St. John Cassian Research Papers (original) (raw)
2024, Sathler, Larissa R.
espaço, representação e poder no mundo romano essas imagens, mas também sua relação com os lugares em que se encontram e o contexto da sua dedicação, é revelador sobre o modo com que Cícero (Dom., 108) apresenta as duas (estátuas das)... more
espaço, representação e poder no mundo romano essas imagens, mas também sua relação com os lugares em que se encontram e o contexto da sua dedicação, é revelador sobre o modo com que Cícero (Dom., 108) apresenta as duas (estátuas das) deusas. Libertas, em De domo, é a pulchra Libertas, associada à licentia de P. Clódio Pulcher, uma deusa privada e ilegítima instalada em uma propriedade privada -a domus de um cidadão -, cuja dedicação foi feita irregularmente. Concordia, por sua vez, é a boa deusa que reside em um templum devida e legitimamente consagrado, e a estátua é legítima. É uma deusa pública, presidindo o senado no forum romanum. O corpus ciceroniano é uma referência inescapável para o estudo da história religiosa, política e intelectual romana. Cícero delimita e ressignifica conceitualmente os espaços, as personagens, as práticas e as instituições religiosas romanas no século I AEC. 2 Interessome especificamente pelo papel das estátuas de deuses na obra de Cícero, com ênfase nos conteúdos sobre a imagem e a presença dos deuses, que são constantes em sua obra filosófica, seus discursos e sua correspondência. Cícero revela a estreita conexão entre religião e política na Roma tardo-republicana, trazendo questões pertinentes à construção, uso e recepção de estátuas divinas em diferentes contextos políticos e religiosos. O discurso De domo é uma das peças mais queridas do próprio Cícero, como ele afirma em Epistulae ad Atticum (4, 2, 2). 3 Na modernidade, durante muito tempo, o De domo foi considerado um 2 As inovações religiosas de Cícero e de outros autores tardo-republicanos têm sido intensamente estudadas, e algumas referências fundamentais são Ando (2008); Gildenhard (2011); Rüpke (2012); Santangelo (2013); North (2014); e Macrae (2016). 3 Para uma visão geral do discurso De domo sua, especialmente no que tange à sua recepção, ver Scheidegger-Lâmmle (2017). Como Kenty (2018, p. 245) bem argumentou, Cícero apreciava o discurso pois foi uma intervenção imediata no espaço público. Claudia Beltrão da rosa espaço, representação e poder no mundo romano Cícero retornar a Roma em uma mudança no clima político. 9 Um complicador é que um magistrado e sacerdote, como Clódio era à época, podia consagrar um terreno aos deuses e, assim, tornar sacer aquele lugar. 10 De fato, em termos religiosos, Clódio estava apto a fazer a dedicação. A questão religiosa está no cerne do discurso e a principal estratégia de Cícero foi demonstrar que a dedicação não era válida por ter sido feita à revelia dos procedimentos institucionais romanos, bem como que o dedicante seria indigno de uma ação religiosa propriamente dita. 11 Em De domo, a religião pública tornase um campo de batalha. Cícero tinha, obviamente, um objetivo muito prático no discurso: a restituição da sua casa. Diante de experts religiosos, os "litigantes" Cícero e Clódio eram, ambos, atores política e religiosamente legítimos. 12 A primeira parte do discurso visa a desacreditar Clódio politicamente (Dom., 3-31), e o próprio Cícero nomeia essa seção como uma digressão (Dom., 3; 32). Uma grave dificuldade era o sentimento compartilhado de que algo dedicado aos deuses não podia ser reclamado por um ser humano. Provavelmente havia apreensões religiosas entre os senadores, daí terem remetido o caso aos pontífices. Cícero é cauteloso no discurso, 9 A casa era muito valiosa em termos simbólicos e econômicos. Sobre este ponto, ver principalmente Berg (1997). Para Cícero (Att., 3, 15, 6; 3, 20, 2; Fam., 14, 2, 3; Dom., 100; 143; 147), seu retorno e restauração não seriam completos sem a recuperação integral de sua casa. Sobre a lei que chamou Cícero de volta a Roma e garantiu a reconstrução da casa no Palatino e de duas villae depredadas por Clódio, ver Cícero (Har. resp., 11) e Plutarco (Cic., 33, 4). Ver também Stroh (2004, p. 321). 10 Clódio era um dos quindecemviri sacris faciundis, sacerdotes responsáveis pela interpretação dos Livros Sibilinos e por questões sobre divindades estrangeiras em Roma, dentre outras atribuições, uma informação que não consta no De domo sua, provavelmente porque diminuiria o argumento de que Clódio não tinha competência religiosa (Cic., Har. resp.; 26; Rüpke, , p. 1265)). Sobre os quindecemviri sacris faciundis, ver Santi (2008). 11 Ver especialmente Lennon (2010), que destaca o tema da impureza religiosa na caracterização de Clódio por Cícero. 12 Em De haruspicum responso (12), Cícero apresenta uma lista nominal dos pontífices presentes na ocasião do De domo sua. Sobre a difícil situação política para Cícero ver Kenty (2017), o que talvez explique o modo como Cícero se refere aos pontífices, vinculando-se a eles no discurso. Libertas e concordia espaço, representação e poder no mundo romano inclusive garantindo que não falará de questões religiosas que eram atribuição dos pontífices, apesar de serem um tema central. 13 Nos primeiros 99 capítulos, Cícero não toca no ponto central do discurso, ou seja, a casa no Palatino. Após o exordium (Cic., Dom., 1-2), ele discorre sobre si mesmo, sobre Pompeu e os pontífices (Cic., Dom., 3-31). 14 Segundo Cícero (Dom., 69), os pontífices se reuniam para defendê-lo e foram acionados pelo senado, por iniciativa de M. Bíbulo, a fim de garantir que nenhuma oposição à restituição integral da casa do Palatino poderia ser feita, por Clódio ter agido sem base legal ou religiosa (nihil legibus, nihil religionibus, nihil iure esse actum). Seguem-se ataques ad hominem a Clódio e às suas ações políticas e legislativas (Cic., Dom.,, com referências à sua gens e a desqualificação da sua adoção pelo plebeu P. Fonteio, em 59, e de seu tribunato (Cic., Dom.,(32)(33)(34)(35)(36)(37)(38)(39)(40)(41)(42), que fazem com que Clódio surja violando tanto o fas quanto o ius. Se sua adoção fora irregular, consequentemente suas ações como tribuno da plebe foram ou ilegais ou, no mínimo, questionáveis. Segue-se a caracterização do exílio de Cícero (Dom., 43-53) como um privilegium, as circunstâncias violentas da adoção da lex Clodia de exilio Ciceronis (Cic., Dom.,(53)(54)(55)(56)(57)(58)(59)(60)(61), em que Cícero (Dom., 62-64) se apresenta como um "bode expiatório", e a seção se encerra com a narrativa dos eventos e ações subsequentes (Cic., Dom.,. 15 13 Gildenhard (2011, p. 300-326) analisa a justiça dos deuses, a relação entre religião e política, a teodiceia ciceroniana e o tema do Clódio furens. 14 Pompeu apoiara publicamente não apenas a lex de reditu, mas também o apelo de Cícero (Dom., 25) aos pontífices com sua presença no momento do discurso, e Júlio César, o pontifex maximus, estava na Gália. 15 No início de 58, Clódio fez promulgar a lex de capite civis Romani, que especificava que água e fogo deviam ser negados a quem matasse um cidadão romano sem julgamento (Kelly, 2006, p. 108; 110-124; 190). Sobre a lex Clodia de exilio Ciceronis, a segunda lei de Clódio, que Cícero define como um privilegium, ver Stroh (2004, p. 316-318). Esta segunda lei previa o banimento permanente de Cícero e incluía provisões para a dedicação de um altar para a Libertas no terreno da casa do Palatino. De fato, Cícero (Sest., 73) não nega que ambas eram, tecnicamente falando, leis, mas põe o acento na violência com que foram promulgadas. Libertas e concordia espaço, representação e poder no mundo romano LIBERTAS E CONCORDIA: DISpUTA pOlÍTICO-RElIgIOSA NAS ESTáTUAS Estudos recentes já demonstraram o uso religioso de imagens inclusive nos próprios textos sagrados de diferentes religiões. 20 Contudo, as estratégias para tornar o divino presente e acessível, e sua dependência de discursos verbais que configuram a imaginação e o pensamento dos fiéis, às vezes para limitar ou tornar ilícitas certas formas de uso de imagens, é algo que demanda mais pesquisas. A interação entre as imagens, a imaginação, as referências e esforços para a apresentação visual e para dar sentido ao divino são temas que vêm trazendo novas contribuições ao entendimento das percepções da cultura visual em diferentes religiões. Na República tardia, longe de nos movermos em estruturas religiosas seguras e há muito estabelecidas, somos levados a um mundo no qual as dinâmicas e a própria semântica religiosa estavam na ordem do dia e eram disputadas. Recentemente argumentei que três modos principais de lidar com estátuas divinas podem ser detectados na obra de Cícero (Beltrão, 2021a). O primeiro é a estátua como objetivação dos deuses, materializando a presença divina, exemplificado nas menções à Hermathena da villa de Túsculo em cartas a Ático (Cic., Att., 1, 1, 5; 1, 4, 3; Beltrão, 2018a). O segundo modo é quando a estátua se confunde com a divindade, tornando-se uma estátua "animada", por exemplo, no caso da estátua de Júpiter na Terceira Catilinária (Cic., Cat., 3, esp. 19-22; Beltrão, 2020a) e da própria Libertas de Clódio expulsando deuses domésticos legítimos da casa de Cícero (Dom., 108), uma criação da performance do orador (Beltrão, 2021a). O terceiro modo, por sua vez, refere-se ao uso da estátua como ferramenta para se pensar e conceber os deuses, que exemplifiquei no debate teológico em De natura deorum sobre a relação entre a figura material e o pensamento do divino (Beltrão, 2018b; 2020b; 2021b). Aqui estão em pauta as estátuas da Libertas e da Concordia em De domo inseridas no terceiro modo ciceroniano 20 Ver, por exemplo, os estudos reunidos em Arnhold, Maier e Rüpke (2018).