Abjection Research Papers - Academia.edu (original) (raw)

Durante dois anos, o grupo de pesquisa LINGUAGEM, POESIA E COMUNICAÇÃO, vinculado ao Mestrado em Comunicação da Universidade Católica de Brasília, formado pelo núcleo permanente dos quatro pesquisadores que ora assumem a organização deste... more

Durante dois anos, o grupo de pesquisa LINGUAGEM, POESIA E COMUNICAÇÃO, vinculado ao Mestrado em Comunicação da Universidade Católica de Brasília, formado pelo núcleo permanente dos quatro pesquisadores que ora assumem a organização deste livro, se reuniu quinzenalmente para conversar e refletir a partir da ideia proposta inicialmente por Florence Dravet de “apreender o modo de comunicação do feminino no âmbito da tradição afrobrasileira e seu reflexo no imaginário popular do Brasil”. O ponto de partida das reflexões foi a figura da POMBAGIRA como fenômeno e experiência.

No Brasil, há pouca literatura sobre as pombagiras; no entanto, uma pesquisa de campo inicial junto a pessoas não adeptas revelou que a figura é muito presente no imaginário coletivo. Geralmente, a menção à pombagira suscita reações de espanto nas pessoas, que podem se expressar através do riso e do deboche ou ao contrário de respostas monossilábicas ou do silêncio incomodado. O nome é imediatamente associado à imagem de uma prostituta, uma mulher de vida livre, sedutora e perigosa. Enquanto alguns temem a pombagira, a chamam de perigosa, influente, maldosa, capaz de feitiços e amarrações, outros se sentem fascinados pelo seu poder de sedução, pelo seu conhecimento de feitiçaria que lhe permite obter qualquer coisa em matéria de amor e relacionamentos.

O primeiro ponto importante revelado por essa pesquisa inicial pareceu-nos ser o fato de que, nos terreiros de Umbanda onde pesquisamos, tanto homens como mulheres incorporam a pombagira, o que significava que sua força estava além da diferenciação de gêneros. Ao falarmos da pombagira, estávamos, portanto, falando do feminino e não das mulheres. Um feminino percebido como um tipo de força emotiva e intuitiva, instintiva e vinculada ao selvagem.

O segundo ponto importante é que percebemos que a pombagira não é uma figura isolada que circula no mundo profano e sim a manifestação de um tipo de força considerada sagrada, parte de um sistema de relações coordenadas entre o transcendente e o social. Se isolamos a pombagira do seu sistema, ela se transforma em estereótipo social: a prostituta, a histérica, a bruxa. Se a mantemos em seu sistema, ela se faz portadora de todas as forças do feminino que nascem das origens com Nanã, a autogerada, que se manifestam nas belezas de Iansã e Oxum, no amor espiritual de Iemanjá, na força de transformação de Iewá, etc.

Quando a figura sai de seu sistema cosmogônico complexo, ela passa a circular pelo mundo profano e se transforma num estereótipo. Buscamos então entender por que a figura adquire formas especificamente negativas do ponto de vista cultural e social.
Para isso, foi de suma importância atentar para o fato de que a vivência da pombagira pelos adeptos de Umbanda se dá através da incorporação e diz respeito aos aspectos emocionais da vida dos homens e das mulheres do terreiro: seus sentimentos, suas relações amorosas, sua sexualidade, sua expressividade corporal e verbal. Alguns homens não gostam da incorporação da pombagira porque ela os remete a seu lado feminino que tendem a negar. Já outros relatam que amam ter a oportunidade de exteriorizar seu lado feminino, sorrir, falar, gargalhar e gesticular como mulher. De fato, a pombagira gargalha, canta, xinga, usa vocabulário xulo, às vezes vulgar, quebra todas as barreiras, os tabus, expressa aquilo que não se ousa expressar, dança e gira para tirar o corpo da imobilidade, incita ao movimento e à ação. Nesse sentido, ela pode ser considerada como um tipo dionisíaco do feminino. Gosta de zombar, debochar, rir de tudo aquilo que as civilidades impõem como limitação aos homens e às mulheres. Sendo assim, seu campo preferido de atuação é o dos relacionamentos amorosos e, mais especialmente, o da sexualidade dos homens e das mulheres.

A pombagira atua, portanto, nas regiões da vida social onde residem dois grandes tabus: o amor e a sexualidade. O que é um tabu senão algo que se oculta? Talvez seja possível afirmar que os clichês simplificadores que fazem da pombagira uma figura negativa associada à prostituta, à mulher histérica e à bruxa perigosa são as máscaras sob as quais o feminino ama ocultar-se para melhor preservar o seu poder criativo, intuitivo, amoroso. Se ela gosta de rir e de jogar, faz pouco caso das civilidades e prefere a liberdade, se ela é movimento e ação, não surpreende que a pombagira jogue e ria com aquilo que mais desestabiliza o homem: sua sexualidade; com aquilo que talvez seja o maior desafio ao mesmo tempo espiritual e material do homem: o amor.

Partindo dessas considerações, desenvolvemos então nossas discussões e, além dos livros que foram básicos como “O feminino e o sagrado” de Christine Clément e Júlia Kristeva, e “Mudança de horizonte” de Dietmar Kamper, convidamos para contribuir conosco, pesquisadores brasileiros de outros grupos de pesquisa em Comunicação: Gustavo de Castro, do grupo Com-versações vinculado ao PPGCOM da Universidade de Brasília, Liv Sovik, do PPGCOM da Universidade Federal do Rio de Janeiro, e o pesquisador francês Georges Bertin, do CNAM de Angers, cuja pesquisa sobre a bruxaria e o imaginário em torno da figura da bruxa na Europa foi esclarecedora. Com eles, discutimos se o conhecimento de uma tradição com seus elementos antropológicos e o conhecimento de práticas sociais em comunidades específicas, unidos ao conhecimento de sensibilidades individuais que vivenciam experiências próprias de comunicação transcendental e social pode servir, de alguma forma, para que a ciência da comunicação avance. Juntos, debatemos nossas metodologias e abordagens questionando se o tipo de objeto que construímos poderia constituir um olhar para a realidade, e, no nosso caso, para a pesquisa sobre o imaginário que auxiliasse novos olhares, com novos instrumentos e possibilidades teóricas. Acreditamos aqui que a pista epistemológica poética é importante para a ampliação do campo e o desdobramento de suas possibilidades.

Ao término da pesquisa em torno da figura da Pombagira, como forma de pensar o feminino enquanto categoria-fenômeno da comunicação, na arte, na cultura e na mídia, acreditamos que demos voz ao sensível, ao imaginário e ao inconsciente como formas de aproximação teórica para o campo da Comunicação e que estamos reafirmando a importância do desenvolvimento do estranhamento - caracterizado pela exploração da ambiguidade do que parece familiar e dado - como forma de compreensão de fenômenos comunicacionais que flexibiliza o rigor cientificista de metodologias mais reconhecidas (a análise de discurso, a semiótica, as análise de conteúdo, entre outras). O resgate do estranhamento como aproximação metodológica tem, portanto, um valor idiossincrático em um espaço que cede cada vez mais às demandas de um determinado tipo de cientificismo – rigoroso, duro e exato - bem como pela colonização do campo acadêmico por uma certa discursividade do empreendedorismo e das organizações, que busca gerenciar as diferenças a seu favor e desvalorizar a urgência própria às humanidades e às ciências sociais em torno das noções de fenômeno e experiência no campo da comunicação. Com isso, queremos dizer que, se não estamos inovando, estamos, certamente, resistindo à excessiva pragmatização do campo.