Interpretação Contratual na Lei da Liberdade Econômica, três anos depois (original) (raw)
por Guilherme Carneiro Monteiro Nitschke
Passaram-se quase três anos de vigência da “Lei da Liberdade Econômica” (Lei Federal n. 13.874/2019, “LLE”) e, em específico, das regras sobre interpretação contratual que se fez inserir ao art. 113 do CC1. Nesses três anos, a doutrina teve a oportunidade de desfiar reflexões críticas sobre atecnias (redundâncias, imprecisões, desordens) presentes nos dispositivos acrescidos. Tais acréscimos, supostos expedientes de objetividade, produziram potencialmente o oposto: para além das platitudes consolidadas, a faceta inovatória catalisou insegurança, pois a desordem e a obscuridade de critérios devolviam ao aplicador, sem guia ou bússola, a decisão quanto ao próprio caminho a trilhar. O que antes era insuficiente no Código Civil passou a ser deficiente.
Transcorrido esse interregno inicial, é pertinente uma parada para balanço, mirando-se especialmente em como a jurisprudência tem lidado com as obviedades (item 1) e os perigos (item 2) que a LLE impôs, e quais desafios ainda se apresentam (item 3). Tal vai analisado em voo panorâmico2 sem descurar de duas premissas centrais. A primeira é de que a disciplina da interpretação contratual não se esgota na lei, pois deriva também de outras fontes (em especial, a consuetudinária). A segunda é de que a interpretação não é orientada pela pura e simples sequência lógica do que a lei estabelece, especialmente em considerando as inserções da LLE. Para fazer uso de metáfora geológica, as regras legais são o relevo externo de camadas de disciplina mais profundas.
1) As Platitudes
Parte da jurisprudência singrou por mares mais tranquilos, tal derivando do fato de algumas normas de interpretação já se encontrarem presentes na longa tradição jurídica luso-brasileira a respeito. Esse é o caso do “comportamento posterior” do inc. I (que, de outro lado, silencia sobre o comportamento anterior, rectius na fase das tratativas, por vezes rica em documentos, e.g. term sheets, MoU, protocolos de intenções, atas de reuniões, e-mails e correspondências trocadas, minutas, relatórios de auditorias, etc.), e dos “usos”, “costumes” e “práticas” do inc. II (no que é, de outro lado, deficiente quando alude a “práticas do mercado”, uma contradictio in terminis, além de redundante ao caput).
Acerca da primeira platitude, não se notam grandes sobressaltos em seguir-se interpretando ampliativamente o dispositivo para nele abarcar também o comportamento anterior. Já quanto ao comportamento posterior – i.e. a execução do contrato segundo a compreensão que as partes têm quanto ao seu conteúdo – há um ou outro caso de preocupação. Isso se viu no julgado em que, incorretamente, foi considerado como “comportamento posterior” as manifestações processuais da parte no curso de ação para discutir o contrato3. Manifestações processuais podem receber valoração processual (por exemplo, pelas regras da confissão do art. 374 do CPC), mas não há abertura para se as interpretar como se “comportamento posterior” fossem. De outro lado, há exemplos positivos registrados, como no caso em que os atos posteriores dos compradores, em discussão sobre passivos ocultos em negócio de aquisição total de capital social, explicitaram sua ciência quanto às dívidas4.
A segunda platitude, redundante ao caput do art. 113, é a alusão a “usos” e “costumes”, que, inobstante as angústias quanto à delimitação de cada figura5, seguiram por ser adequadamente trabalhados pela jurisprudência, a exemplo de caso em que o TJSC reconheceu a regularidade do pagamento, porque adequado aos usos e costumes da região6. No mais, há de se registrar que, dessa vez apropriadamente, o inc. II faz alusão a usos e costumes “do mercado” e vinculados ao “tipo do negócio”, suprindo a insuficiência original do Código que os amarrava ao “lugar”. Tal era insuficiente, uma vez variarem estes em três dimensões, conforme antiga lição de Andreas von Tuhr: lugar, setor da atividade (mercado) e tempo7.
2) Os Perigos
Por outro lado, há perigos ensejados pela LLE quando tentou inovar em potencial contradição à disciplina da interpretação que se tem na ordem jurídica brasileira. Tal risco de erosão se encontra, por exemplo, já no caput do §1º, ao ditar que a interpretação do negócio jurídico “atribui” sentido, quando, em verdade, o “extrai”; no inc. IV, ao permitir interpretação contra proferentem de contratos paritários (como regra geral mais concessiva que a regra protetiva ao aderente do art. 423); e no inc. V, que mistura interpretação sistemática com outros critérios e alude ao enigmático parâmetro da “racionalidade econômica das partes”.
O primeiro perigo é o de se (mal)entender que a disciplina autoriza o intérprete a extrair significado alheio à intenção comum das partes. Foi o que se teve em julgado do TJSP que afastou previsão contratual em prol do que seria a disciplina “mais razoável”8. De outro lado, há decisões mais seguras, como julgado do TJPR em que se procedeu à interpretação a partir da lente do objeto e do fim do negócio9.
O segundo perigo deriva da disciplina ampla do inc. IV, alçada, pela literalidade, a regra geral nos contratos paritários. A jurisprudência nalguns casos o aplicou de modo limitativo, em conjugação ao art. 114 que impõe a interpretação restritiva para negócios jurídicos benéficos e a renúncia10[9]; mas noutros o fez ampliativamente, tornando concretos os riscos apontados, como no caso em que afastou a incidência do art. 423 e aplicou a via expressa da interpretatio contra proferentem diretamente11.
3) Os Desafios
A palavra final, para reflexão, é quanto aos desafios que a disciplina da interpretação inserta ainda apresenta. Dentre tantos, há que se destacarem quatro:
(i) o desenvolvimento do que se quer dizer por “práticas” no inc. II, e que não soa correspondente a “comportamento anterior”;
(ii) a alusão à boa-fé do inc. III, aparentemente redundante, mas com virtualidade de atuar autonomamente no preenchimento de lacunas, como ultima ratio12;
(iii) a obviedade reconhecida pelo §2º, mas que deve ser lida em consonância ao sistema, desafiando clareza quanto a quais são as regras de interpretação cogentes e quais são derrogáveis;
(iv) e quarto, a necessidade de se organizar o escalonamento dos critérios de interpretação, vetorizados pelo postulado normativo da intenção comum das partes (art. 112). Esse escalonamento não corresponde e nem se esgota no rol do §1º do art. 113. Se deixada à crua sequência dos dispositivos insertos, a reforma operada é capaz de subverter a disciplina e diluir, a tudo, na iniciativa de quem se crê suficiente para, com seu solitário senso empírico, dar “vida à palavra morta”13.