Discurso Research Papers - Academia.edu (original) (raw)
Se quiséssemos caracterizar o momento histórico que vivemos, procurando uma marca que o distinguiria do passado, seja o mais remoto, seja o mais recente, provavelmente concluiríamos que hoje se pratica e exerce, como nunca, a informação,... more
Se quiséssemos caracterizar o momento histórico que vivemos, procurando uma marca que o distinguiria do passado, seja o mais remoto, seja o mais recente, provavelmente concluiríamos que hoje se pratica e exerce, como nunca, a informação, a massificação e popularização da linguagem, dos distintos vocabulários e códigos de expressão. Além de todas as vantagens que isso certamente vem proporcionando, percebe-se também que certas palavras, muito antigas, que durante muito tempo tiveram seu uso limitado a círculos restritos, ganharam lugar no imaginário popular e passaram a ser esporadicamente empregadas, com significados que nem sempre correspondem àqueles que lhes deram origem. Esse parece ser o caso para expressões como "filosofia" e "filósofo": criadas há cerca de dois mil e quinhentos anos, passaram, com o tempo, a ser utilizadas mais amplamente e são hoje empregadas até com relativa freqüência. Se não há por que lamentar esse fenômeno, certamente resultante de um louvável processo de democratização, é preciso, contudo, estar atento a ele, principalmente quando se está diante de uma situação como a que nos reúne hoje. Pois não se trata, nesta ocasião, apenas de um evento que inaugura mais um ano letivo deste departamento, mas também, e sobretudo, da inauguração da filosofia na vida da grande maioria dos que aqui se encontram, sendo bastante provável que muitos deles, não importa quantos nem quem, se tenham interessado por filosofia em virtude de algo que o emprego dessa palavra no discurso quotidiano lhes sugeriu ou despertou. Emprego bastante variado, despreocupado mesmo com a exatidão, mas certamente suficiente para suscitar a nossa curiosidade e nos trazer até aqui, apesar do nariz torcido de nossos pais, saudavelmente preocupados com nosso futuro. Emprego, contudo, muitas vezes enganador e perigoso, porque também muitas vezes sintomático de uma certa mentalidade que o origina, uma certa visão de mundo que talvez seja justamente a negação das características mais importantes da filosofia. As considerações que seguem pretendem, por isso, fazer dela uma genérica apresentação, que não visa a fornecer-lhe nenhuma definição rígida, e sim operar uma espécie de limpeza de terreno, enfocando precisamente o descompasso que há entre tal mentalidade e certas exigências que a filosofia nos faz, as quais em boa medida desafiam essa mentalidade e portanto também a nós. Noutras palavras, tratar-seá de distinguir entre aquilo que se pensa ser filosofia e aquilo que de fato é, entre a filosofia do vocabulário comum e a filosofia propriamente dita. Para tanto, será feita aqui uma distinção entre "filosofia" e "filosofar", distinção que é seguramente superficial e artificial, mas que visa apenas a facilitar nossa tentativa. Com o termo "filosofia", provavelmente mais freqüente no discurso comum, quer-se fazer referência a alguns equívocos que é preciso denunciar e até mesmo desmistificar. Com o termo "filosofar", pretende-se destacar e enfatizar aquilo que é típico da autêntica filosofia, sem o que, ela não se dá. Cabe também alertar, desde já, que nada se dirá aqui que não seja do conhecimento daqueles que lidam com a filosofia há algum tempo, pois se trata, afinal, de discorrer sobre o mais inevitável dos temas que podem ocorrer em filosofia: o tema de seu próprio sentido e natureza. Não há, pois, como negar que estamos perante mais um exemplar desse gênero já um tanto batido e maltratado do "elogio da filosofia". Mas este elogio, é preciso reconhecer e desde já comunicar, poderá não soar muito atraente, pois freqüentemente se revestirá da forma de uma advertência.