Anthropology of Law Research Papers (original) (raw)

O que acontece quando nomos e axé se ocupam um do outro? É disso que esta tese se ocupa. Situando-se no campo da antropologia do direito, ela explora e busca amplificar desterritorializações que os modos do Atlântico negro (um... more

O que acontece quando nomos e axé se ocupam um do outro? É disso que esta tese se ocupa. Situando-se no campo da antropologia do direito, ela explora e busca amplificar desterritorializações que os modos do Atlântico negro (um nomos-kalunga ou okúnico) fazem funcionar dentro do nomos da terra ou, noutras palavras, a refração dos santos (orixás, voduns, inquices, caboclos, exus, pombagiras, malandros, encantados, eguns) nos corpos (e no corpus) do direito. O direito virado no santo não é rigorosamente um outro direito, mas a explicitação da sua multiplicidade, a irrupção das suas versões simultâneas, o realce dos seus devires-menores, seus enredos. Esses são devires posse-possessão, devires assento-assentamento, devires ebó-despacho, devires aluvaiá-alvará, devires exu-advogado, devires Pelintra-contrato, devires amalá-acórdão, devires jaqueira-patrimônio, devires atinsá-escritura, devires egun-de cujus, devires gestores-zeladores, devires Ifá-IPHAN. No mundo normativo do axé, o devir é, antes de tudo, um dever, uma obrigação-de-santo, porque o candomblé é (também) agenciamento de conexões e alianças. Por sua vez, o enredo é uma relação de diferenças irredutíveis, um dispositivo de engajamento, narração e participação. “Ter enredos com” é “comer junto” e, por isso, meu texto deles se alimenta. O enredo é nele fio condutor (no sentido elétrico, inclusive) de tramas não sobre os segredos da feitura de santo, mas sobre os da feitura do direito. Como a relação afro-indígena, o parentesco entre práticas burocráticas e agências do candomblé é contra-filiativo, é da ordem da magia ou do xamanismo. Contaminando imaginações, os enredos de nomos e axé precipitam linhas de fuga à teologia política e sacodem a metafísica branca. Quando Seu Tranca-Ruas redige um contrato ou ganha um habeas corpus, quando Azonsú protagoniza um tombamento, quando Oyá interrompe um despejo, quando Xangô roda no STF, não estão em pauta apenas conflitos jurídicos ou “culturais”, mas guerras ontológicas. Tratam-se de torções e ressonâncias espectrais que dão notícia daquilo que assombra o estilo jurídico de pensamento, fazendo falar a propriedade, a família, o sujeito e a nação como os fe(i)tiches que são, entes que nos ultrapassam ligeiramente. Milongas, diriam os(as) angoleiros(as). A milonga não é mistura, ela é uma contra-mestiçagem: um gesto encruzilhado de co-constituição e co-existência, como num corpo iniciado estão assentados juntos pessoa, espíritos e orixá. Esse direito co-habitado pela cosmopolítica afro-brasileira, a (in)corpora ou é irradiado por ela precisamente através da equivocidade dos termos e não na sua transparência. Médium de transporte que é, o melhor que uma teoria etnográfica pode almejar é a dar passagem entre os mundos, despossuindo-os reciprocamente. Antes de tradução, portanto, transe. Mais do que pluralismos ou sincretismos, multiversalismos ou perspectivismos jurídicos: heranças e composições heterogêneas. Virar o direito no santo é suspender suas aparições maiúsculas para lavrá-lo na pedrinha mais miúda, que é também a que mais alumeia.