é marcada por um conflito 2 "entre as forças imanentes de desejo e associação e a mão forte de uma autoridade que impõe e faz cumprir uma ordem no campo social" 3 . Para estes autores, mais do que o processo de secularização que negou a autoridade divina e superou uma concepção teológica da vida 4 e dos negócios mundanos, a gênese da modernidade pode ser definida a partir da descoberta do plano de imanência. Ou seja, da percepção, pelos homens, deste mundo como um terreno constituinte, imanente de conhecimento e de ação e da humanidade como detentora de um poder de criação. Esse movimento tem reflexo também na ordem política, com efeito, a autoridade política é refundada com base em um fator humano 5 . Essa transformação instaura uma guerra entre o processo revolucionário radical que institui o plano de imanência e uma contrarrevolução filosófica social e política, dedicada a sufocar tal movimento. A modernidade, portanto, não é monolítica, pelo contrário, ela pode ser definida como crise entre as forças imanentes e o poder transcendente que visa a restaurar a ordem 6 . O conflito se coloca na renascença e, "no século XVII, o conceito de modernidade como crise estava 1 O presente estudo corresponde ao relatório apresentado à disciplina Ciência Política, da regência do Professor Doutor Luís Pedro Pereira Coutinho, do Curso de Mestrado em Ciências Jurídico-Políticas da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. 2 Para uma discussão mais profunda em torno da modernidade como crise e uma aplicação deste conceito aos diferentes movimentos revolucionários modernos, da renascença italiana ao marxismo, ver: NEGRI, Antonio. O Poder Constituinte: Ensaio Sobre as Alternativas da Modernidade. Rio de Janeiro: DP &A, 2002. 3 NEGRI, Antônio e HARDT, Michael. Império. Rio de Janeiro: Record, 2001, p. 89. 4 MACHADO, Jónatas. Liberdade de Expressão: Dimensões Constitucionais da Esfera Pública no Sistema Social. Coimbra: Coimbra, 2002, p. 18 e seguintes. 5 NEGRI, Antônio e HARDT, Michael. Império..., p. 91. 6 NEGRI, Antônio e HARDT, Michael. Império..., p. 92. definitivamente consolidado" 7 na oposição entre as convulsões sociais que compunham o plano de imanência e o poder absoluto transcendente. Essa cisão tem expressão também no campo da filosofia política e é marcante no contraste entre Hobbes e Espinosa. Assim, de um lado temos o pensamento de Thomas

A VONTADE COMO AÇÃO LIVRE E O PROBLEMA DA LIBERDADE EM SANTO AGOSTINHO

Resumo: O presente trabalho visa fazer uma reflexão sobre a faculdade da vontade, essencialmente criadora e livre, e o problema da liberdade em Santo Agostinho. Contrario a explicação dualista maniquéia, na qual o homem, possuidor de duas almas sendo uma presidida pelo principio do bem e outra pelo principio do mal, não é livre nem responsável pelo mal que faz, sendo-lhe este imposto, Agostinho acredita que o homem é dotado da faculdade da vontade, a qual intervém em todos os atos do espirito e constitui o centro da personalidade humana. Deste modo, a vida moral se traduz numa sequência de atos individuais de escolha, sendo que cada um deles implica uma tomada de posição em face as coisas. O homem pela vontade, essencialmente criadora e livre, como conhecedor da justa ordem, escolhe dentre as coisas que o rodeiam, algumas para serem gozadas e outras apenas para serem usadas. Desta forma, a nossa conduta, o poder de agir como queremos é, diferentemente da ideia maniqueísta, uma decisão soberana, um arbítrio, pois, nada pode forçosamente conduzir o homem as más ações, podendo apenas tentá-lo ou seduzi-lo, mas não obrigá-lo a seguir-lhe, cabendo, assim ao homem julgar e escolher por livre-arbítrio. Contudo, esse poder de escolha ainda não é, para Santo Agostinho, a liberdade, pois essa se dá somente quando a vontade se volta para o bem.

O ALÉM. A CONDUTA RELIGIOSA EM AGOSTINHO DE HIPONA

Este trabalho tem o intuito de reunir breves entendimentos acerca do discurso eclesiástico, representado por Agostinho de Hipona, em que tem o intuito de normatizar as condutas humanas nos primeiros séculos da Igreja Católica, principalmente utilizando o mecanismo do Além, especialmente o Além enquanto inferno e purgatório. O presente trabalho também abarca algumas discussões acerca do período histórico em que Agostinho estava inserido e que pode ter influenciado ele a reler e criar condutas morais religiosas.

SANTO AGOSTINHO O LIVRE ARBÍTRIO

enfermidade. Passada a comoção do desenlace, Agostinho decide permanecer em Roma o inverno de 387 e todo o ano de 388. Preocupado como estava de defender-se do maniqueísmo e alertar a seus amigos, compôs diversos tratados, entre outros: "De moribus Ecclesiae Catholicae" e "De moribus maniquaeorum", e a presente obra: "De libero arbitrio". A redação desta última, porém, iniciada em 388, não pôde ser terminada. Após o regresso a Tagaste, continuou-a, mas não havia ainda sido concluída, quando, em 391, foi constrangido a ser ordenado padre, por insistência do povo de Hipona. Somente aí, como presbítero, Agostinho conseguiu pôr termo ao trabalho, entre 394 e 395. (p.11) Como prova desta data, temos uma carta sua ao amigo Paulino, bispo de Nola (carta 31,7), do início do ano 396. Junto à missiva, enviava um exemplar dos três livros de "O livre-arbítrio", recém-terminado. 2. Evódio A obra, em forma dialogada, é em grande parte o relato das conversas de Agostinho com Evódio, seu amigo e conterrâneo. Era este já homem formado, quando conheceu Agostinho. Fora a princípio militar, tendo depois se dedicado às Letras. Convertido em Milão, recebeu o batismo pouco antes de Agostinho. Ficou a seu lado, após a morte de Mônica, em Roma, e em seguida foi para Tagaste, participar da primeira comunidade de monges. Mais tarde, em 396, tornou-se bispo de Upsala, perto de Útica, na África proconsular. Neste diálogo como em outro, igualmente mantido com Agostinho, o "De quantitate animae" ("Sobre a grandeza da alma"), vemo-lo sempre ser tratado com muita deferência e respeito. Suas insistências contribuem a trazer aos diálogos mais vida, mais rigor nas provas e, por vezes, mais complexidade e desenvolvimento. Acontece que no livro II da presente obra, Evódio, a partir do cap. 5,12, aparece brevemente uma única vez, no cap. 12,46. Deve-se essa ausência pelo fato de ele não ter acompanhado seu amigo até Hipona. LIVRO I O PECADO PROVÉM DO LIVRE ARBÍTRIO INTRODUÇÃO (1.1-2,5) O PROBLEMA DO MAL Capítulo I É Deus o autor do mal? 1. Evódio Peço-te que me digas, será Deus o autor do mal?¹ Agostinho Dir-ti-ei, se antes me explicares a que mal te referes. Pois, habitualmente, tomamos o termo "mal" em dois sentidos: um, ao dizer que alguém praticou o mal; outro, ao dizer que sofreu algum mal. Ev. Quero saber a respeito de um e de outro. Ag. Pois bem, se sabes ou acreditas que Deus é bom-e não nos é permitido pensar de outro modo-, Deus não pode praticar o mal. Por outro lado, se proclamamos ser ele justo-e negá-lo seria blasfêmia-, Deus deve distribuir recompensas aos bons, assim como castigos aos maus. E por certo, tais castigos parecem males àqueles que os padecem. É porque, visto ninguém ser punido injustamente-como devemos acreditar, já que, de acordo com a nossa fé, é a divina Providência que dirige o universo-, Deus de modo algum será o autor daquele primeiro gênero de males a que nos referimos, só do segundo. Ev. Haverá então algum outro autor do primeiro gênero de mal, uma vez estar claro não ser Deus? Ag. Certamente, pois o mal não poderia ser cometido sem ter algum autor. Mas caso me perguntes quem seja (p.25) o autor, não o poderia dizer. Com efeito, não existe um só e único autor. Pois cada pessoa ao cometê-lo é o autor de sua má ação. Se duvidas, reflete no que já dissemos acima: as más ações são punidas pela justiça, se não tivessem sido praticadas de modo voluntário.² O mal vem por ter sido ensinado? 2. Ev. Ignoro se existe alguém que chegue a pecar, sem antes o ter aprendido. Mas caso isso seja verdade, pergunto: De quem aprendemos a pecar? Ag. Julgas a instrução (disciplinam) ser algo de bom? Ev. Quem se atreveria a dizer que a instrução é um mal? Ag. E caso não for nem um bem nem um mal? Ev. A mim, parece-me que é um bem. Ag. Por certo! Com efeito, a instrução comunica-nos ou desperta em nós a ciência, e ninguém aprende algo se não for por meio da instrução. Acaso tens outra opção? Ev. Penso que por meio da instrução não se pode aprender a não ser coisas boas. Ag. Vês, então, que as coisas más não se aprendem, posto que o termo "instrução" deriva precisamente do fato de alguém se instruir. Ev. De onde hão de vir, então, as más ações praticadas pelos homens, se elas não são aprendidas? Ag. Talvez, porque as pessoas se desinteressam e se afastam do verdadeiro ensino, isto é, dos meios de instrução. Mas isso vem a ser outra questão. O que, porém, mostra-se evidente é que a instrução sempre é um bem, visto que tal termo deriva do verbo "instruir". Assim, será impossível o mal ser objeto de instrução. Caso fosse ensinado, estaria contido no ensino e, desse modo, a instrução não seria um bem. Ora, a instrução é um bem, (p.26) como tu mesmo já o reconheceste. Logo, o mal não se aprende. É em vão que procuras quem nos teria ensinado a praticá-lo. Logo, se a instrução falar sobre o mal, será para nos ensinar a evitá-lo e não para nos levar a cometê-lo. De onde se segue que, fazer o mal, não seria outra coisa do que renunciar à instrução. (pois a verdadeira instrução só pode ser para o bem). 3. Ev. Não obstante, julgo que há duas espécies de instrução: uma que nos ensina a praticar o bem, e outra a praticar o mal. Mas ao me perguntares se a instrução era um bem, o amor mesmo do bem absorveume a atenção de tal modo a me fazer considerar, unicamente, o ensino relativo às boas ações, motivo pelo qual respondi que ele era sempre um bem. Mas dou-me conta, agora, que existe um outro ensino, que reconheço seguramente ser mau, e de cujo autor indago. Ag. Vejamos. Admites pelo menos o seguinte: será a inteligência integralmente um bem? Ev. A ela, com efeito, considero de tal modo ser um bem, que nada vejo poder existir de melhor no homem. De maneira alguma posso considerar a inteligência como um mal. Ag. Mas quando alguém for ensinado e não se servir da inteligência para entender, poderá ser ele considerado como alguém que fica instruído? O que te parece? Ev. Parece-me que ele não o pode de modo algum. Ag. Logo, se toda a inteligência é boa, e quem não usa da inteligência não aprende, segue-se que todo aquele que aprende procede bem. Com efeito, todo aquele que aprende usa da inteligência e todo aquele que usa da inteligência procede bem. Assim, procurar o autor de nossa instrução, sem dúvida, é procurar o autor de nossas boas ações. Deixa, pois, de pretender descobrir (p.27) não sei que mau ensinante. Pois e, na verdade, for mau, ele não será mestre. E caso seja mestre, não poderá ser mau. ³ Capítulo 2 Por qual motivo agimos mal? 4. Ev. Seja como dizes, já que tão fortemente me obrigas a reconhecer que não aprendemos a fazer o mal. Dize-me, entretanto, qual a causa de praticarmos o mal? Ag. Ah! Suscitas precisamente uma questão que me atormentou por demais, desde quando era ainda muito jovem. Após ter-me cansado inutilmente de resolvê-la, levou a precipitar-me na heresia (dos maniqueus), com tal violência que fiquei prostrado. Tão ferido, sob o peso de tamanhas e tão inconsistentes fábulas, que se não fosse meu ardente desejo de encontrar a verdade, e se não tivesse conseguido o auxílio divino, não teria podido emergir de lá nem aspirar à primeira das liberdades-a de poder buscar a verdade. 4 Visto que a ordem seguida, então, atuou em mim com tanta eficácia para resolver satisfatoriamente essa questão, seguirei igualmente contigo aquela mesma ordem pela qual fui libertado. Seja-nos, pois, Deus propício e faça-nos chegar a entender aquilo em que acreditamos. Estamos, assim, bem certos de estar seguindo o caminho traçado pelo profeta que diz: "Se não acreditardes não entendereis". 5 Ora, nós cremos em um só Deus, de quem procede tudo aquilo que existe. Não obstante, Deus não é o autor do pecado. Todavia, perturba-nos o espírito uma consideração: se o pecado procede dos seres criados por Deus, como não atribuir a Deus os pecados, sendo tão imediata a relação entre ambos? (p.28). Pontos fundamentais da fé 5. Ev. Acabas de formular, com toda clareza e precisão, a dúvida que cruelmente me atormentou o pensamento, e que justamente me levou a me empenhar nesta reflexão contigo. Ag. Tem coragem e conserva a fé naquilo que crês. Nada é mais recomendável do que crer, até no caso de estar oculta a razão de por que isso ser assim e não de outro modo. Com efeito, conceber de Deus a opinião mais excelente possível é o começo mais autêntico da piedade. 6 E ninguém terá de Deus um alto conceito, se não crer que ele é todopoderoso e que não possui parte alguma de sua natureza submissa a qualquer mudança. Crer ainda que ele é o Criador de todos os bens, aos quais é infinitamente superior; assim como ser ele aquele que governa com perfeita justiça tudo quanto criou, sem sentir necessidade de criar qualquer ser que seja, como se não fosse auto-suficiente. Isso porque tirou tudo do nada. Entretanto, ele gerou, não criou, de sua própria essência, aquele que lhe é igual, o qual é como professamos, o Filho único de Deus. É aquele a quem nós denominamos, procurando as expressões mais acessíveis: "Força de Deus e Sabedoria de Deus" (1 Cor 1,24). Por meio dele, Deus fez tudo o que tirou do nada. Tudo isso tendo sido estabelecido, contando com a ajuda de Deus, procuremos agora, com empenho, compreender a questão por ti proposta, seguindo a ordem que se segue. (p.29).

AMOR E FINITUDE: UM DIÁLOGO ENTRE AGOSTINHO DE HIPONA E MAX SCHELER

RAMOS, D. R., 2018

Resumo: Priorizando como fio condutor a relação entre amor e finitude, a discussão estabelece um constan-te diálogo entre o pensamento filosófico-teológico de Agostinho e a fenomenologia de Scheler. Primeiramente, esclarece-se o horizonte a partir do qual a fenomenologia de Scheler visualiza o pensamento agostiniano ao con-siderá-lo sob a ótica da estrutura vivencial e fundamental do viver cristão. Evidenciando a ideia de ordo amoris, mostra-se a correspondência desta estrutura à reviravolta do amor cristão, assinalada por Scheler como a emer-gência da compreensão de um Deus amante. Para tanto, em seguida, discutem-se traços da hermenêutica agosti-niana da vida cristã, até revelar a caritas como sendo o amor que responde pela intencionalidade ordenadora da estrutura da existência humana no seu todo segundo o seu dinamismo essencial. Sob o ponto de vista desta fun-ção central da caridade, conclui-se indicando a necessidade de considerar a interdependência entre viver e mor-rer, para melhor compreender o sentido da estruturação da existência humana a partir da ideia de amor ordenado. Palavras-chave: fenomenologia, afetos, ordo amoris, caridade. Abstract: Prioritizing the guiding thread of the relationship between love and finitude, the discussion establishes a constant dialogue between Augustine's philosophical-theological thinking and Scheler's phenomenology. Firstly, it clears the horizon in which Scheler's phenomenology visualizes the Augustinian thought considered from the perspective of the experiential and fundamental structure of Christian living. Demonstrating the idea of ordo amor-is, the harmony of this structure is shown in the change of the concept of Christian love, signaled by Scheler as the emergence of the understanding of a loving God. In order to do so, the traits of the Augustinian hermeneutics of the Christian life are discussed, until it reveals caritas as being the love that answers the intentionality of the structure of human existence as a whole according to its essential dynamism. From the point of view of this central function of charity, it concludes by indicating the need to consider the interdependence between living and dying, in order to better understand the sense of the structuring of human existence from the idea of ordered love. Resumen: Priorizando como hilo conductor la relación entre amor y finitud, la discusión establece un constante diálo-go entre el pensamiento filosófico-teológico de Agustín y la fenomenología de Scheler. Primero, se aclara el horizonte a partir del cual la fenomenología de Scheler visualiza el pensamiento agustiniano al considerarlo bajo la óptica de la estructura vivencial y fundamental del vivir cristiano. Evidenciando la idea de ordo amoris, se muestra la corres-pondencia de esta estructura a la revolución del amor cristiano, señalada por Scheler como la emergencia de la com-prensión de un Dios amante. Para ello, a continuación, se discuten rasgos de la hermenéutica agustiniana de la vida cristiana, hasta revelar la caritas como el amor que responde por la intencionalidad ordenadora de la estructura de la existencia humana en su totalidad según su dinamismo esencial. Desde el punto de vista de esta función central de la caridad, se concluye indicando la necesidad de considerar la interdependencia entre vivir y morir, para comprender mejor el sentido de la estructuración de la existencia humana a partir de la idea de amor ordenado Palabras-Clave: fenomenología, afectos, ordo amoris, caridad. Phenomenological Studies-Revista da Abordagem Gestáltica-XXIV(Especial): 449-466, 2018 D o s s i e r F e n o m e n o l o g i a e I d a d e M é d i a Daniel RoDRigues Ramos "Grava-me, como um selo em teu coração como um selo em teu braço, pois o amor é forte, é como a morte!" (Cântico dos Cânticos 8, 6) Mediada pela questão do sentido do amor e da transitoriedade da vida, a presente discussão é a tentativa de colocar em diálogo dois pensadores, ao mesmo tempo, unidos e separados por uma única tradição. Unidos porque ambos pertencem ao dina-mismo vital da mesma história espiritual do Oci-dente, iniciada pelos gregos e em consumação nos tempos da técnica e da ciência. Trata-se da história da pergunta radical pelo ser, sobretudo, mediante o questionamento da estrutura fundamental da exis-tência do homem, nas tramas de sua relação consigo mesmo, com o outro, com o mundo e com o divino-questionamento percorrido na busca do sentido de ser e não ser, de realizar ou debilitar estas rela-ções. De outro lado, nitidamente separados não so-mente por causa do hiato cronológico que, para um observador externo com sua consideração objetiva dos fatos históricos, afasta tais pensadores e os tor-nam estranhos um ao outro. Antes, os pensadores se distanciam porque tal história, para continuar sua marcha e manter unidos aqueles que a pensaram no seu princípio, desenvolve-se de época em época, figurando concreções radicalmente diversas do es-pírito, cuja regra básica deste desenvolvimento é ter

AGOSTINHO. O Livre-Arbítrio.

Tradução do original latino, cotejada com versões em francês e em espanhol. Tradução, organização, introdução e notas Ir. Nair de Assis Oliveira Revisão Honório Dalbosco Direção Editorial Pe. Manoel Quinta PAULUS-1995 Rua Francisco Cruz, 229 04117-091 São Paulo (Brasil) Fax (011) 570-3627 Tel. (011)5084-3066 http://www.paulus.org.br dir.editorial@paulus.org.br PAULUS Estrada de São Paulo 2685 Apelação (Portugal) Fax (01) 948-8878 Tel. (01)947-2414 ISBN 85-349-0256-9 APRESENTAÇÃO Surgiu, pelos anos 40, na Europa, especialmente na França, um movimento de interesse voltado para os antigos escritores cristãos e suas obras, conhecidos, tradicionalmente, como "Padres da Igreja" ou "Santos Padres". Esse movimento, liderado por Henri de Lubac e Jean Daniélou, deu origem à coleção "Sources Chrétiennes", hoje com mais de 300 títulos, alguns dos quais com várias edições. Com o Concílio Vaticano II, ativou-se em toda a Igreja o desejo e a necessidade de renovação da liturgia, da exegese, da espiritualidade e da teologia a partir das fontes primitivas. Surgiu a necessidade de "voltar às fontes" do cristianismo. No Brasil, em termos de publicação das obras destes autores antigos, pouco se fez. Paulus Editora procura, agora, preencher este vazio existente em língua portuguesa. Nunca é tarde ou fora de época para rever as fontes da fé cristã, os fundamentos da doutrina da Igreja, especialmente no sentido de buscar nelas a inspiração atuante, transformadora do presente. Não se propõe uma volta ao passado através da leitura e estudo dos textos primitivos como remédio ao saudosismo. Ao contrário, procura-se oferecer aquilo que constitui as "fontes" do cristianismo para que o leitor as examine, as avalie e colha o essencial, o espírito que as produziu. Cabe ao leitor, portanto, a APRESENTAÇÃO 6 tarefa do discernimento. Paulus Editora quer, assim, oferecer ao público de língua portuguesa, leigos, clérigos, religiosos, aos estudiosos do cristianismo primevo, uma série de títulos, não exaustiva, cuidadosamente traduzidos e preparados, dessa vasta literatura cristã do período patrístico. Para não sobrecarregar o texto e retardar a leitura, procurou-se evitar anotações excessivas, as longas introduções estabelecendo paralelismos de versões diferentes, com referências aos empréstimos da literatura pagã, filosófica, religiosa, jurídica, às infindas controvérsias sobre determinados textos e sua autenticidade. Procurou-se fazer com que o resultado desta pesquisa original se traduzisse numa edição despojada, porém séria. Cada autor e cada obra terão uma introdução breve com os dados biográficos essenciais do autor e um comentário sucinto dos aspectos literários e do conteúdo da obra suficientes para uma boa compreensão do texto. O que interessa é colocar o leitor diretamente em contato com o texto. O leitor deverá ter em mente as enormes diferenças de géneros literários, de estilos em que estas obras foram redigidas: cartas, sermões, comentários bíblicos, paráfrases, exortações, disputas com os heréticos, tratados teológicos vazados em esquemas e categorias filosóficas de tendências diversas, hinos litúrgicos. Tudo isso inclui, necessariamente, uma disparidade de tratamento e de esforço de compreensão a um mesmo tema. As constantes, e por vezes longas, citações bíblicas ou simples transcrições de textos escriturísticos devem-se ao fato de que os padres escreviam suas reflexões sempre com a Bíblia numa das mãos. Julgamos necessário um esclarecimento a respeito dos termos patrologia, patrística e padres ou pais da Igreja. O termo patrologia designa, propriamente, o estudo sobre a vida, as obras e a doutrina dos pais da Igreja. 7 APRESENTAÇÃO Ela se interessa mais pela história antiga incluindo também obras de escritores leigos. Por patrística se entende o estudo da doutrina, as origens dessa doutrina, suas dependências e empréstimos do meio cultural, filosófico e pela evolução do pensamento teológico dos pais da Igreja. Foi no século XVII que se criou a expressão "teologia patrística"para indicar a doutrina dos padres da Igreja, distinguindo-a da "teologia bíblica", da "teologia escolástica", da "teologia simbólica" e da "teologia especulativa". Finalmente, "Padre ou Pai da Igreja" se refere a um leigo, sacerdote ou bispo, da antiguidade cristã, considerado pela tradição posterior como testemunho particularmente autorizado da fé. Na tentativa de eliminar as ambiguidades em torno desta expressão, os estudiosos convencionaram em receber como "Pai da Igreja" quem tivesse estas qualificações: ortodoxia de doutrina, santidade de vida, aprovação eclesiástica e antiguidade. Mas os próprios conceitos de ortodoxia, santidade e antiguidade são ambíguos. Não se espere encontrar neles doutrinas acabadas, buriladas, irrefutáveis. Tudo estava ainda em ebulição, fermentando. O conceito de ortodoxia é, portanto, bastante largo. O mesmo vale para o conceito de santidade. Para o conceito de antiguidade, podemos admitir, sem prejuízo para a compreensão, a opinião de muitos especialistas que estabelece, para o Ocidente, Igreja latina, o período que, a partir da geração apostólica, se estende até Isidoro de Sevilha (560-636). Para o Oriente, Igreja grega, a antiguidade se estende um pouco mais até a morte de s. João Damasceno (675-749). Os "Pais da Igreja" são, portanto, aqueles que, ao longo dos sete primeiros séculos, foram forjando, construindo e defendendo a fé, a liturgia, a disciplina, os costumes e os dogmas cristãos, decidindo, assim, os rumos da Igreja. Seus textos se tornaram fontes de discussões, de inspirações, de referências obrigatórias ao longo de toda a APRESENTAÇÃO 8 tradição posterior. O valor dessas obras que agora Paulus Editora oferece ao público pode ser avaliado neste texto: "Além de sua importância no ambiente eclesiástico, os Padres da Igreja ocupam lugar preeminente na literatura e, particularmente, na literatura greco-romana. São eles os últimos representantes da Antiguidade, cuja arte literária, não raras vezes, brilha nitidamente em suas obras, tendo influenciado todas as literaturas posteriores. Formados pelos melhores mestres da Antiguidade clássica, põem suas palavras e seus escritos a serviço do pensamento cristão. Se excetuarmos algumas obras retóricas de caráter apologético, oratório ou apuradamente epistolar, os Padres, por certo, não queriam ser, em primeira linha, literatos e, sim, arautos da doutrina e moral cristãs. A arte adquirida, não obstante, vem a ser para eles meio para alcançar este fim. (...) Há de se lhes aproximar o leitor com o coração aberto, cheio de boa vontade e bem disposto à verdade cristã. As obras dos Padres se lhe reverterão, assim, em fonte de luz, alegria e edificação espiritual" (B. A Editora "Prometi mostrar-te que há um Ser, muito mais sublime do que o nosso espírito e a nossa razão. Ei-lo: é a própria Verdade!" (11,13,35) "Será a sabedoria outra coisa a não ser a Verdade, na qual se contempla e se possui o sumo Bem?" (11,9,26) "O Sabedoria! Luz suavíssima da mente purificada."