Gilles Deleuze Research Papers - Academia.edu (original) (raw)

A multiplicidade dos tempos históricos é a mais instigante questão historiográfica das últimas décadas. Se não a mais complexa, provavelmente a mais incômoda. Autores tão importantes e tão diversos quanto Gaston Bachelard, Alexandre... more

A multiplicidade dos tempos históricos é a mais instigante questão historiográfica das últimas décadas. Se não a mais complexa, provavelmente a mais incômoda. Autores tão importantes e tão diversos quanto Gaston Bachelard, Alexandre Koyré, Fernand Braudel, Louis Althusser, Michel Foucault, Siegfried Kracauer, Reinhart Koselleck, Paul Ricoeur, Jacques Rancière, Jacques Le Goff, Krzysztof Pomian, Roger Chartier, entre outros, confrontaram-se com ela. Aberta no entreguerras, a dessincronização do mundo e da história não apenas tornava possível, mas exigia conceber uma nova ideia do passado e formular uma nova compreensão do conhecimento histórico.
A concepção homogênea, linear e contínua de temporalidade histórica, oriunda do século XIX, foi duramente questionada no século XX. Forjada a partir do final do século XVIII, essa concepção nasceu no interior do historicismo e das novas filosofias da história, que buscaram sincronizar os distintos tempos de diferentes sociedades e culturas, por meio de conceitos tais como os de “progresso” e “civilização”. A diferença de culturas foi, assim, inscrita numa grade temporal linear, hierarquizada e significante, de que as histórias universais dão testemunho maior. A sucessão cronológica era, então, a grande imagem da temporalidade histórica.
A concepção uniforme e constante de tempo tornou-se um problema epistêmico a partir do final do século XIX. Novas formas de comunicação e transporte alteraram os modos como se experienciava o tempo. Na ciência, o tempo tornou-se relativo com Einstein. Na filosofia, emergiu um tempo íntimo e subjetivo, em tudo oposto ao tempo físico e objetivo. Concomitantemente, contra o aspecto sucessivo, afirmou-se a simultaneidade temporal. No interior da própria biologia, onde havia se formado no final do século XIX, o conceito de heterocronia transformou-se, dessincronizando a noção de desenvolvimento. As novas ciências humanas e sociais descobriram a existência de um “tempo social”, distinto dos tempos objetivo e subjetivo. No campo historiográfico, a concepção cronológica do tempo foi acusada de idolatria e o radical “cronos-” experimentou novos enlaces em inesperados arranjos lexicais e semânticos. O tempo saiu da linha, perdeu os fios que, ao longo de décadas, inscreviam-no em uma trama coesa, lisa e monocrômica.
O tempo pluralizava-se. O pensamento historiográfico, em diferentes domínios, recebeu de maneiras diversas essa heterocronização da história. De um lado, muitos a viram com certa desconfiança. Diante do que lhes parecia uma ameaça à epistemicidade de Clio, entenderam ser preciso axializar novamente o tempo histórico. De outro, alguns trataram de transformá-la em dimensão constitutiva da própria experiência do passado. A “História” no singular e em letra maiúscula cedia lugar às “histórias”, plurais. A homocronia dos historiadores do século XIX cedia lugar à heterocronia. A história tornava-se um emaranhado de temporalidades, um entrecruzamento de séries temporais, uma sobreposição de camadas e linhas multidirecionais do tempo.
O livro organizado por Marlon Salomon reúne quinze estudos, de renomados especialistas, sobre temas e questões relativas à multiplicidade dos tempos históricos. Ele nos traz uma estimulante diversidade de reflexões e análises teóricas, epistemológicas, filosóficas e historiográficas, preenchendo uma importante lacuna. Se em nossos dias já não é mais preciso insistir no fato de que o tempo é a matéria constitutiva da história, é preciso, todavia, reconhecer que essa matéria é heterogênea, policrômica, esburacada, descontínua, multidimensional. Tal é a contribuição deste livro. E sobre ele se pode dizer, sem medo de exagerar, que está destinado a se tornar uma referência no campo das reflexões sobre tempo e história.