Manoel de Oliveira Research Papers (original) (raw)

Embora existam profundas diferenças entre O estranho caso de Angélica de M. de Oliveira e Branca de Neve de J. C. Monteiro no que diz respeito à mise en scène, os dois filmes permitem-nos abordar alguns conceitos imprescindíveis, segundo... more

Embora existam profundas diferenças entre O estranho caso de Angélica de M. de Oliveira e Branca de Neve de J. C. Monteiro no que diz respeito à mise en scène, os dois filmes permitem-nos abordar alguns conceitos imprescindíveis, segundo creio, para uma possível definição e interpretação da imagem cinematográfica e da sua relação com o mundo. A profunda ligação entre O estranho caso de Angélica e Branca de Neve, longe de se esgotar na semelhança de uma narrativa profundamente marcada pelo eros e thanatos das deambulações físicas e verbais das personagens, reside no facto de os filmes serem ambos emblemáticos no que diz respeito à presença dos conceitos de fantasma, fetiche e citação, cujas características são muito próximas às da imagem cinematográfica.
Analisaremos o filme de Oliveira para demonstrar que o seu carácter fantasmático não está relacionado apenas com a presença diegética do fantasma de Angélica, mas sobretudo com o processo amoroso e o “morbo melancólico” de quem, como é o caso do protagonista Isaac, tenta alcançar o seu objecto de desejo. Após um breve exersus histórico acerca das afinidades entre a melancolia e o amor, debruçar-nos-emos no carácter fantasmático do processo amoroso, cujo objecto originário, como demonstra a teoria pneumofantasmalógica medieval, é constituído por uma imagem, isto é, uma entidade presente que reenvia para algo de ausente. O processo amoroso nasce da contemplação de um fantasma-simulacro, de uma imagem, cuja realidade material é inacessível. Esta é também a definição de fetiche, ou seja, de algo presente, tangível, mas que revela, ao mesmo tempo, a sua própria ausência.
As fotografias de Angélica, esta presença de uma ausência, permitir-nos-ão não só aprofundar o carácter sígnico do fetiche, mas também analisar o carácter indexical da imagem fotográfica. A este propósito falaremos das fotografias de Walser em Branca de Neve, as quais expõem, de forma exemplar, a natureza indicial da fotografia entendida como marca de algo que já passou. Mas, além disso, o filme de Monteiro oferece-nos também a possibilidade de analisar a intertextualidade, sendo o filme uma citação da obra homónima de Walser. A nossa intenção será a de demonstrar como as características próprias da citação são semelhantes às do fetiche e do fantasma, no sentido em que também a intertextualidade se concebe como um corpo, um fragmento presente que reenvia a um todo ausente.
Fantasma, fetiche e citação poderão ser os conceitos-chave para uma definição da imagem cinematográfica. Será que ela pode ser entendida como fragmento fantasmático da realidade, dado que na película se configuram a visibilidade do mundo e não as coisas que o habitam, o incorpóreo e não a matéria de que se compõe? Será que ela pode ser entendida como fetiche, no sentido que a imagem fílmica manifesta sempre a presença de um segmento, de uma parte do todo que é o mundo? E, finalmente, será que a imagem cinematográfica pode ser encarada como uma citação, dado que a imagem fílmica não é outra coisa se não um corte espácio-temporal da realidade, uma citação do macro-texto do mundo?