Travesti e negra, pernambucana hackeia o sistema com projeto de inclusão digital (original) (raw)

Ciente de que integra círculos da exclusão por ser ao mesmo tempo negra, travesti, nordestina e periférica, Luana Maria da Luz Barbosa trabalha por direitos da comunidade LGBTQIAPN+ em Pernambuco.

Seu estado natal, Pernambuco, é o que mais matou travesti em 2022 e, ao mesmo tempo, o que mais tem gerado oportunidades –alta de 33% em oferta de vagas pautadas pela diversidade.

"Chegar até aqui não foi fácil", diz Luana, 24, sobre os estigmas em casa e na escola, onde apanhou e foi alvo de bullying.

Mostrou força, reagiu a ataques e rompeu barreiras para quem é travesti ao completar os estudos no ensino médio, manter-se em um lar e não cair na prostituição.

Segundo a Antra (Associação Nacional de Travestis e Transexuais), só em 2023 145 pessoas trans foram assassinadas no Brasil. Números colocam o país como o que mais mata transexuais no mundo.

Isso torna Luana alvo até em seu bairro, onde, diz, há muitas trans que ficam, como sua vizinhança, à margem das políticas públicas e à mercê das violências.

Programadora Java Full Stack, ela criou a Pajubá Tech, reuniu outras travestis, e é do Ibura, que realiza eventos, cria projetos e informa jovens para quebrar ciclos de violência e acessar o mercado de trabalho.

Uma revolução para quem foge das estatísticas e tem hackeado o sistema, da cisgeneridade.

"Eu sempre fui travesti. Desde pequena, gostava de brincar entre as meninas. Minha família era religiosa. Tinha muito estigma. A escola não entendia e via meus comportamentos como problema. Isso reverberava em casa.

Cheguei a apanhar muito. Mas nunca abaixei a cabeça. Não podemos deixar o preconceito nos diminuir. Minha comunidade, aqui no Ibura, tem muitas trans. E eles precisam acessar as informações que eu acessei.

Quando terminei o ensino médio, meus pais pagaram um cursinho. Vi na tecnologia um caminho que poderia ser também o de outras pessoas como eu.

Aos 20 anos, eu passei no curso técnico em Saneamento Ambiental no Instituto Federal de Ciência e Tecnologia de Pernambuco (IFPE). Era a primeira pessoa trans a ingressar no departamento.

Mas aí vi o retrato de como o mercado de trabalho é misógino e preconceituoso. Eu estava no processo de retificação dos documentos, e eles não aceitavam meu nome social.

Nos documentos, eles alegaram fraude. Foi um desgaste. Quando você se assume trans, travesti, LGBT+, todo o entorno muda, ou deveria estar preparado para mudar. Por isso não desisti.

Cheguei a processá-los, mas o caso foi arquivado. O lado bom foi que fiz com que eles dessem treinamento para os servidores sobre diversidade.

Isso já mostra porque travestis desistem de acreditar na educação e no mercado de trabalho. Não aceitação também é uma forma de violência. Quando você não é aceito em casa, na escola, no trabalho, você se isola, vai para a rua e tem a prostituição como única saída.

Todos imaginavam que era iria me prostituir quando eu me afirmei travesti aos 17 anos. Até falo nas palestras e nas oficinas que eu nunca consegui um emprego CLT, mesmo com tanta inteligência e capacidade. Foi isso o que me motivou a criar a Pajubá Tech.

Meu primeiro contato com a tecnologia foi em 2021, lá no Programa Meninas, em São Paulo. As aulas foram online. Nesse processo ganhei um notebook e aprendi a introdução à linguagem de programação.

Eu fui me identificando com a área de desenvolvimento. Então, em 2022, eu me formei como desenvolvedora Java Full Stack Júnior pela Generation Brasil, também de São Paulo.

E aí, em outubro de 2022, eu crio o Instagram da Pajubá para compartilhar o meu conhecimento e inspirar outras pessoas. Ter esse senso de comunidade tecnológica.

Nesse processo, eu entendi a oportunidade de transformar a Pajubá Tech em um negócio de impacto social. O nome é uma mistura de iorubá e português, uma linguagem usada por mulheres trans e travestis. E tech remete a tecnologia.

É uma forma de trabalhar pela inclusão, de mostrar a jovens e trans que a tecnologia pode ser caminho para acessar informações e para expressar seus talentos. Garantir que alguém acesse o mercado de trabalho é garantir que conquiste todos os direitos.

Todos falam que o mercado de tecnologia precisa de profissionais. Mas aí pedem certificação disso e daquilo. Por isso debatemos tecnologia a partir da visão da periferia. Fazemos isso no Summit, evento que criamos e já está em sua segunda edição.

Impactou diretamente 23 líderes de ONGs, coletivos e projetos sociais, além de 246 pessoas LGBT+, negras e periféricas. Todos receberam formação, apoio e oportunidades que ampliaram suas perspectivas econômicas e profissionais.

Hoje a Pajubá Tech tem nove pessoas, todas negras e periféricas. E a gente acabou de ser aprovado em edital, o primeiro feito para protagonismo da mulher e de pessoas trans, do Fundo Elas.

O valor que recebemos nos permitiu realizar a segunda edição do Summit e vai ajudar a construirmos o PajuZap, um chatbot integrado o WhatsApp para receber e monitorar denúncias de violência de pessoas trans.

Temos que ter dados para ajudar a política pública, já que há muita subnotificação quando se trata da população trans no Brasil. Esse chatbot deve estar pronto até o final do ano.

É um sonho, entre tantos. A Pajubá Tech não é só empresa de tecnologia, e sim um espaço onde as pessoas se acolhem e, a partir de nossas vulnerabilidades, conseguem também se potencializar.

Assim vou costurando acordo com empresas, como a Microsoft, que nos concede vouchers para que eu possa dar formação técnica, Faço palestras e consultorias sobre diversidade.

O mundo está mudando. Mas precisa avançar muito. Sou a única travesti em programa do Comitê Gestor da Internet no Brasil.

Eu me sinto furando bolhas e, direto do Ibura, fazendo pequenas revoluções. Ou melhor, eu me sinto cada vez mais hackeando o 'CIStema'."