Colonial Brazil Research Papers - Academia.edu (original) (raw)
O livro Imagens da colonização trata das representações do índio, escritas e gráficas, entre os séculos XVI e XVII. Aí, procurei analisar não somente as imagens dos tupis e “tapuios”, mas também de diferentes etnias radicadas na América... more
O livro Imagens da colonização trata das representações do índio, escritas e gráficas, entre os séculos XVI e XVII. Aí, procurei analisar não somente as imagens dos tupis e “tapuios”, mas também de diferentes etnias radicadas na América espanhola. Fossem gravuras francesas, holandesas, italianas alemães ou inglesas, os cânones artísticos e teológicos pouco diferiam no momento de descrever os povos do Novo Mundo. Sem sombra de dúvidas, as “representações coletivas” europeias da reforma e contra-reforma determinaram as narrativas e as figurações. Nas imagens sobre os americanos encontram-se a tradição escolástica, as disputas religiosas entre católicos e protestantes, a caça às bruxas e os dilemas provocados pela conquista.
As crônicas e as descrições de viagens fizeram tábula rasa da tradição ameríndia, anularam as suas especificidades. Todos eram índios e isso bastava para os religiosos, artistas e viajantes europeus. Aliás, a tradição europeia buscou no passado remoto argumentos para consolidar a dominação e a desigualdade entre os cristãos e ameríndios. Sua superioridade respaldava a conquista, a colonização e a catequese. Em contrapartida, os nativos eram seres degenerados: desconheciam a palavra revelada do senhor, o valor do ouro, da prata e do trabalho. Viviam na indolência e precisavam dos controles impostos pelos homens brancos. Empregado como ideologia da conquista, o barbarismo aristotélicos legitimava a guerra justa, a escravidão, porque os nativos eram incapazes de entender os ensinamentos divinos e de receber a conversão. Portanto, eram criaturas de Deus, forjados para servir aos cristãos, usando a sua força bruta em favor dos empreendimentos coloniais.
Para além de identificar um substrato cultural comum, o livro traça um contraponto entre as imagens produzidas pelos jesuítas e pelos demais colonizadores. Os inacianos estavam imbuídos de livrar os índios da escravidão, pois o cativeiro os afastava da conversão e da vida cristã. A defesa da Companhia de Jesus impunha abandono da antigas tradições locais, da nudez, poligamia e canibalismo.
De todo modo, o esforço dos padres não inviabilizou o emprego dos nativos como força motriz dos primeiros estabelecimentos coloniais, nas lavouras, na expansão das áreas coloniais, nas guerras contra as tribos que enfrentavam os portugueses. Embora fossem livres, nas propriedades jesuíticas, os braços não raro eram indígenas. Por vezes, os religiosos pouco diferiam dos seculares quando representavam os nativos como bárbaros, embora os jesuítas considerassem que a conversão era mecanismo seguro para os livrar do barbarismo.
Em suma, afirmo que os colonizadores buscavam respaldo para impedir a inserção dos índios na cristandade, pois eram seres brutos e incapazes de se tornar católicos. Para tanto reforçavam a necessidade escravizá-los, enquanto os sacerdotes procuravam representá-los como gentios, cristãos em potencial, pois, do contrário, a catequese estava ameaçada.
Escravistas ou não, os projetos coloniais pretendiam inserir os povos indígenas no mundo mercantilista. Os braços nativos contribuíram com a expansão das áreas coloniais e comércio entre o Brasil e a metrópole. Os índios viabilizavam então a força motriz capaz de implementar fortificações, vilas, igrejas, engenhos e plantações. A conquista não se reduziu ao âmbito econômico, pois os moradores e os viajantes conduziram os habitantes do Novo Mundo para dentro da cultura da Europa ocidental. Os ameríndios perderem paulatinamente a autonomia própria das comunidades distantes do velho continente e ganharam feições e atributos há muito presentes no imaginário cristão. Os índios foram denominados de gentio, bárbaros, selvagens e antropófagos. A partir dessas nomeações, os colonizadores pretendiam ressaltar o primitivismo dos nativos e sua incapacidade de gerir a própria vida. O abandono dos “costumes abomináveis” justificava a intervenção na América, consolidava a conquista e a colonização europeias.
A maior contribuição do livro estava, porém, no capítulo terceiro: “Mulheres canibais”. Aí realizei comparação entre texto e imagem que me permitiu delimitar um tema de pesquisa original. Oriundas dos relatos de viagens, as descrições sobre os costumes indígenas apontavam para a intensa participação dos homens nas guerras e nas cerimônias de canibalismo. Diferentemente do texto, nas imagens, as mulheres se tornaram protagonistas. A literatura quinhentista e mesmo os estudos da antropologia estruturalista defendiam a participação feminina nos rituais com funções específicas.
No entanto, nas representações visuais, a ênfase nas mulheres canibais e a escassa participação dos guerreiros estava vinculada à misoginia, não raro presente nos escritos e gravuras quinhentistas protestantes. Aliás, percebi que a misoginia aumentou a participação feminina nos rituais macabros representados nas gravuras. A ênfase deve ser interpretada como parte da tradição luterana e da influência do Malleus maleficarum sobre o pensamento europeu do norte da Europa, origem de boa parte das gravuras dedicadas às mulheres canibais. Em diversas imagens constatei semelhanças entre as mulheres canibais e as feiticeiras europeias. Elas possuíam comportamentos e formas físicas semelhantes às enviadas do demônio.
Como mencionei, os predomínio das mulheres nos rituais de canibalismo não possui, porém, sustentação empírica, exceto nas gravuras de Theodor de Bry. Os relatos quinhentistas e seiscentistas restringiam bastante sua participação nos banquetes canibalescos. Os estudiosos dos tupis defendem a participação de jovens e mulheres na ingestão de carne humana, sobretudo as entranhas cozidas em forma de mingau. Em contrapartida, os guerreiros costumavam ingerir os músculos assados no moquém. Em suma, a participação feminina era restrita enquanto os homens protagonizavam os relatos dedicados ao canibalismo tupi.
Vale ainda mencionar a participação das velhas índias nos rituais representados em gravuras. Aí, elas comem carne humana e sugam a gordura. Segundo os relatos, Deus as castigou, pois perderam a juventude por causa de seus desregramentos, pelo gosto bizarro de ingerir e se deliciar com a carne humana. Suas peles enrugadas e cabelos muito ralos as tornam encarnação do vício, aliadas e privilegiadas de Satã. Com características demoníacas, as velhas retratadas do Theodor de Bry também estão em um desenho que ilustra o livro de John Nieuhof. A cena se passa em uma floresta, onde um nativo atira uma fecha contra uma ave. No pano de fundo, porém, duas mulheres comem braços humanos e estão próximas a vários vestígios do canibalismo: crânio descarnado, ossos humanos, restos de animais e outros objetos de difícil identificação. Por certo a gravura em questão se inspirou na obra de Hans Baldung Grien, o famoso pintor quinhentista das bruxas.