George Orwell Research Papers - Academia.edu (original) (raw)
A conquista da terra, que signi ca basicamente tomá-la dos que possuem uma compleição diferente ou um nariz um pouco mais achatado do que o nosso, não é uma coisa bonita, se você olhar bem de perto. O que a redime é apenas a ideia. Uma... more
A conquista da terra, que signi ca basicamente tomá-la dos que possuem uma compleição diferente ou um nariz um pouco mais achatado do que o nosso, não é uma coisa bonita, se você olhar bem de perto. O que a redime é apenas a ideia. Uma ideia por detrás dela; não uma cção sentimental, mas uma ideia; e uma crença altruísta na ideia -algo que você pode erigir, e curvar-se diante dela, e lhe oferecer um sacrifício... Cerca de cinco anos após a publicação de Orientalism [Orientalismo], em 1978, comecei a reunir algumas ideias sobre a relação geral entre cultura e império, as quais haviam cado claras para mim quando escrevia aquele livro. O primeiro resultado foi uma série de conferências que ministrei em universidades dos Estados Unidos, do Canadá e da Inglaterra em 1985 e 1986. Essas conferências formam o núcleo de minha argumentação na presente obra, com a qual venho me ocupando desde então. Muitos estudos de antropologia, história e disciplinas de áreas especí cas têm elaborado ideias que apresentei em Orientalismo, restrito ao âmbito do Oriente Médio. Assim, também tento aqui ampliar a argumentação do livro anterior, de modo a descrever um modelo mais geral de relações entre o Ocidente metropolitano moderno e seus territórios ultramarinos. Em que consistem alguns dos materiais aqui utilizados e que não pertencem à área do Oriente Médio? São textos europeus sobre a África, a Índia, partes do Extremo Oriente, Austrália e Caribe; considero esses discursos africanistas e indianistas, como foram chamados, parte integrante da tentativa europeia geral de dominar povos e terras distantes, e portanto relacionados com as descrições orientalistas do mundo islâmico, bem como com as maneiras especí cas pelas quais a Europa representa o Caribe, a Irlanda e o Extremo Oriente. O que há de marcante nesses discursos são as guras retóricas que encontramos constantemente em suas descrições do "Oriente misterioso", os estereótipos sobre "o espírito africano" (ou indiano, irlandês, jamaicano, chinês), as ideias de levar a civilização a povos bárbaros ou primitivos, a noção incomodamente familiar de que se fazia necessário o açoitamento, a morte ou um longo castigo quando "eles" se comportavam mal ou se rebelavam, porque em geral o que "eles" melhor entendiam era a força ou a violência; "eles" não eram como "nós", e por isso deviam ser dominados. Porém, em quase todos os lugares do mundo não europeu a chegada do homem branco gerou algum tipo de resistência. O que deixei de fora em Orientalismo foi a reação ao domínio ocidental que culminou no grande movimento de descolonização em todo o Terceiro Mundo. Além da resistência armada em locais tão diversos quanto a Irlanda, a Indonésia e a Argélia no século XIX, houve também um empenho considerável na resistência cultural em quase todas as partes, com a a rmação de identidades nacionalistas e, no âmbito político, com a criação de associações e partidos com o objetivo comum da autodeterminação e da independência nacional. O contato imperial nunca consistiu na relação entre um ativo intruso ocidental contra um nativo não ocidental inerte ou passivo; sempre houve algum tipo de resistência ativa e, na maioria esmagadora dos casos, essa resistência acabou preponderando. Esses dois fatores -um modelo geral de cultura imperial em âmbito planetário e uma experiência histórica de resistência contra o impériofazem com que este livro não seja apenas uma mera continuação de Orientalismo, mas uma tentativa de algo diverso. Em ambos os livros dou ênfase ao que chamo, de modo bastante geral, "cultura". Quando emprego o termo, ele signi ca duas coisas em particular. Primeiro, "cultura" designa todas aquelas práticas, como as artes de descrição, comunicação e representação, que têm relativa autonomia perante os campos econômico, social e político, e que amiúde existem sob formas estéticas, sendo o prazer um de seus principais objetivos. Incluem-se aí, naturalmente, tanto o saber popular sobre partes distantes do mundo quanto o conhecimento especializado de disciplinas como a etnogra a, a historiogra a, a lologia, a sociologia e a história literária. Como meu enfoque exclusivo, aqui, concentra-se nos impérios ocidentais modernos dos séculos XIX e XX, trato sobretudo de formas culturais, como o romance, que julgo terem sido de enorme importância na formação das atitudes, referências e experiências imperiais. Não digo que apenas o romance tenha sido importante, mas o considero como o objeto estético cujas ligações com as sociedades em expansão da Inglaterra e da França são particularmente interessantes como tema de estudo. O protótipo do romance realista moderno é Robinson Crusoé, e certamente não é por acaso que ele trata de um europeu que cria um feudo para si mesmo numa distante ilha não europeia. A crítica recente tem se concentrado bastante na narrativa de cção, mas pouquíssima atenção se presta a seu lugar na história e no mundo do império. Os leitores deste livro logo perceberão que a narrativa é crucial para minha argumentação, sendo minha tese básica a de que as histórias estão no cerne daquilo que dizem os exploradores e os romancistas acerca das regiões estranhas do mundo; elas também se tornam o método usado pelos povos colonizados para afirmar sua identidade e a existência de uma história própria deles. O principal objeto de disputa no imperialismo é, evidentemente, a terra; mas quando se tratava de quem possuía a terra, quem tinha o direito de nela se estabelecer e trabalhar, quem a explorava, quem a reconquistou e quem agora planeja seu futuro -essas questões foram pensadas, discutidas e até, por um tempo, decididas na narrativa. Como sugeriu um crítico, as próprias nações são narrativas. O poder de narrar, ou de impedir que se formem e surjam outras narrativas, é muito importante para a cultura e o imperialismo, e constitui uma das principais conexões entre ambos. Mais importante, as grandiosas narrativas de emancipação e esclarecimento mobilizaram povos do mundo colonial para que se erguessem e acabassem com a sujeição imperial; nesse processo, muitos europeus e americanos também foram instigados por essas histórias e seus respectivos protagonistas, e também eles lutaram por novas narrativas de igualdade e solidariedade humana. Em segundo lugar, e quase imperceptivelmente, a cultura é um conceito que inclui um elemento de elevação e re namento, o reservatório do melhor de cada sociedade, no saber e no pensamento, como disse Matthew Arnold na década de 1860. Arnold achava que a cultura mitiga, se é que não neutraliza por completo, a devastação de uma vida urbana moderna, agressiva, mercantil, embrutecedora. A pessoa lê Dante ou Shakespeare para acompanhar o melhor do pensamento e do saber, e também para ver a si mesma, a seu povo, sua sociedade, suas tradições sob as melhores luzes. Com o tempo, a cultura vem a ser associada, muitas vezes de forma agressiva, à nação ou ao Estado; isso "nos" diferencia "deles", quase sempre com algum grau de xenofobia. A cultura, neste sentido, é uma fonte de identidade, e aliás bastante combativa, como vemos em recentes "retornos" à cultura e à tradição. Esses "retornos" acompanham códigos rigorosos de conduta intelectual e moral, que se opõem à permissividade associada a loso as relativamente liberais como o multiculturalismo e o hibridismo. No antigo mundo colonial, esses "retornos" geraram vários fundamentalismos religiosos e nacionalistas. Neste segundo sentido, a cultura é uma espécie de teatro em que várias causas políticas e ideológicas se empenham mutuamente. Longe de ser um plácido reino de re namento apolíneo, a cultura pode até ser um campo de batalha onde as causas se expõem à luz do dia e lutam entre si, deixando claro, por exemplo, que, dos estudantes americanos, franceses ou indianos ensinados a ler seus clássicos nacionais antes de lerem os outros, espera-se que amem e pertençam de maneira leal, e muitas vezes acrítica, às suas nações e tradições, enquanto denigrem e combatem as demais. Ora, o problema com essa ideia de cultura é que ela faz com que a pessoa não só venere sua cultura, mas também a veja como que divorciada, pois transcendente, do mundo cotidiano. Muitos humanistas de pro ssão são, em virtude disso, incapazes de estabelecer a conexão entre, de um lado, a longa e sórdida crueldade de práticas como a escravidão, a opressão racial e colonialista, o domínio imperial e, de outro, a poesia, a cção e a loso a da sociedade que adota tais práticas. Uma das difíceis verdades que descobri trabalhando neste livro é que pouquíssimos, dentre os artistas ingleses ou franceses que admiro, questionaram a noção de raça "submissa" ou "inferior", tão dominante entre funcionários que colocavam essas ideias em prática, como coisa evidente, ao governarem a Índia ou a Argélia. Eram noções amplamente aceitas, e ajudaram a propelir a aquisição imperial de territórios na África ao longo de todo o século XIX. Pensando em Carlyle ou Ruskin, ou mesmo em Dickens e Thackeray, a meu ver os críticos com frequência têm relegado as ideias desses escritores sobre a expansão colonial, as raças inferiores ou os "negros" a um departamento muito diferente do da cultura, sendo esta a área elevada de atividades a que eles "realmente" pertencem e em que elaboraram suas obras "realmente" importantes. A cultura concebida dessa maneira pode se tornar uma cerca de proteção: deixe a política na porta antes de entrar. Como alguém que passou toda a sua vida pro ssional ensinando literatura, mas que também se criou no mundo colonial anterior à Segunda Guerra Mundial, pareceu-me um desa o não ver a cultura desta maneira -ou seja, antissepticamente isolada de suas liações mundanas -, e sim como um campo de realização extraordinariamente diversi cado. Tomo os romances e outros livros aqui considerados como objetos de análise porque, em primeiro lugar, eu os considero obras de arte e de conhecimento respeitáveis e admiráveis, que proporcionam prazer e são proveitosos para mim e...