David Lynch disse à Folha que televisão e internet virariam uma coisa só (original) (raw)
Morto nesta quinta-feira (16) aos 78 anos, o cineasta americano David Lynch previu, numa entrevista à Folha em 2008, que televisão e internet estreitariam suas relações. "A internet e a TV vão virar uma só. Vai acontecer como na música. O mundo da música está caindo aos pedaços. E isso vai acontecer com os filmes daqui a muito pouco. Já começou. É preciso resolver o problema da pirataria. Se as pessoas pararem de simplesmente pegar o que querem da internet e resolverem pagar alguma coisa pelo que baixam, seria quase perfeito. Tenho um pouco de medo do futuro dos filmes", afirmou o diretor.
Releia, a seguir, a entrevista completa, concedida por ocasião do lançamento de seu livro "Em Águas Profundas: Criatividade e Meditação". Naquele ano, Lynch faria uma visita ao Brasil para promover os benefícios da meditação transcendental.
"Você toma um café?", pergunta David Lynch quando chego à sua sala, enquanto aponta para a poltrona velha, com estofado todo puído, que posicionou à sua frente para mim. Ele se levanta para me dar a mão, então se senta de novo em uma cadeira daquelas ergonômicas de escritório. Fica atrás de uma mesa de madeira com restos de uma massinha cinza escura que usa para fazer o que me parece ser uma escultura. Veste calça bege toda respingada de café, barro ou tinta, camisa branca de manga comprida abotoada até em cima e blazer azul marinho, apesar do calor de mais de 30 graus que faz lá fora. A assistente que me leva até ele carrega um cappuccino em uma xícara preta enorme, entrega ao diretor, que em troca lhe dá uma xícara idêntica, vazia, do cappuccino que tomou antes.
Apaixonado por café, o cineasta diz que chega a tomar até dez por dia, em xícaras de chá cheias até a boca, no estilo americano. Ele tem sua própria marca de pó de café. Não aceito a bebida por causa do calor e para não desperdiçar o tempo da entrevista com uma interrupção, mas depois me arrependo profundamente. No curso dos próximos quase 45 minutos, a cafeína me seria útil. E em que outra oportunidade eu tomaria um café do David Lynch com o David Lynch?
O criador de "Twin Peaks", "Veludo Azul" e "Coração Selvagem" recebeu a reportagem da Folha em seu estúdio em Los Angeles, um complexo de duas casas e algumas salas soltas, construídas em concreto aparente com detalhes de madeira clara, encrustradas no alto de um morro em Hollywood Hills, em um ruazinha pequena e toda curva.
Olhando no mapa, a Senalda Road, onde David Lynch construiu seu local de trabalho, é paralela a um trecho da Mulholland Drive, rua que já serviu de inspiração e título para um de seus filmes, no Brasil batizado de "Cidade dos Sonhos", e que revelou aos Estados Unidos a atriz britânica Naomi Watts. A Mulholland Drive é imensa e famosa, e tem Jack Nicholson como seu morador mais ilustre (depois, é claro, da morte do seu vizinho Marlon Brando).
Paz na terra
Abrir seu próprio estúdio para um jornalista estrangeiro é coisa rara em Hollywood. Mas a entrevista, assim como a viagem ao Brasil que o diretor faz neste mês, é parte de uma peregrinação que começou mais ou menos três anos atrás e tem uma missão ousada: promover a paz no mundo por meio da meditação transcendental, que ele pratica há mais de 30 anos (volto ao assunto daqui a pouco).
O encontro, no entanto, tinha regras: não poderia acontecer antes das 10h30, seria interrompido pouco depois das 11h15 e ele passaria apenas nove minutos no final da conversa com o fotógrafo, que devia chegar lá antes para preparar a luz e se posicionar. E o assunto da entrevista seria principalmente o livro "Em Águas Profundas: Criatividade e Meditação", que acaba de sair no Brasil.
Publicado nos Estados Unidos em 2006, virou best-seller. Com 204 páginas, formato quadrado e capítulos curtos, é uma leitura rápida e divertida, cheia de informações de bastidores e a promessa de que, se você se empenhar na tal meditação transcendental, vai ser mais criativo e feliz.
Várias vezes durante a conversa tento emplacar perguntas sobre cinema, TV, seus atores preferidos e todas as vezes ele entorta o raciocínio e volta a falar dos benefícios da meditação. Este não é um homem que você dribla, enrola, confunde. Sabe exatamente o que quer e faz exatamente do jeito que prefere. Isso foi tudo o que eu consegui arrancar:
PASSADO: "Minha vida inteira foi no hemisfério norte, nunca atravessei a linha do Equador. Essa vai ser a minha primeira vez na parte de baixo do planeta. Morei um ano e meio na Cidade do México, mas imagino que o Brasil seja bem diferente, não?"
PRESENTE: "Acordo todos os dias às sete da manhã, tomo o primeiro café do dia, medito por 20 minutos e venho para o trabalho. Fico até umas sete da noite, medito de novo, vou para casa jantar e então trabalho mais um pouco ou vejo um pouco de TV. Gosto da série 'Cold Case' (que conta histórias reais de crimes não resolvidos)."
FUTURO: "A internet e a TV vão virar uma só. Vai acontecer como na música. O mundo da música está caindo aos pedaços. E isso vai acontecer com os filmes daqui a muito pouco. Já começou. É preciso resolver o problema da pirataria. Se as pessoas pararem de simplesmente pegar o que querem da internet e resolverem pagar alguma coisa pelo que baixam, seria quase perfeito. Tenho um pouco de medo do futuro dos filmes."
E só. Ele se impôs essa missão e dá a impressão de que vai falar sobre os benefícios da meditação até se decidir por outro assunto. Mas, como tudo o que faz, defende sua ideia com cores fortes e imagens marcantes. "É dinheiro no banco. Não tem erro. Meditar é como mergulhar em um cofre cheio. Cada vez que vai lá, consegue pegar umas moedas. Se for todos os dias, pega mais e mais moedas", enfatiza, com sua voz anasalada e uma cadência de quem ensina uma lição óbvia a um aluno desatento. No curso da conversa, recorre a muitas outras metáforas para tornar clara, transparente, sua mensagem. Que no final é quase uma lição de casa: "Apenas faça, depois siga com a sua vida e veja tudo melhorar".
Segundo Lynch, a receita para transcender é muito simples, só tem um ingrediente: um professor legítimo. "Ele te dá um mantra, que é um som, ou uma vibração, que significa um pensamento, e você repete aquele mantra durante todo o tempo que medita, então mergulha dentro de si mesmo e começa a chegar a níveis mais profundos de consciência."
O som OM, muito usado antes e depois de aulas de ioga, é considerado o mantra universal. Mas, para o cineasta, é melhor ter o seu próprio, entregue sob medida por um professor. "Não adianta meditar com qualquer mantra. Se você meditar usando a palavra 'creme de leite', vai acabar só pensando em laticínios", brinca.
O amor infinito
Ao contrário do que faz com seus filmes, que odeia explicar ou dizer o que significam, o americano de 62 anos, divorciado três vezes, com três filhos (um de cada casamento), não quer deixar nenhuma dúvida a respeito da meditação. "Não é religião, não é culto, é uma técnica que permite que você chegue até a felicidade infinita, a inteligência infinita, a criatividade infinita, o amor infinito", afirma.
E, antes que a noção de amor infinito e a lembrança de alguns de seus filmes como "A Estrada Perdida" entrem em choque, o cineasta volta ao seu tom professoral: "O artista não pode ser deprimido, não pode deixar a melancolia ocupar sua mente e seu tempo, isso é um desperdício de vida. Tem apenas que entender a depressão, ou o ódio, ou qualquer sentimento ruim, para poder retratá-los em seu trabalho. Se eu não estiver bem, não crio nada que preste." E promete: "As ideias são como os peixes. Se você se contentar com um peixinho magro e pequeno, pode pescar na beira do rio. Mas, se quer os peixes maiores, vai ter que jogar sua isca em águas mais profundas."
Entendeu? É assim: as idéias já existem, estão passeando por aí. David Lynch faz filmes ou séries de TV com as que captura. Van Gogh fazia quadros. John Lennon fazia músicas, ou protestos. Ah, e tem outra coisa: isso, de "capturar" as ideias, não acontece enquanto você faz meditação transcendental.
A MT (podemos estabelecer que MT é meditação transcendental?) expande a sua capacidade de capturar as ideias. E mais: quem medita seus males espanta. Ele não disse isso assim, com essas palavras. Na verdade arregala os olhos azuis e enfia os dedos das duas mãos na cabeleira grisalha, puxando o topete ainda mais para cima, enquanto afirma: "A negatividade vai embora e leva junto a depressão, a melancolia, o desejo de vingança. Você medita e, BUM!, atinge a iluminação".
Mestre Yogi
A técnica da MT foi trazida ao Ocidente pelo indiano Maharishi Mahesh Yogi, que morreu aos 91 anos, menos de um mês depois de anunciar sua aposentadoria. Desde os anos 50, Maharishi viajava pelo mundo ensinando uma técnica milenar de meditação que ele batizou de transcendental. Foi ele quem ensinou a prática aos Beatles, aos Beach Boys, ao comediante Andy Kaufman e à atriz Mia Farrow nos anos 1960 e 1970. David Lynch conheceu a prática criada por Maharishi em 1977, mesmo ano em que lançou seu primeiro filme. E dedica a ele seu último livro.
Sua peregrinação pela paz mundial começou com a inauguração da David Lynch Foundation, uma organização fundada em 2005, que pretende levar a MT para escolas do mundo inteiro e, por meio dos estudantes, professores e pais de alunos, todos devidamente "transcendidos", atingir toda a humanidade.
Para começar a promover a ideia, ele fez uma turnê por 13 universidades americanas, em que era anunciado como convidado para um bate-papo informal sobre meditação e criatividade. Os estudantes apareciam, faziam perguntas, ele respondia. As sessões foram gravadas, os melhores trechos foram reunidos e transformados no livro. "Esse livro não foi escrito, e sim falado", disse. Todo o dinheiro que ganha com as vendas é doado para a fundação. Aproveitando o lançamento do livro, ele aproveita para viajar e espalhar sua mensagem. E é isso que o traz ao Brasil pela primeira vez. A turnê vai virar um documentário, seu próximo projeto cinematográfico.
Pergunto o que vem à sua cabeça quando ouve falar do nosso país. Ele toma o último gole de seu terceiro cappuccino daquela manhã, pensa por alguns segundos, então me olha e diz, com a maior serenidade do mundo: "Nada. Quero ser surpreendido".
Os escolhidos
Sete atores que ajudaram a definir a obra do diretor:
Kyle MacLachlan
O diretor e o ator americano são muito amigos e fizeram vários trabalhos juntos, entre eles "Duna", de 1984, o primeiro filme do ator, e "Veludo Azul", em 1986. Mas o agente Cooper de "Twin Peaks" foi seu papel mais marcante sob a tutela de David Lynch. De 1990 a 1991, encarnou o agente do FBI na série televisiva e depois no longa, em 1992, que seguia os momentos finais da vida de Laura Palmer.
Laura Dern
A estrela de "Império dos Sonhos", último filme do diretor, dividiu com ele o prêmio especial de colaboração no Independent Film Award de 2007. O Oscar dos filmes independentes, que costuma acontecer na tarde anterior à entrega dos prêmios da Academia, já tinha dado a Dern o prêmio de melhor atriz em 1986 pelo papel principal de "Veludo Azul". Protagonizou, ao lado de Nicholas Cage, "Coração Selvagem", de 1990.
Jack Nance
Um dos atores preferidos do cineasta, fez seis filmes e a série "Twin Peaks". Participou dos elencos de "Duna", "Veludo Azul", "Coração Selvagem" e "Estrada Perdida", o último filme de sua carreira. O ator foi assassinado em Los Angeles em 1996, antes que o longa estreasse.
Harry Dean Stanton
Aos 82 anos, com mais de cem longas-metragens na carreira, ele já trabalhou com quase todo mundo em Hollywood. Com Lynch, fez quatro filmes: "Coração Selvagem", "Twin Peaks: Os Últimos Dias de Laura Palmer", "Uma História" e "Império dos Sonhos".
Isabela Rossellini
O namoro de David Lynch com Isabela Rossellini durou desde que trabalharam juntos pela primeira vez, em "Veludo Azul", de 1986, até o diretor vencer a Palma de Ouro no festival de Cannes, em 1990, pelo segundo longa que fizeram juntos, "Coração Selvagem". O namoro era segredo, e no livro de memórias da atriz, "Some of Me", ela conta que o único beijo que deu no diretor em público foi no palco de Cannes. Ela imaginou que o relacionamento seria assumido, mas em vez disso o diretor rompeu com ela e assumiu o namoro mais secreto ainda com sua assistente de direção, Mary Sweeney, que estava grávida.
Sherilyn Fenn
No primeiro filme com o diretor, "Coração Selvagem", sua personagem não tinha nem nome. Era apenas a "garota do acidente". Mas chamou a atenção do cineasta, que deu a ela o papel da sedutora Audrey de "Twin Peaks".
Naomi Watts
A atriz britânica criada na Austrália já tinha 25 filmes na carreira quando fez "Cidade dos Sonhos", em 2001. Esse o filme a transformou em estrela. Por isso, vive dizendo em entrevistas que faria qualquer coisa que David Lynch pedisse. Pois, no ano seguinte, ele pediu que ela participasse da série "Rabbits", em que pessoas vestidas de coelho apareciam em cenas do dia-a-dia. Depois, em "Império dos Sonhos", Lynch voltou a usar os coelhos e pediu que Naomi voltasse ao "personagem". Seu rosto não aparece no filme; ela é um dos personagens coelhos.